"Eu tô com medo de viver. Eu não sei se amanhã eu vou viver. Meus companheiros não sabem se vão viver amanhã. Meus filhos. Eles ficarem sem a mãe. Isso é um desespero. A gente tá pedindo socorro."
O relato de Fernanda*, uma das coordenadoras do Acampamento São Francisco, em Vitória de Santo Antão (PE), sintetiza o clima de insegurança e ameaça vivido na área ocupada pelo MST desde o assassinato de Josimar da Silva Pereira, na madrugada de 5 de novembro de 2023. O camponês de 30 anos foi alvejado pelas costas quando ia para o trabalho no cultivo de arroz orgânico.
Menos de duas semanas após o assassinato, as 180 famílias sem-terra, que estão na antiga área do Engenho São Francisco desde 1994, convivem com ameaças e o risco de serem removidas do local a qualquer momento. No início de outubro, uma liminar da 3ª Vara Cível da Comarca Vitória Santo Antão autorizou um pedido de reintegração de posse impetrado pela Usina Alcooquímica JB, que reivindica ser dona da propriedade.
Na última segunda-feira (13), uma audiência entre o Ministério Público de Pernambuco (MPE-PE), a Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra-PE) e a Usina JB tentou chegar a um acordo para solucionar o impasse. O MST esperava a desapropriação do Engenho São Francisco para o uso coletivo das famílias, o que não aconteceu.
"Todos os acampados estão com medo. E isso não está sendo levado em consideração na negociação, em nada. Nem pelo juiz. Ele não foi tocado pelo crime. Os acampados além de lidar com a iminência de um despejo, ainda tem que lidar com a questão de um companheiro ter sido assassinado" , pontua Teresa Mansi, advogada que compõe o coletivo de defesa do MST no caso.
O terreno onde está o acampamento, visitado pelo Brasil de Fato nesta semana, entrou como prioridade para vistoria e desapropriação por parte do Incra, que já havia classificado o engenho como improdutivo. Hoje, as famílias do MST remodelaram a área desenvolvendo roçados e tiram o sustento do cultivo de frutas e legumes orgânicos.
"A gente tira alimento daqui. A gente tá lutando pelo o que é da gente. Porque a terra não cumpre a função social. A terra não tinha cana. Quando a gente começou a ocupar eles começaram a prensar a gente. Quando o Incra veio aqui para dentro ele deu esperança para nós. Disse que aqui seria desapropriado", pontua Fernanda*.
Conflitos e ameaças
A agricultora é uma das integrantes da coordenação do acampamento que está no Programa Estadual de Proteção e Defesa de Defensores dos Direitos Humanos por conta dos conflitos e ameaças envolvendo a disputa pela área.
No dia que a reportagem esteve no local, acampados relataram que fotos dela e de outras coordenadoras do acampamento estavam circulando entre os funcionários da Usina JB. Fernanda registrou um Boletim de Ocorrência na Polícia Civil de Vitória do Santo Antão nesta quinta-feira (16).
"Estão com foto da gente, com nome da gente, procurando saber da gente. Isso não existe. A gente na proteção. Que proteção é essa que dizem que a gente tem? Nós não temos", lamenta. “Hoje eu tô viva, mas será que amanhã eu vou acordar viva?", completou.
Segundo a agricultora, mesmo após o assassinato de Josimar, carros e motos continuam circulando pelo acampamento durante o período noturno.
"Aqui tem criança, tem idosos, têm gestantes. Ninguém dorme mais, ninguém consegue comer mais. Hoje a gente pode dizer que está com medo. Medo de sair de casa para não ser assassinada. A gente tá com medo das ameaças. As coordenadoras estão na proteção contra as ameaças. E mesmo assim as ameaças tão chegando a todo instante”, completa.
Ordem de despejo não passou por comissões fundiárias
A defesa do MST vai entrar com uma contestação na 3ª Vara Cível da Comarca Vitória Santo Antão, responsável pelo despacho da liminar de reintegração de posse. O coletivo de advogados também vai ingressar com um agravo no Tribunal de Justiça de Pernambuco com base na portaria 488/2023, que criou a Comissão de Conflitos Fundiários (CFF) no estado, em 10 de abril de 2023.
Segundo a portaria, antes do cumprimento de qualquer ordem judicial de desocupação coletiva, os juízes precisam notificar a CFF. Não houve, no caso das famílias do MST em Vitória do Santo Antão (PE), audiências de conciliação ou de mediação entre as partes, ou inspeções judiciais na área do acampamento.
"É uma ocupação com 29 anos. Inclusive é a ocupação mais antiga do estado de Pernambuco. Diversas figuras ilustres já passaram por lá. O arcebispo de Recife e Olinda esteve lá recentemente. É um lugar de produção de arroz orgânico, que tem muita vida. E que tem uma liminar que é inaudita altera pars, que significa que não se ouve a outra parte."
Tereza Mansi pontua ainda que o grupo de advogados do MST levará uma reclamação ao Supremo Tribunal Federal (STF), com base na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828.
"É uma liminar que não deu a possibilidade das famílias se defenderem, de poderem provar que essa ocupação é antiga. Não tiveram direito à ampla defesa, ao contraditório. E sobretudo uma liminar que foi dada sem passar por todos os trâmites, e sem passar pela determinação do STF de ir para uma comissão de conflitos fundiários", explica Lansi.
