Uma senhora pequena. Uma lona preta. Confinada pela estrada de um lado, a monocultura de cana-de-açúcar do outro. O pé que não arredava. Essa é a imagem que vem à mente de boa parte das pessoas que conheceram a liderança, rezadora e cacica Damiana Cavanha, defensora da Terra Indígena Apyka'i, em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Descrita como "guerreira" pela Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, e como "símbolo da resistência" pela Funai, Damiana foi assassinada aos 84 anos em circunstâncias ainda não explicadas.
A liderança Kaiowá foi encontrada caída em frente ao barraco onde vivia. Com hematomas no corpo, faleceu no Hospital Missão Evangélica Caiuá na última terça-feira (7), sem ver seu tekoha (lugar onde se é, em guarani) demarcado.
Ao Brasil de Fato, o Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul informou que “acompanha a apuração das autoridades policiais - da esfera estadual - e aguarda a finalização de laudo pericial. Na data anterior à morte, a família da vítima registrou um boletim de ocorrência dando conta de uma agressão”.
Filha de um rezador Guarani Kaiowá, Damiana Cavanha nasceu em 1939. “A hora que me matar, o fazendeiro, vou ficar junto do meu pai. Vamos resistir aqui no tekoha. Nunca não vou estar aqui no tekoha. Para quê que eu vou deixar longe a semente do meu pai?”, disse Damiana em entrevista ao Centro de Estudos Indígenas da Unesp de Araraquara.
Ao longo de três décadas e ao menos seis despejos, Damiana alternou sua morada – por vezes incendiada ou derrubada por retroescavadeira – entre o canavial e a beira da BR-163. Foi nesta rodovia que nove familiares seus, entre o marido, filhos e netos, perderam a vida atropelados. Muitas das vezes por carros da Usina São Fernando, arrendatária da fazenda de propriedade de Cássio Guilherme Bonilha Tecchio.
Construída durante a ditadura empresarial-militar, a BR-163 foi feita sob o slogan “ocupar para não entregar”. Ironicamente, foi o que Damiana fez a vida inteira. Seu porte miúdo era inversamente proporcional ao tamanho da luta que encampou contra a inércia do Estado brasileiro e a Fazenda Serrana, sobreposta ao território de seu povo. Como uma pedrinha no sapato de um gigante.
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No último dia de finados, 2 de novembro, Damiana atravessou uma vez mais o contêiner de seguranças privados da propriedade e foi até o fundo de uma mata ciliar, lugar que fez de cemitério para seus familiares. Ali, beirando um córrego envenenado pelos agrotóxicos da monocultura, ela bateu seu mbaraká (instrumento sagrado) para eles pela última vez.
Não foi lá, no entanto, que seu corpo foi enterrado na última quarta-feira (8). “Eu não quero passar pelo mesmo que minha mãe passava quando ia visitar os parentes enterrados. Quero poder levar flores para a minha mãe em paz”, explicou Sandra, filha de Damiana, ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Em nota, o Cimi destacou que não eram raras as vezes em que, ao visitar seus mortos, Damiana “era ameaçada fisicamente por jagunços e funcionários da fazenda ou por processos judiciais”.
“Sempre vou continuar a luta, a luta não vai parar”, afirmou Damiana no vídeo Apyka’i - os mortos têm voz. Nele, a indígena conta de um avião que passou rasante despejando veneno e matou 10 galinhas da comunidade. “Eu falei para o peão da [Usina] São Fernando. Se a gente morrer eu não vou enterrar mais aqui, eu vou enterrar lá na usina mesmo”, afirmou.
“Chega...”, Damiana fez uma breve pausa na fala. “Chega de matar índio. Chega de matar liderança. Marcos Verón morreu na luta. Nísio Gomes morreu na luta. Simião Vilhalva morreu por causa da luta também”, citou. “Nós não somos igual fazendeiro, não. Luta não é fácil não, luta é para morrer mesmo”, disse.
O último despejo
Em 2012, a Funai instituiu um grupo de trabalho para iniciar o processo demarcatório de Apyka’i. Passada mais de uma década, nada caminhou.
