Ao chegar a noite, o som dos tambores inunda os bairros de Havana. Em cada comunidade, uma casa é transformada em um ponto de encontro onde o canto e a dança se misturam às liturgias religiosas e sabedorias da fé. A presença das religiões africanas na ilha é constante. As formas culturais e religiosas se manifestam nas tradições, nos rituais, nas vestimentas, na música e na resiliência de seu povo.
É impossível entender Cuba sem levar em conta a presença dessas culturas ancestrais. Transmitidas, de geração em geração, as religiões de origem africana foram mantidas e defendidas como um segredo aberto que precisou fugir da perseguição e da proibição dos colonialistas para depois resistir às condenações e aos preconceitos da sociedade branca, após a independência.
"Sem a África, sem seus filhos e filhas, sem sua cultura e costumes, sem suas línguas e deuses, Cuba não seria o que é hoje. Portanto, o povo cubano tem uma dívida com a África", afirmou em 1988 Fidel Castro ao receber a Ordem da Boa Esperança na África do Sul pela colaboração de Cuba na luta contra o apartheid, regime racista do país.
O Caribe foi uma das áreas para onde as potências europeias traficavam a maioria dos escravos. De acordo com um dos primeiros censos realizados na ilha, em 1867, quase metade da população era de origem africana ou de ascendência africana.
"Hoje, Cuba é um dos países que mais preservou a religiosidade de matriz africana", disse ao Brasil de Fato, Nelson Aboy Domingo, professor de antropologia das religiões afro-cubanas.
"Ao contrário de outros processos de transculturação, em Cuba eles conseguiram construir casas ou cabildos a partir das diferentes nações que vieram de partes distintas do continente africano. Assim, cada um desses cabildos conseguiu conservar uma certa ortodoxia e preservar sua identidade. Isso significa que a religiosidade foi preservada em grande parte. Até mesmo com menos perdas do que em muitos lugares da África, onde as sucessivas agressões coloniais fizeram com que muito do que compõe nossas religiões fosse perdido", afirma.
Nelson Aboy Domingo dedicou toda a sua vida acadêmica e espiritual ao estudo das religiões afro-cubanas. Ele tinha apenas 13 anos de idade quando entrou em contato pela primeira vez com as religiões de matriz africana. Como milhares de outros jovens da ilha, em 1961 ingressou na campanha de alfabetização como brigadista voluntário. Um dos primeiros objetivos que a revolução havia estabelecido era acabar com o analfabetismo, que nas áreas rurais atingia quase metade da população.
Naquela época, Aboy Domingo viajou para o campo para ensinar os camponeses locais a ler e escrever, e lá eles lhe ensinarão sobre a sua religião e fé. Hoje, além de seus estudos acadêmicos, Aboy Domingo é um sacerdote de Ifá, que em iorubá é chamado de Babalawo. Seu livro Origens da Santeria em Cuba se tornou um dos livros mais vendidos em Cuba em 2017.
A própria história de Aboy Domingo descreve as diferentes maneiras pelas quais a religião se espalhou pela ilha. Com a vitória da revolução e a chegada maciça da população negra às universidades, essas formas religiosas tornaram-se mais difundidas entre os diferentes setores sociais de Cuba.
"Cuba é atualmente um dos países que mais preservou as religiões de origem africana. Longe de uma certa mercantilização dessas tradições que vem ocorrendo nos últimos anos", afirma.
Encontro Internacional de Religiões Africanas
Diante de um auditório explodindo em aplausos, Jose Andres Knight fala com voz emocionada e lágrimas nos olhos. Trata-se do vice-presidente da instituição religiosa Bankú de Cuba, ao encerrar o Encontro Internacional de Religiões Afro-Cubanas (EIRA), em Havana, Cuba no dia 12 de novembro.
Com uma importante delegação de líderes religiosos de diferentes partes do Brasil, que viajaram a Cuba para conhecer as experiências sociais e religiosas da ilha, o evento teve como objetivo ser um espaço de intercâmbio e fortalecimento dos laços entre as religiões de origem africana entre os dois países.
"Apesar das enormes dificuldades que estamos passando, em função do bloqueio que afeta a situação econômica, não só conseguimos realizar o EIRA, mais estamos convencidos de que é um primeiro passo para continuar multiplicando esses intercâmbios", disse José Andres Knight, um dos organizadores do evento, ao Brasil de Fato.
A reunião surgiu do intercâmbio de diferentes congregações entre os dois países. A partir dos esforços militantes de organizações sociais e religiosas.
"As religiões de origem africana têm muito a contribuir na luta pela erradicação de todos os fenômenos que hoje prejudicam e custam um grande número de vidas humanas. O racismo, a discriminação, a fome", diz Knight. "E todas essas coisas que, de uma forma ou de outra, ameaçam a vida de nosso povo. Ainda mais para a raça negra, que tem sido minimizada, discriminada e oprimida", acrescenta.
