Um grupo de dezenas de entidades ligadas ao ensino da geografia e de outros setores publicou uma nota conjunta em resposta a pedido de censura da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) – a famosa bancada ruralista – que pediu anulação de três questões do primeiro dia de provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2023 alegando suposto "cunho ideológico". As entidades apontam que todas as questões foram elaboradas com rigor científico.
Os representantes do agronegócio no Congresso se incomodaram com questões que tinham textos-base que mencionavam o avanço da cultura da soja e o desmatamento na Amazônia, a exploração de trabalhadores e o uso indiscriminado de agrotóxicos no Cerrado, e as perspectivas da corrida espacial por bilionários.
Em nota oficial, integrantes da FPA afirmaram que "as perguntas são mal formuladas, de comprovação unicamente ideológica e permite que o aluno marque qualquer resposta, dependendo do seu ponto de vista", e requisitaram a presença do ministro da Educação, Camilo Santana, para prestar esclarecimentos no Congresso.
A nota publicada pelas entidades acadêmicas refuta os argumentos dos ruralistas e destaca que os enunciados das questões contam com textos vindos de pesquisas e publicações científicas produzidas por geógrafos com trabalho reconhecido no campo da geografia agrária.
"Os excertos utilizados pelos elaboradores da prova do ENEM 2023 nos enunciados das questões que motivam a tentativa de censura pela Frente Parlamentar da Agropecuária [...] expressam determinados aspectos do que as pesquisas científicas dos respectivos geógrafos concluem sobre as realidades analisadas. Tais pesquisas reiteram algo que não apenas a comunidade geográfica tem alertado, mas toda a comunidade científica de um modo geral, independente da área científica e de ser brasileira ou estrangeira, bem como técnicos de órgãos estatais nacionais e internacionais que analisam informações sobre o Brasil: o avanço do agronegócio violenta e desterritorializa comunidades tradicionais que dominam o manejo sustentável da biodiversidade, especialmente nos biomas Cerrado e Amazônia. Parte desse avanço é realizada sob o signo da 'grilagem de terras', o que significa apropriação privada ilegal e ilegítima de terras públicas", diz trecho do texto.
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As entidades afirmam que os parlamentares que assinam a nota guardam "ranços do negacionismo científico que marcou o tenebroso período recente de governo fascista, ultraliberal e de extrema-direita, que esta mesma bancada ruralista ajudou a eleger e a manter no poder".
"Vale, por fim, destacar que a nota de ameaça e censura publicada pela Frente Parlamentar da Agropecuária usa a noção de negacionismo científico contra os próprios cientistas e os resultados das suas pesquisas, em uma inversão absurda e tragicômica da realidade. Ao acusar os próprios cientistas de negacionistas a FPA não apresentou as suas pesquisas científicas, tendo destacado dados econômicos (e territoriais) em certa parte contestáveis, o que revela o seu verdadeiro interesse: o lucro a qualquer custo", complementam.
Confira abaixo a nota na íntegra:
Nesta segunda-feira, 06 de novembro de 2023, noticiários brasileiros ecoaram vozes de parte da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) do Congresso Nacional – mais conhecida como bancada ruralista – destoantes com 3 questões componentes do repertório da prova do ENEM 2023, aplicada no domingo, 05 de novembro. Dessas 3 questões, duas têm como enunciado excertos de pesquisas e publicações científicas produzidas por renomados geógrafos brasileiros do campo da Geografia Agrária, com mais de 40 anos de pesquisas científicas realizadas sobre o tema em questão. Na alegação dos parlamentares, esses enunciados estão eivados de “ideologia” contra o agronegócio e, portanto, devem ser anulados, sob o risco de se impetrar uma ação judicial para o cancelamento de todo o certame.
Sobre esta contenda, a ANPEGE – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (que reúne 76 programas de pós-graduação dos 80 existentes nesta área no país e que conta com mais de 5 mil pesquisadores), juntamente com a AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros, têm a dizer o seguinte:
1. O conhecimento científico é produzido a partir de minuciosa investigação que levanta, organiza, seleciona, classifica, quantifica, qualifica e processa informações sobre dada realidade material e o seu cruzamento e articulação com teorias afins. Isto vale para todas as áreas científicas e, portanto, também para as Ciências Humanas e Sociais. Vale pontuar que boa parte das pesquisas que têm como tema os problemas agrários/territoriais no Brasil buscam, também, fontes primárias. Isto quer dizer que pesquisadores(as) vão a campo e coletam informações diretas, colhem depoimentos, mapeiam áreas, etc., para depois cotejar essas informações com dados secundários e o escopo teórico conceitual disponível.