Em 2016, nove famílias Guarani e Kaiowá lideradas por Damiana foram despejadas de dentro do território pela sexta vez, por cerca de 100 policiais federais e uma pá-carregadeira. Perderam todos os pertences. Desde então, Damiana vivia acampada do outro lado da estrada, de frente ao tekoha Apyka’i.
"Uma das mulheres mais fortes que já vi", conta o pesquisador Anastácio Peralta, indígena do povo Guarani e Kaiowá. "Ela dava coragem para a gente", resume.
"Quando teve o despejo, fui acompanhar e ia indo muito triste. Quando cheguei, vi ela alegre, rezando, cantando. Falou 'pode até tirar a gente agora, mas nós vamos ficar aqui, vamos voltar, aguentar a luta'. Isso me animou e animou todo o povo que chegou lá. Ela esperou, os policiais vieram, e ela saiu. De cabeça erguida", relata Peralta.
Um mês antes, em maio de 2016, Damiana viajou a São Paulo para participar do I Encontro Internacional de Mães e Familiares de Vítimas do Estado Democrático. Do contato com o Movimento Independente Mães de Maio, incorporou a ideia de divulgar as fotos dos seus nove familiares mortos pela região.
"Damiana é a luta Kaiowá das últimas décadas. É o símbolo, a bandeira encarnada, aquela obstinada", define Matias Hampel, coordenador do Cimi no Mato Grosso do Sul. Certa vez, ele foi fazer uma visita. Sentou com ela embaixo da lona, o sol estava escaldante, o terreno aquecendo o solo, os caminhões zunindo do lado, no asfalto quente.
"Perguntei a Damiana como é que ela conseguia. Ficar lá, suportar aquela situação. Ela sorriu e disse que ela não via o acampamento. Não via as lonas, a falta das coisas, não via o sofrimento, o incêndio, os atropelamentos", relata Hampel: "Ela via o tekoharã: aquilo que será. Então onde ela olhava, ela via uma floresta. Ela sabia a localização de todas as árvores que cresceriam no território. Na verdade... ela via o futuro. E espiritualmente ela vivia conectada a essa visão".
“O Estado é o maior responsável pela morte da nhandesy [rezadora] Damiana, que aguardou por anos às margens da rodovia para voltar para seu território nativo”, afirmou em nota a Kuñangue Aty Guasu, Grande Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá.
Terra indígena tomada por cana para etanol
“Seguem as investigações do que aconteceu nos últimos dias antes da morte de Damiana, uma das informações é que ela foi violentada na visita ao túmulo onde estão enterradas suas parentelas, e o cemitério fica dentro da atual terra ocupada ilegalmente pela Usina São Fernando”, ressaltou a Kuñangue.
Entre 2008 e 2012, a Usina São Fernando, de propriedade do pecuarista José Carlos Bumlai, recebeu cerca de R$530 milhões de reais em empréstimos do BNDES, sob os governos Lula e Dilma. Em 2015, Bumlai foi preso no âmbito da operação Lava Jato e, no ano seguinte, condenado por corrupção passiva e gestão fraudulenta de instituição financeira.
Falida, a usina foi leiloada e está sob disputa judicial. De acordo com o Cimi, os interessados são a ESG, um consórcio de investidores de São José dos Campos (SP), o Grupo AGF, indústria sucroalcooleira com sede em Recife (PE) e a empresa Millenium Holding, de São Paulo (SP).
“A disputa não impediu, contudo, de instalarem no canavial uma base de monitoramento com seguranças para fiscalizar a área e impedir a circulação dos indígenas”, salientou o Cimi.
“A tristeza e a revolta tomam conta de nossos olhares e transbordam”, afirmou a Kuñangue Aty Guasu. “E essas plantações de cana-de-açúcar têm sim sangue do povo Kaiowá e Guarani”.
“Damiana será lembrada hoje e sempre, com suas rezas ancestrais travou uma batalha árdua e nunca desistiu”, finalizou a organização de mulheres indígenas: “Atyma porã [muito obrigada] nhandesy Damiana, nós seguiremos em marcha pela demarcação dos territórios Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul".
Edição: Rodrigo Chagas