Em outubro, a promotora Shirley Patriota Leite, do Ministério Público de Pernambuco, já havia pedido em ofício enviado a suspensão da liminar para que antes o processo fosse encaminhado para a Comissão de Conflitos Fundiários.
O Ministério Público chamou atenção também para o fato de a reintegração de posse estar em nome de uma parte que não é proprietária. No caso, o pedido foi feito pela Usina JB, que é arrendatária da área, mas na certidão emitida pelo cartório de Vitória de Santo Antão consta que o imóvel ainda pertence ao antigo herdeiro do engenho, Zair Pinto do Rego.
"É preciso observar que os interesses existenciais, econômicos e sociais envolvidos nos conflitos coletivos possessórios exigem que sejam tomadas cautelas especiais, antes de se determinar a desocupação de uma área que serve de moradia e sustento para várias famílias", pontuou Leite na manifestação ministerial.
As famílias do MST afirmam que já estavam em negociação com o dono do imóvel, por meio do Instituto de Terras e Reforma Agrária de Pernambuco (Iterpe), há pelo menos 20 anos.
"Tem muitos engenhos aí que não são deles. A maioria dos engenhos da JB são arrendados. Ela arrendou o engenho, plantou a cana, e depois quis tomar de todo jeito. O dono não pode pagar as dívidas, com as benfeitorias. Aí eles tomam. A JB tem muita terra, mas a situação é essa", conta Saulo*, um dos primeiros moradores do Acampamento São Francisco.
Agricultura é fonte de renda
Maria de Fátima da Conceição vive há 29 anos no acampamento e também é uma das primeiras ocupantes da área.
"A gente vai perder muitas coisas. E a gente tá ainda pensando no que fazer se arrancarem tudinho. Eu gastei 1800 reais na minha casa. Nós não temos mais condições de comprar telha. Só uma telha é 30 reais. A gente não tem mais condição, porque o roçado da gente é aqui também", pontua a agricultura, que produz batata e macaxeira.
"Desde segunda-feira que a gente não dorme. Todo mundo acordado. Ninguém tá comendo direito. O que a gente vai fazer da vida agora, se perder o que tem?", completa Maria de Fátima, que tem toda sua renda tirada do que cultiva no acampamento.
Entre outros produtos, as famílias sem-terra produzem arroz orgânico, banana, macaxeira, inhame, hortaliças, maracujá, côco, além de um viveiro da reforma agrária. A venda se dá nas feiras livres do município de Vitória do Santo Antão. Existe também o roçado das mulheres, intitulado "Roçado das Marias", uma experiência auto-organizativa do setor de gênero da regional Galileia do MST.
As famílias participam ainda da produção experimental de arroz agroecológico, fruto de uma parceria entre o MST e o governo do estado, por meio do Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA).
Saulo* tem dois filhos e três netos. Ele chega a tirar 2 mil reais mensais em seu lote cultivando cará, banana, pimenta, maniva, jiló e feijão. "Eu, minha família, a gente vive disso aqui. A gente não tem outra possibilidade de renda. A gente come o que a terra dá", explica.
Fogo e veneno
O agricultor faz um alerta para uma prática recorrente por parte da usina JB: despejar agrotóxicos por meio de drones nas áreas de canaviais, atingindo propositalmente os roçados familiares das famílias sem terra.
"Tudo que eles botam de veneno na cana pega no roçado da gente. O drone espalha o veneno por todo canto. As lavouras não aguentam. Aí quem fica no prejuízo é a gente", explica o agricultor mostrando os frutos de pimenta adoecidos. "O trabalho da Usina JB é destruir o de quem não tem", completa.
Os ataques à agricultura familiar por parte da Usina não se restringem a área do acampamento. José* nasceu em um sítio vizinho ao São Francisco, em 1954. O idoso produz banana, feijão, maxixe e uma diversidade de legumes. Hoje, seu lote é cercado pelos canaviais da Usina JB.
"Vem por cima. Aquela fumaça. Quando a gente vê já queimou o "olho" da banana. Eu considero uma agressão. Porque vem destruindo o que a gente plantou”, conta mostrando as queimaduras no "olho" da bananeira, provocadas pelo agrotóxico.
José relembra a história da terra disputada em Vitória de Santo Antão. "Nesse tempo eu conheci aqui cinco senhores de engenho. Todos os cinco já morreram. Aí ficou um engenho aqui abandonado. O movimento resolveu ocupar isso aqui em estado de abandono. Não tinha mais cana plantada, não tinha mais nada. Aí a Usina botou o olho em cima e tentou também invadir. Sem direito a nada. Eu nunca conheci a Usina JB como dona disso aqui", relembra.
"Se eles tivessem chegado primeiro que o movimento para ocupar a terra, talvez eu desse um apoio. Mas o problema é que eles chegaram por último. O assentamento já tava. Quer dizer, que eles estão tentando tomar a terra do assentamento", finaliza.
Outro lado
O Brasil de Fato procurou a Usina JB para prestar seus esclarecimentos sobre as denúncias levantadas em relação a morte de Josimar da Silva Pereira, as ameaças sofridas pelas famílias do Acampamento São Francisco, e o despejo de agrotóxicos nos roçados familiares. A reportagem será atualizada assim que o posicionamento for enviado.
Edição: Thalita Pires