Desde o dia 07 de outubro, quando iniciou uma das mais violentas investidas militares contra a Faixa de Gaza e sua população, Israel vem utilizando a privação de alimentos como uma arma de guerra e a prática está deixando os palestinos à beira da fome. A ação foi denunciada pela militante Yasmeen El-Hasan, representante da União de Comitês de Trabalhadores Agrícolas da Palestina (UAWC).
A ativista conversou com o Brasil de Fato durante a Conferência Internacional da Via Campesina que aconteceu em Bogotá, capital da Colômbia. Para ela, a mais recente ofensiva israelense, que completou dois meses de duração nesta quinta-feira (07), é um genocídio que visa atacar intencionalmente fontes de água e comida da população em Gaza.
"Israel está deliberadamente utilizando a fome como uma de guerra. Antes mesmo dos ataques do dia 7 de outubro, a maioria da população de Gaza estava em insegurança alimentar. Agora, a população inteira de Gaza, as 2,3 milhões de pessoas não estão só em insegurança alimentar, mas à beira da fome", disse.
Ao anunciar sua resposta militar aos ataques empreendidos pelo Hamas, as autoridades de Israel impuseram o que chamaram de "cerco completo" contra a Faixa de Gaza, o que na prática significou o endurecimento extremo das medidas de controle já existentes que proíbem a entrada de mercadorias e insumos vitais como eletricidade, combustível, água e comida.
Em meados de novembro, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU já havia alertado que apenas 10% dos alimentos necessários para abastecer toda a população estavam entrando na região e que o cenário era crítico. Durante a trégua que durou sete dias e terminou na última sexta-feira (01), Israel permitiu a entrada de ajuda humanitária em Gaza e o PMA afirmou que conseguiu prestar auxílio a cerca de 250 mil pessoas. No entanto, após a retomada dos ataques e o retorno do bloqueio, a agência das Nações Unidas disse que Gaza deve viver uma “crise catastrófica de fome”.
"Os que sobrevivem às bombas estão condenados a um futuro sem condições de vida", afirmou Yasmeen. A ativista ainda explicou o trabalho que a UAWC vem realizando no território palestino, como o apoio prestado a pequenos produtores na Cisjordânia e a construção de pequenas áreas de cultivo em Gaza, na tentativa de reduzir os riscos de insegurança alimentar na região.
"Nós sabemos que a ocupação colonial pressupõe a eliminação de populações nativas inteiras para substituí-la por outra população, nesse caso, israelense. Para cumprir com essa ideia de colonialismo, você precisa de terra, então tudo nos traz de volta para a questão da terra", disse.
Yasmeen afirma que a maioria das terras para cultivo na Palestina estão na Cisjordânia, mas as que não estão sob controle de assentamentos israelenses têm seu acesso dificultado por Israel para camponeses palestinos. "Muitas vilas ali não podem acessar suas terras porque, por exemplo, um assentamento israelense constrói uma estrada entre a comunidade e o campo pois sabe que os palestinos são proibidos de cruzá-la e, então, não poderão acessar essas terras", explica.
Fundada em 1986, a UAWC se classifica como uma entidade da sociedade civil que busca reunir pequenos produtores que estão em Gaza e na Cisjordânia. A organização integra a Via Campesina e está inscrita no Comitê da Região Árabe e do Norte da África. Em 2021, no entanto, ela foi considerada por Israel como uma “organização terrorista”. Segundo o Ministério da Defesa israelense, a UAWC teria vínculos com o grupo armado Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP). À época, a acusação foi rechaçada por diversos movimentos locais e a ação foi condenada até mesmo pela Anistia Internacional, que classificou a medida como “injusta”.
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Apesar da repressão, a UAWC, diz Yasmeen, conseguiu avançar em vários projetos agroecológicos e pela soberania alimentar como a construção de um banco de sementes que conta com 50 tipos nativos, as chamadas sementes crioulas, que foram adaptadas de maneira natural às condições climáticas da região. "O mercado tenta vender aos camponeses sementes que não estão adaptadas ao nosso ambiente e é muito importante que a comida que produzimos não venha desses pacotes", disse.
A ativista diz que o objetivo do movimento é alcançar a soberania alimentar da Palestina, mas que para isso será necessário "desmontar o projeto de ocupação colonial de Israel". "Esses projetos não são duradouros e a história nos diz que as terras eventualmente são libertadas. Nós vamos nos libertar e não faremos isso pedindo permissão àqueles que nos oprimem", disse.