2. A Geografia Agrária, campo da área científica da Geografia, produz conhecimento científico sobre a realidade material da vida no campo: suas dinâmicas produtivas e territoriais; as diferentes formas de apropriação da terra rural; os modos de vida; as condições de trabalho no campo; os tensionamentos; os conflitos de interesses; a violência nas áreas rurais; a importância da preservação ambiental; os impactos da modernização sobre o solo, o clima, os recursos hídricos e as florestas; a relação e a distinção entre produção de alimentos e produção de commodities; a economia agrícola e suas relações espaciais; as articulações entre a produção local e a sua demanda internacional; a relação entre mercado financeiro e agricultura; e, mais recentemente, retornou a estudar a fome na sociedade brasileira, problema dramático que voltou a assombrar a realidade de um país que se diz produtor de alimentos; dentre outros temas.
3. Os excertos utilizados pelos elaboradores da prova do ENEM 2023 nos enunciados das questões que motivam a tentativa de censura pela Frente Parlamentar da Agropecuária, notadamente nas de número 70 (da prova branca: 71 na azul, 57 na amarela e 81 na rosa) e 89 (da prova branca: 48 na azul, 81 na amarela e 57 na rosa), expressam determinados aspectos do que as pesquisas científicas dos respectivos geógrafos concluem sobre as realidades analisadas. Tais pesquisas reiteram algo que não apenas a comunidade geográfica tem alertado, mas toda a comunidade científica de um modo geral, independente da área científica e de ser brasileira ou estrangeira, bem como técnicos de órgãos estatais nacionais e internacionais que analisam informações sobre o Brasil: o avanço do agronegócio violenta e desterritorializa comunidades tradicionais que dominam o manejo sustentável da biodiversidade, especialmente nos biomas Cerrado e Amazônia. Parte desse avanço é realizada sob o signo da “grilagem de terras”, o que significa apropriação privada ilegal e ilegítima de terras públicas.
4. Na Amazônia – território constituído fundamentalmente por áreas devolutas – a extração madeireira, as queimadas e a pecuária (todas produtoras de CO² e de gás metano) são estágios anteriores à produção de commodities, com destaque para a soja. É cientificamente comprovado que a compressão da floresta tem reduzido a absorção desses mesmos gases e a produção do oxigênio, bem como diminuído a constituição dos chamados “rios voadoras”, que não só renovam a própria Floresta Amazônica como também hidrata o Cerrado. Este é responsável pela produção e distribuição de água doce a parte do continente americano, uma vez que as raízes profundas de suas gramíneas permitem a absorção da água das chuvas às profundezas da terra, alimentando os aquíferos de Guarani, Bambuí e Urucuia. Contudo, a radical transformação da paisagem natural do Cerrado pelo agronegócio desde a década de 1970 reduziu drasticamente o seu potencial de produtor de água doce. É importante destacar que este é um conhecimento científico sedimentado na literatura na nacional e internacional há mais de 30 anos.
5. Os pesquisadores autores dos textos utilizados na prova do ENEM são doutores com vasta experiência acadêmica e científica, com larga publicação de livros e artigos, carreira consolidada e premiados por suas respectivas comunidades. As conclusões de suas pesquisas estão em consonância com o que apontam o IBGE, o IPEA, o INPA, os institutos estrangeiros dedicados a compreender a dinâmica ambiental brasileira e que subsidiam o entendimento de governantes das principais nações mundiais sobre a importância dos biomas brasileiros.
Com base nessa compreensão, identificamos na insatisfação e na manifestação barulhenta de parte dos congressistas ranços do negacionismo científico que marcou o tenebroso período recente de governo fascista, ultraliberal e de extrema-direita, que esta mesma bancada ruralista ajudou a eleger e a manter no poder. Este comportamento rancoroso sim, precisa ser compreendido como manifestação de uma ideologia extemporânea, classista e excludente, que sentencia o Brasil a ser uma nação socialmente injusta e com desigualdades econômicas abissais, subordinada ao colonialismo globalitário e que condena o mundo à beira do fim. Vale, por fim, destacar que a nota de ameaça e censura publicada pela Frente Parlamentar da Agropecuária usa a noção de negacionismo científico contra os próprios cientistas e os resultados das suas pesquisas, em uma inversão absurda e tragicômica da realidade. Ao acusar os próprios cientistas de negacionistas a FPA não apresentou as suas pesquisas científicas, tendo destacado dados econômicos (e territoriais) em certa parte contestáveis, o que revela o seu verdadeiro interesse: o lucro a qualquer custo.