O Evento Internacional de Religiões Afro-Cubanas (EIRA) não foi concebido apenas como um encontro litúrgico, mas também como uma plataforma para fortalecer os vínculos entre os povos.
Nas últimas décadas, apesar das enormes conquistas que as lutas contra o racismo alcançaram, ainda hoje as religiões de origem africana, como Ifá-Orisha, Candomblé, Umbanda, Palo, entre outras, são frequentemente vistas como formas pagãs e "atrasadas" de religiosidade. Há até mesmo preconceitos que associam essas formas de espiritualidade a "coisas diabólicas". Preconceitos que até hoje carregam consigo as mesmas estruturas de pensamento que os colonizadores tinham quando proibiram as religiões africanas.
Entretanto, apesar dos preconceitos e das condenações sociais, as religiões de matriz africana têm se expandido enormemente pelo mundo. Expansão na qual os fluxos migratórios dos próprios cubanos têm desempenhado um papel preponderante. Atualmente, Cuba e Brasil são dois dos países com maior presença dessas formas religiosas, culturais e de resistência.
"A diáspora africana, a diáspora negra, está muito dispersa. Precisamos fortalecer nossos vínculos, não só para nos reconectarmos, nos reencontrarmos, mas também para fortalecermos nossa comunicação, a fim de conseguirmos uma unidade de força na luta", diz Pai Ricardo de Moura, da Associação de Resistência Cultural Afro-brasileira Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, ao Brasil de Fato.
“A luta nunca será única. Mas a unidade é algo que precisamos ter em todas as lutas. Esse tipo de encontro nos ajuda a ter essa unidade para as lutas, para as conquistas, para combater o racismo, para combater a discriminação, de uma forma mais forte, mais estratégica, em todos os setores e, acima de tudo, em todas as partes do mundo” acrescenta.
"Cuba é essa referência de resistência que nós temos"
“Para nós, essa chegada a Cuba significa a possibilidade de conhecer e também de reafirmar nossos laços ancestrais” afirma Makota Célia Gonçalves Souza, coordinadora nacional del Centro Nacional de Africanidad y Resistencia Afrobrasileña, para Brasil de Fato.
Assim como em Cuba, as populações africanas traficadas como escravas para o Brasil foram forçadas a se batizar e adotar o catolicismo. Como em Cuba, muitas dessas conversões foram um mecanismo de sobrevivência, enquanto as populações negras mantiveram secretamente suas práticas culturais e religiosas.
Makota Célia Gonçalves Souza, uma das coordenadoras do Evento Internacional de Religiões Afro-Cubanas (EIRA), fiel ao seu estilo irreverente e rebelde, sorri e não se cansa de repetir que reuniram "um monte de macumbeiros" para dialogar e compartilhar.
Ela afirma que a chegada de Lula à presidência significou a volta de "um Estado laico, o que não significa ateu, mas um Estado que não tem credo, mas permite que as pessoas rezem". Mas, mesmo assim, "o Estado brasileiro é um Estado estruturalmente racista. Um Estado que discrimina, se não por legislação, por omissão".
Para Makota, é uma oportunidade de aprender como o Estado cubano, sendo secular, "permite que as pessoas rezem porque toda fé é sagrada". Convencido de que, sem respeito religioso, não há possibilidade de acabar com o racismo.
“Conheço o custo de ser uma mulher negra, periférica em meu país. Por todos os meios possíveis, o racismo tenta se impor sobre nós. E nós, ao contrário do que os racistas esperam, nadamos contra a corrente e somos felizes. Em nossas práticas, temos orgulho de quem somos. Por mais perversas que sejam as práticas racistas, elas não nos tiram a subjetividade. Que é uma subjetividade feliz, eu rezo cantando, rezo dançando, rezo comendo, rezo comemorando. Minha religião não é uma religião de pecado, de dor, que envolve tristeza. Não, pelo contrário, minha religião tem alegria em si mesma. E o racismo não conseguiu tirar isso de nós”.
Além da motivação estritamente religiosa na escolha de Havana como local do evento, a EIRA adotou uma resolução condenando explicitamente o bloqueio que os EUA vêm impondo a Cuba há mais de 60 anos.
"O que alimenta Cuba para mim é exatamente esse senso de resistência que nós, negros, temos. Cuba é essa referência de resistência que nós temos. Ontem eu estava falando com os meninos que o grande problema dos Estados Unidos é que Cuba não se rende à prepotência deles. Então, eles odeiam Cuba exatamente como odeiam os negros. Porque eles não podem nos destruir. A arrogância não nos mata. Ela nos alimenta na medida em que nos torna resistentes. E Cuba tem esse simbolismo para mim", concluí Makota.
Edição: Rodrigo Durão Coelho