Confira os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Qual é a avaliação da UAWC da situação humanitária em Gaza?
Yasmeen El-Hasan: É um genocídio. A imprensa continua usando a palavra "guerra", mas isso não é uma guerra, isso é um genocídio. Israel vem bombardeando Gaza sem misericórdia há dois meses. Gaza tem uma população de quase 2,3 milhões de pessoas e mais da metade é de crianças. Milhares e milhares de pessoas foram massacradas. Toda vez que vou falar sobre isso tenho que checar duas ou três vezes os números de mortos porque ele vem aumentando rapidamente.
Agora houve uma "trégua humanitária", uma "pausa humanitária", como eles chamaram, por alguns dias, mas isso não existe, não se pode pausar o genocídio, devemos encerrar o genocídio. Não existe "pausa humanitária" nos ataques de colonos contra uma população sob ocupação. Eles permitiram a entrada de um pouco de ajuda, como comida, água e suprimentos médicos, mas isso significa que agora eles podem voltar a bombardear as pessoas porque estão um pouco melhor alimentadas? Está tão claro e nós podemos ver no mundo todo, as pessoas que vão às ruas estão vendo, a extensão e a escala do genocídio, a violência e a agressão de Israel como uma entidade colonial de ocupação.
Em Gaza, aqueles que sobrevivem às bombas estão nos dizendo que temem morrer de fome ou de sede. Israel está conduzindo esse genocídio de maneira muito calculada, mirando infraestruturas e particularmente infraestruturas críticas para produção de alimentos, para soberania alimentar, água e saneamento básico. Todos os insumos que qualquer comunidade precisa para sobreviver.
Uma das estratégias de Israel é cortar todas as condições de vida dos palestinos e destruir a infraestrutura que permite que os palestinos vivam. Então, os que sobrevivem às bombas estão condenados a um futuro sem condições de vida. Nós sabemos que a ocupação colonial pressupõe a eliminação de populações nativas inteiras para substituí-la por uma população, no caso, israelense. Para cumprir com essa ideia de colonialismo, você precisa de terra. Então tudo nos traz de volta para a questão da terra. Os palestinos cuidam de suas terras, nós não a destruímos, nós a protegemos. As consequências ambientais do que estamos vendo serão tão drásticas e irreversíveis. A quantidade de fósforo no solo que provém das bombas será muito prejudicial. Mas é importante saber que nada disso é novo, isso vem acontecendo há 75 anos, incluindo o ataque a infraestruturas e a tentativa de impedir que os palestinos tenham acesso a recursos vitais. Hoje, a maioria dos palestinos em Gaza não pode acessar suas terras para cultivo.
Desde o dia 7 de outubro, Israel decretou um bloqueio completo contra Gaza, mas a entrada de recursos na região sempre foi controlada e dificultada. Como funciona o trabalho da UAWC levando em conta não só o atual cerco, mas a situação anterior aos ataques também?
Nossa organização, a UAWC, é um movimento independente, da sociedade civil, que trabalha para apoiar agricultores, pescadores, comunidades rurais e camponeses palestinos. Nós fazemos isso de várias formas, incluindo a reabilitação de terras, a manutenção de um banco de sementes nativas, sistemas de reserva de água e irrigação, cultivos caseiros em coberturas de prédios, enfim, apoiando e facilitando o trabalho de cooperativas de agricultura e produção econômica, inclusive para mulheres e jovens.
Nós trabalhamos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Na Cisjordânia nosso foco maior é na área C, mas em Gaza nós temos, quer dizer, tínhamos escritórios lá e pelo menos dois deles foram destruídos nos bombardeios recentes. Uma de nossas colegas que trabalhava para o movimento foi assassinada no começo dos ataques.
Nós não sabemos quantos camponeses e pescadores já foram mortos em Gaza. Há alguns dias um barco com dois pescadores foi bombardeado por Israel. Os ataques intencionais contra fontes de comida e acesso a comida é parte de uma estratégia de genocídio. Israel está deliberadamente utilizando a fome como uma arma de guerra em Gaza.