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ASSINAM ESTA NOTA:
ABA – Associação Brasileira de Antropologia
ABEJ – Associação Brasileira de Jornalismo
ABEPSS – Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social
ABPI – Associação Brasileira dos Professores de Italiano
ABRALIC – Associação Brasileira de Literatura Comparada
ABRAPCORP – Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e de Relações Públicas
ABRI – Associação Brasileira de Relações Internacionais
ADUEG – Associação dos Docentes da UEG
AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Goiânia
AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Niterói
AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção João Pessoa
ALAB – Associação de Linguística Aplicada do Brasil
ANPAE – Associação Nacional de Política e Administração da Educação – Seção Tocantins
ANPOF – Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia
ANPOLL – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística
ANPPON – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música
ANPUH - Associação Nacional de História
ANPUH – Associação Nacional de História / seção Amapá
ASSIBGE – Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Fundações Públicas Federais de Geografia e Estatística
Associação Cultura, Cidade e Arte
COMPÓS – Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
Conselho Editorial da Revista Sapiência: sociedade, saberes e práticas educacionais
Conselho Editorial da Revista da ANPEGE
GDECO-ETNOPO - Grupo de Pesquisa e Ação de Educação Popular PluriEtnoDecolonial / CNPq
GEACT - Grupo de Estudos de Ações Coletivas, Conflitualidades e Territórios - UnB
GEAR – Grupo de Pesquisa Geografia Agrária, Ruralidades e Território / CNPq
GEDITE - Grupo de Estudos de Dinâmicas Territoriais / UEMA
GEFORD – Grupo de Pesquisa em Geografia, Ensino e Formação Docente / CNPq
GEGATE – Grupo de Estudos de Geografia Agrária e Território / UEPG-PR
GeoAgraria – UFMS / CPTL
GEOEDUQA - Grupo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Geografia, Educação do Campo e Questão Agrária / UFGD
GEPES – Grupo de Pesquisa Redes de Poder, Migrações e Dinâmicas Territoriais / CNPq
GEPPD – Grupo de Estudo e Pesquisas em Políticas Públicas e Desenvolvimento / CNPq
GERES - Grupo de Estudos Regionais e Socioespaciais / UNIFAL-MG
Grupo de Estudos Espaço, Sujeito e Existência “Dona Alzira” / CNPq
GWATÁ - Núcleo de Agroecologia e Educação do Campo
INCT Observatório das Metrópoles – IPPUR (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional) / UFRJ
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
LabÉdoCampo – Laboratório de Educação do Campo no Semiárido Mineiro: Diversidade, Território, Agroecologia / Unimontes
LABRURAL - Laboratório de Estudos Rurais / UFRN
LAGEA - Laboratório de Geografia Agrária / UFU
LEHSTAM - Laboratório de Estudos da História Social do Trabalho na Amazônia / UNIFAP
LERASSP - Laboratório de Estudos Regionais e Agrários no Sul e Sudeste do Pará / UNIFESSPA
NEPAT – Núcleo de Estudos e Pesquisa Geografia Agrária e Dinâmicas Territoriais / UFG
LEPENG - Laboratório de Extensão, Pesquisa e Ensino em Geografia / UFMA
NEPEM – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Espaço e Metropolização / CNPq
NERA - Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária – FCT / UNESP
OPTE – Observatório de Políticas Territoriais e Educacionais / CNPq
Observatório da Democracia, Políticas Públicas e Direitos Humanos / UNIFAP
Observatório da Questão Agrária no Paraná
PGE-UEM – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Maringá / PR
PPGEO-UEG – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Goiás / campus Cora Coralina
PPGEO-UEMA – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual do Maranhão
PPGEO-UEPG – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Ponta Grossa / PR
PPGEO-UESB – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual da Bahia
PPGEO-UFAC – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Acre
PPGEO-UFG – Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás
PPGEO-UFMS - Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul / CPAQ
PPGEO-UFMT – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Mato Grosso
PPGEO-UFPEL – Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Pelotas / RS
PPGEO-UFS – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Sergipe
PPGEO-UFSJ – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de São João Del-Rei / MG
PPGEO-UFV – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Viçosa
PPGG-UEPA – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual do Pará
PPGG-UFGD - Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Grande Dourados / MT
PPGG-UFPB – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Paraíba
PPGG-UFRJ – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
PPGG-UFSC – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina
PPGG-UNICENTRO – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Unicentro / PR
PPGG-UNIOESTE – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Unioste / Francisco Beltrão / PR
PPGG-UNIR – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Rondônia
PPGGEO-UFMS – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Maria / CPTL
PPGGEO-UNEMAT – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Mato Grosso
PPGGEO-UNIOEST – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – campus Marechal Cândido Rondon
PPGH-UNIFAP – Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federeal do Amapá
PPGH-USP – Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo
Programa de Pós-Graduação em Geografia – FFP / UERJ
Programa de Pós-graduação em Geografia da Unicamp
PROPGEO-UVA – Programa de Pós-Graduação Profissional em Geografia da Universidade Estadual Vale do Acaraú / CE
ReCiMe – Rede de Pesquisadores sobre Cidades Médias
Rede DATALUTA - Rede Brasileira de Pesquisa das Lutas por Espaços e Territórios
RNCD – Rede Nacional de Combate à Desinformação
SBEC – Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos
SBEnBio – Associação Brasileira de Ensino de Biologia
SBHE – Sociedade Brasileira de História da Educação
SINASEFE – Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica – seção Jataí
SOCICOM – Federação Brasileira das Associações Científicas e Acadêmicas de Comunicação
TerritoriAL – Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe – Unesp / Reitoria
Edição: Nicolau Soares