Luta por terra

'Pedimos socorro': comunidade Guarani Kaiowá é alvo de tiros e tem casas incendiadas em Dourados (MS)

Nesta sexta (18) completam quatro dias que os indígenas do tekoha Avae’te afirmam estar sob ataques de pistoleiros

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Criança do povo Guarani e Kaiowá observa os restos de um dos barracos da sua comunidade incendiados, após ataque de pistoleiros - Comunidade Avae'te

Tiros disparados do meio do mato, casas incendiadas, pertences roubados, roças destruídas e ameaças de morte. Indígenas do povo Guarani e Kaiowá afirmam estar sob ataques ininterruptos de pistoleiros desde a noite de segunda-feira (14), na cidade de Dourados (MS).  

O tekoha Avae’te é reivindicado como tradicional pelos indígenas, que vem reocupando o território progressivamente ao longo dos últimos anos, em especial desde 2018. A área está sobreposta à Fazenda Boa União, do empresário e sojicultor Allan Christian Kruger. 

Na manhã desta quinta-feira (17), o “caveirão”, como é chamado pelos indígenas, passou por cima de barracos e das roças da comunidade, destruindo cultivos de mandioca, quiabo e banana. Trata-se de um trator blindado e modificado por chapas de aço.  

De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o veículo é “velho conhecido dos Guarani e Kaiowá de retomadas localizadas em áreas próximas aos atuais limites da Reserva Indígena de Dourados”. Em nota, a entidade alerta que “caso não ocorram providências e a devida intervenção das autoridades públicas” na área, receia “um massacre”. 

“O fazendeiro latifundiário fala que vai matar qualquer um que ficar aqui.  Como que a gente vai enfrentar eles? São pistoleiros de fazendeiros”, afirma Amanda*, moradora da retomada e integrante da Kuñangue Aty Guasu (Grande Assembleia das Mulheres Guarani Kaiowá). 

“Então a gente tem que lutar, tem que enfrentar, tem que correr. Porque a gente não tem armas, somente estilingue e yvyrapará [bastão sagrado Guarani, associado a atividades guerreiras]. Só isso. A gente que mora na retomada passa muito perigo”, narra Amanda. 

Histórico de conflitos 

Com participação em três empresas ativas no Mato Grosso do Sul - Irmãos Kruger Ltda, Agrícola Videira Ltda e Coopasol Cooperativa Agropecuário Sulmatogrossense –, o fazendeiro Allan Kruger tem histórico de conflito com indígenas. 

O Ministério Público Federal do MS chegou a emitir, em 2021, um pedido de fixação de medidas cautelares contra Kruger e de prisão preventiva de Giovanni Jolando Marques, vulgo Gordo – citado pelo MPF-MS como seu arrendatário e por indígenas como um de seus pistoleiros. Na ocasião, ambos foram acusados pelo crime de incêndio, tentativa de homicídio e racismo contra a comunidade indígena do acampamento Avae’te. 

A decisão da 1ª Vara Federal de Dourados do Tribunal Regional Federal da 3ª Região não acatou as medidas cautelares contra Allan Kruger, mas decretou a prisão preventiva de Jolando, cuja “suspeita de atuação”, diz o documento, “é muito mais como ‘miliciano’ do que como sitiante”. Atualmente, no entanto, ele está livre e, segundo os indígenas, teria participado dos ataques recentes. 

O Brasil de Fato tentou contato por telefone e e-mail com o fazendeiro Allan Kruger, mas não teve resposta. Caso ele ou Jolando queiram se manifestar, o espaço segue aberto.  

"Não vai parar?"

Amanda conta que a comunidade está com medo e há dias sem dormir. “A gente está sofrendo com ameaças. Eles vêm armados, atiram. Não é com bala de borracha não, é bala mesmo. Quando vêm derrubar o barraco xingam, falam ‘bugre, vai embora’. Anteontem falaram ‘queria pegar vocês na bala, queria estuprar vocês’. Não deixam a gente ficar sossegado”, diz.  

:: Indígenas são reprimidos pela PM em ato contra marco temporal na rodovia dos Bandeirantes em SP ::

“Eles vieram para queimar as casas. Queimaram também alimentos, as camas”, afirma Renan*, do povo Guarani Kaiowá e também morador da retomada. Segundo ele, a primeira investida de pistoleiros foi na madrugada de segunda-feira (14), quando um grupo de homens chegou a pé, outros em uma caminhonete branca, e fizeram cerca de quatro disparos contra os indígenas, que se esconderam no mato. Ninguém foi atingido. 

Na noite de terça (15), homens armados incendiaram 10 casas. “Os ataques não pararam. Atacam por toda a noite e dia. Começam a atirar no meio do mato”, relata Renan. “Com esses ataques, a gente fica sem nem saber o que falar. A gente aqui está pedindo socorro. Pedindo socorro mesmo. Para quem a gente pode pedir socorro? Quem vai vir ajudar a gente? Ninguém”, denuncia. 

Amanda destaca que além dos barracos, foi incendiada uma cesta básica que a comunidade tinha recém recebido da Funai. “A gente passa muita luta, muita tristeza doída no coração. Agora estamos sem cesta, sem nada, sem coberta, queimaram roupa, calça, panela levaram. Levaram tudo. Ficamos sem nada”, aponta. 

“Será que não vai parar isso?”, questiona a indígena. “A gente vai lutar até a chegada da demarcação de terra. Vamos guerrear, lutar, enfrentar”, ressalta. 

Autodemarcação 

A comunidade de Avae’te é uma das que beiram a populosa Reserva Indígena de Dourados. Criada em 1917 pelo governo brasileiro e povoada principalmente a partir da década de 1940, a reserva foi uma solução estatal para dar um destino aos Guarani Kaiowá retirados à força de suas terras ancestrais na região.  

De acordo com o Censo de 2022, 13.473 pessoas vivem atualmente na Reserva de Dourados, confinadas em 2,4 mil hectares. As áreas do seu entorno – muitas das quais tomadas por fazendas - foram apontadas como parte da Terra Indígena (TI) Dourados Pegua, que segundo um Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) firmado em 2007 entre o MPF e a Funai, deveria ser identificada e delimitada até 2010.   

O que não aconteceu. Com o processo demarcatório paralisado, o povo Guarani Kaiowá vem retomando seus territórios de forma autônoma. Segundo o Cimi, as comunidades Avae’te 1 e 2 são duas entre 13 surgidas como reação ao confinamento na reserva. No início de 2023, houve um novo avanço da ocupação de Avae'te.

Além destas, estão as retomadas Ñu vera 1 e 2, Ñu vera Guasu, Aratikuty, Bolqueirão, Yvu Vera, Jaychapiry, Yvy rory poty, Ñu porã, Apyka`i e Pacurity. 

Em ofício, a Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública do MS pediram que os Ministérios da Justiça, dos Povos Indígenas, de Direitos Humanos e Cidadania e o Conselho Nacional de Direitos Humanos atuem na mediação dos conflitos na região, visando a proteção da vida e a integridade física dos indígenas Guarani e Kaiowá.  

 

*O nome foi alterado para a preservação da fonte.  

Edição: Vivian Virissimo