Antes mesmo dos ataques do dia 7 de outubro, a maioria da população de Gaza estava em insegurança alimentar. Agora, a população inteira de Gaza, os 2,3 milhões de pessoas estão em insegurança alimentar. Não só em insegurança alimentar, eles estão à beira da fome. A insegurança alimentar é uma crise fabricada pelo ser humano e Israel está fabricando intencionalmente a fome massiva para a população palestina em Gaza, na tentativa de concluir seu projeto de ocupação colonial. Isso está materializado nos constantes ataques a terras para cultivo, incluindo no que eles chamam de Áreas de Acesso Restrito, que se estendem pelo muro de separação entre Gaza e os 48 territórios. Eles também espalham substâncias químicas nas terras e atiram em qualquer um que se aproxime. Eles limitaram a distância marítima que os pescadores palestinos podem utilizar para pescar. Neste momento, camponeses em Gaza não podem ter acesso a suas terras, mas a maioria das terras já está destruída. Não há água para irrigação, não há transporte para carregar produtos, não há mais condições para plantas e animais.
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Quanto do alimento consumido em Gaza era produzido ali e qual seria o tamanho do déficit?
É complicado responder essa questão porque mesmo antes dos ataques Israel controlava tudo que entrava e saía de Gaza. Israel subjugou tanto os camponeses que deixou Gaza economicamente dependente. Isso inclui a comida o que é, repito, intencional. Muitos insumos básicos são proibidos de entrar em Gaza e os israelenses chegam a controlar a quantidade de calorias que um morador da região poderá consumir. No entanto, os palestinos que vivem sob ocupação são muito inteligentes e encontraram formas de sobreviver e de prosperar em colaboração e sintonia com a terra. Isso incluiu a busca por maneiras de ser autossuficiente em algumas produções de vegetais e carne.
Mas a razão pela qual eles não podem ser totalmente autossuficientes é a ocupação. Nós estávamos falando sobre insegurança alimentar, mas o objetivo não é segurança alimentar, o objetivo é soberania alimentar. Se nós tivéssemos soberania sobre nossas terras e nossos recursos naturais, nós teríamos segurança alimentar. Não é uma questão de saber se há recursos naturais suficientes, é uma questão de monopolização e exploração dos recursos por um ocupante, um colonizador de uma população nativa.
Onde estão as terras voltadas para o cultivo e quem as controla?
Aqui temos que falar sobre a Cisjordânia. Após os Acordos de Oslo, a Cisjordânia foi separada em três partes, as áreas A, B e C. A área C está sob total controle de militares e civis israelenses. A área B está sob administração palestina, mas sob controle militar israelense e a área A supostamente está sob administração e segurança palestina. Na realidade, não é o que acontece, mas na teoria é assim.
A área C é a maior da Cisjordânia e se você olhar no mapa você verá que as vilas e zonas rurais de palestinos são pequenas ilhas conectadas por estradas controladas por Israel. A maioria das terras férteis e cultiváveis na Palestina, na Cisjordânia, está na área C. Não é uma coincidência que Israel esteja querendo expandir seu projeto colonial de ocupação na área C, porque é a região mais rica em recursos.
Na área C, os palestinos não são permitidos a trabalhar livremente na terra e o número de assentamentos aprovados por Israel ali em 2023 ultrapassa o de outros anos. É uma tentativa de fragmentar as comunidades palestinas para tornar impossível que elas ajam como um coletivo e é por isso que elas não podem existir de maneira autônoma e serem autossuficientes. Existem cerca de 600 estradas controladas por Israel e elas são classificadas pela ONU como "obstáculos de deslocamento" na Cisjordânia. Elas podem conter barreiras como pedágios, pontos de checagem, tudo feito para controlar o movimento de palestinos.
Desde o dia 7 de outubro, nós estamos sob um lockdown militar total na Cisjordânia. Os palestinos estão presos em suas áreas, o deslocamento de um lugar para outro é incrivelmente perigoso e demanda muito tempo, esforço e coragem. Mas mesmo antes disso, Israel já manipulava os acessos a diferentes áreas e muitas delas são comunidades palestinas na área C.
Muitas vilas ali não podem acessar suas terras. Por exemplo, um assentamento israelense constrói uma estrada entre a comunidade e as terras para cultivo pois sabem que os palestinos são proibidos de cruzá-la e, então, não poderão acessar essas terras. Em outros lugares, os palestinos têm permissão para acessar as terras somente por um breve período de tempo durante certos meses do ano de plantio e colheita. Israel tentou romper essa relação simbiótica do camponês palestino com a terra, porque nós sabemos cultivar e preservamos a terra assim como ela nos preserva.
