Uma casa foi incendiada e dez indígenas foram presos depois da repressão policial a uma retomada de terra em Dourados (MS), durante o feriado de páscoa. Com a liberação apenas de um idoso de 77 anos, os outros nove foram encaminhados, na segunda-feira (10), para o Presídio Estadual de Dourados. O conflito é em torno do território Yvu Verá, reivindicado como ancestral pelos Guarani e Kaiowá e que, enquanto não tem a demarcação concluída, é cobiçado pela Corpal Incorporadora e Construtora para dar lugar a um condomínio de luxo.
Apesar do conflito, ou por isso mesmo, a retomada segue e agora com mais gente. Depois da repressão policial, outros indígenas foram, em solidariedade, para o terreno. Atualmente, cerca de 400 pessoas estão acampadas.
A área é vizinha da populosa Reserva de Dourados e faz parte da Terra Indígena (TI) Dourados Peguá. Este é um dos territórios que, de acordo com um Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) firmado em 2007 entre o Ministério Público Federal (MPF) e a Funai, deveria ser identificado e delimitado até 2010.
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Durante os treze anos que se passaram desde o prazo ignorado, aconteceram dez retomadas organizadas por indígenas que estão entre os cerca de 20 mil moradores confinados nos 3,4 hectares da Reserva de Dourados. O objetivo é retornar ao tekoha ("lugar onde se é", em guarani) de onde seus antepassados foram expulsos na década de 1940.
A retomada mais recente foi na última sexta-feira (7). Aconteceu, segundo indígenas ouvidos pelo Brasil de Fato, pelo descumprimento de um acordo. O combinado informal entre eles e o antigo dono da chácara, contam as famílias Kaiowá, era que, enquanto o litígio não se resolvia, os indígenas não avançariam sobre o território, com o compromisso que nada se construísse ali. Desde que, recentemente, a área foi vendida para a Corpal, muros do futuro empreendimento começaram a se erguer.
Tropa de choque, armas apontadas ao rosto e prisões
O sábado (8) amanheceu com a repressão, sem mandado judicial, da Tropa de Choque da Polícia Militar (PM) do Mato Grosso do Sul contra os ocupantes. Dos 10 indígenas dos povos Guarani Kaiowá e Terena detidos, nove tiveram a prisão preventiva decretada pelo juiz Rubens Petrucci Junior, da segunda vara federal de Dourados. A decisão do magistrado é oposta ao pedido do MPF, que solicitou a liberdade provisória.
Os indígenas refutam as acusações de associação criminosa, dano ao patrimônio, esbulho possessório, ameaça, lesão corporal e posse de armas que lhes foram imputadas. Durante audiência de custódia, cuja ata a reportagem teve acesso, seis deles afirmaram ter sido vítimas de violência policial, com armas apontadas para a cara e a detenção de pessoas não envolvidas no conflito.
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Já a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP) do MS apresenta outra versão. Segundo o órgão, chefiado pelo secretário Antonio Carlos Videira, a PM foi acionada para atender "uma ocorrência onde um grupo, de aproximadamente 10 pessoas" havia agredido e ameaçado "com arma de fogo um caseiro indígena, com o objetivo de invadir uma propriedade localizada próximo ao anel viário".
Os indígenas dizem que a PM agiu contra a ocupação em defesa dos interesses de donos de terra. "Falaram que foi flagrante e que encontraram armas. Indígenas têm machete e foice, são instrumentos de trabalho, mas arma de fogo não tinha, isso é mentira da polícia", denuncia José* Guarani Kaiowá, uma das lideranças da comunidade.
A Defensoria Pública da União (DPU) informou que está formulando um habeas corpus pedindo que o Tribunal Regional Federal da Terceira Região (TRF3ª) conceda um alvará de soltura. "A prisão é uma medida extrema e cautelar e que deve ser reservada a casos em que são justificáveis, diferente desse", define o órgão.
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"Depois que levaram o pessoal preso, a polícia voltou ao Yvu Verá. Eu também já tinha chegado. A polícia falou na minha frente: 'não é para vocês entrarem mais aí'", relata a liderança Kaiowá. "Aí eu falei 'mas essa terra é nossa'. Podemos estar com 10, 20, 1000 parentes: vamos voltar. Essa terra é nossa mesmo", salienta.
Na madrugada do domingo (9), uma casa no tekoha Aratikuty, que é vizinho ao Yvu Verá, foi incendiada. De acordo com o Aty Guasu (Grande Assembleia Guarani Kaiowá), o ataque foi feito por pistoleiros e teve como alvo a moradia de um dos detidos.
Agronegócio e resorts de luxo
Portofino Spa & Resort, Porto Royale Condomínio Resort, Porto Madero, Porto Seguro e Porto Unique. Assim são nomeados alguns dos condomínios luxuosos da Corpal na região, cujos negócios vão de vento em popa: entre 2020 e 2021, as vendas cresceram 103%.
Fundada no Mato Grosso do Sul, atualmente a Corpal atua em seis estados. De acordo com ela própria, 30 empreendimentos foram lançados desde sua fundação, há 14 anos, e outros 30 estão em andamento.
A sigla da empresa dos irmãos Fuziy mantém o nome da companhia criada pelo pai décadas antes, indicando a relação entre as atividades no ramo imobiliário e do agronegócio: Comércio e Representação de Produtos Agrícolas.
De fato, para além do mercado de imóveis, a família possui empresas que atuam com pós-colheita e comércio atacadista de soja, consultoria em gestão empresarial, financiamento de crédito, comércio de combustíveis, minerais e produtos siderúrgicos, entre outros.
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Procurada, a Corpal Incorporadora e Construtora informou que, depois de ter informações requisitadas pelo MPF, paralisou as obras na área desde o último 29 de março. Já os Guarani e Kaiowá afirmam que a construção só foi interrompida depois que fizeram a retomada.
A empresa diz, ainda, que "já prestou todos os esclarecimentos necessários", que "as ações relacionadas ao terreno em questão seguem rigorosamente as legislações em vigor e que possui todas as autorizações e licenças exigidas pelos órgãos responsáveis para a construção do empreendimento". Por fim, a Corpal informou que mantém "diálogo aberto com representantes das comunidades indígenas".
*O nome foi alterado, por questões de segurança.
Edição: Nicolau Soares