Isso também tem consequências climáticas drásticas trazidas pelos assentamentos israelenses, particularmente os que estão próximos às terras férteis, pois há casos de despejo de esgoto, poluição de algumas indústrias etc. Recentemente, só nos últimos 2 meses, mais de mil palestinos foram forçadamente removidos da área C por conta da violência de assentamentos israelenses. Agora, as forças de ocupação de Israel estão explorando o foco colocado em Gaza para tentar expandir seu projeto colonial de ocupação da Cisjordânia.
Qual é a situação atual do trabalho que vocês fazem em Gaza e como estão os camponeses que fazem parte do movimento?
Muitos de nossos colegas de trabalho e comunidades que trabalham conosco que estão em Gaza foram obrigados a deixar suas terras, muitos perderam suas casas e seus entes queridos nos bombardeios. Enquanto isso acontece, o que ouvimos deles é "ainda estamos vivos". Nós não somos uma organização humanitária, nosso propósito é apoiar a perseverança do nosso povo e agora isso significa assegurar que eles não morram de fome.
Então nós estamos com uma campanha nos últimos meses para fornecer cestas de alimentos à população em Gaza. Já conseguimos enviar alguns milhares de pacotes e isso significa que nossos parceiros lá estão praticamente desviando de bombas para conseguir essa comida para as comunidades.
Nossa estrutura conta com equipes de trabalho e camponeses associados através dos comitês. Uma de nossas colegas que trabalha na organização foi morta em Gaza, mas os camponeses e pescadores têm sofrido diariamente e não temos como calcular quantos associados já morreram por conta dos ataques. Enquanto isso, fazemos o que podemos. As cestas de comida atendem necessidades de curto prazo no nosso processo de trabalho.
Como funciona o banco de sementes que a UAWC mantém na Cisjordânia e quais os resultados alcançados?
Uma das nossas principais metas é criar soberania alimentar, o que implica desmantelar o projeto de ocupação colonial. Queremos uma soberania nativa sobre as terras e os recursos. Uma das ferramentas da ocupação e, em geral, do sistema econômico capitalista neoliberal, é basear sua produção pelo lucro.
No nosso banco de sementes, nós preservamos mais de 50 tipos de sementes nativas e contamos com unidades de germinação e produção. Elas se desenvolveram de acordo com as características locais, então são resistentes ao clima, precisam de pouca água e podem ser reproduzidas. O mercado tenta vender aos camponeses sementes que não estão adaptadas ao nosso ambiente e é muito importante que a comida que produzimos não venha desses pacotes. É uma das maneiras que podemos cuidar da terra e de nós mesmos, permitindo que camponeses tenham acesso a essas sementes.
Como lutar por acesso à terra e contra a opressão de Israel ao mesmo tempo?
Para fazer a reforma agrária na Palestina precisamos desmontar o projeto de ocupação colonial de Israel. Esses projetos não são sustentáveis e a história nos diz que as terras eventualmente são libertadas. Nós vamos nos libertar e não faremos isso pedindo permissão àqueles que nos oprimem. Se você me perguntar qual é minha visão, digo que a Palestina será livre e para isso precisa haver o fim do bloqueio a Gaza e da ocupação da Palestina.
Isso implica desmontar o Estado de ocupação colonial. Qualquer coisa menos do que descolonização é participar desse processo de massacre do povo nativo e da tentativa de exterminar os palestinos. Até agora, isso vem acontecendo de maneira impune por décadas e com apoio de muitos países pelo mundo. Nós utilizamos muito a palavra cumplicidade para os atores internacionais que apoiam o genocídio, mas hoje há provas de que certos atores internacionais participam ativamente.
Mas o apoio internacional à Palestina também tem crescido, não? Temos visto atos massivos nas principais cidades do mundo contra as agressões de Israel.
Nós estamos em meio a uma catástrofe, mas também estamos em meio a um movimento global massivo de mobilizações em uma escala que nunca vimos antes. Pessoas de todo o mundo, milhões, estão do lado da Palestina e a solidariedade liberta.
Então, movimentos como a Via Campesina, por exemplo, são ferramentas de libertação, são espaços de camaradagem. Nós pedimos para globalizar a luta e a esperança e é exatamente isso que está acontecendo agora. Em meio a essa catástrofe e bombardeios sem fim, a luta é global, o povo palestino persevera e vamos continuar cuidando de nossas terras e de nossas comunidades.
Edição: Rodrigo Durão Coelho