Em seu relatório apresentado nesta terça-feira (17), a senadora Eliziane Gama (PSD-MA), da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investiga os atos golpistas do 8 de janeiro, criticou forças de segurança, incluindo policiais e militares. Da lista com 61 nomes sugeridos para serem indiciados, 30 são militares, incluindo nomes de alta patente. Desses, sete são da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) e os outros, das Forças Armadas.
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Apesar de serem apenas sugestões de indiciamentos que devem ser encaminhadas ao Ministério Público e à Polícia Federal, somadas à exposição dos militares durante as sessões da comissão, o impacto para a imagem das Forças Armadas é negativo.
Nas palavras de Jorge Rodrigues, pesquisador do Instituto Tricontinental, a expectativa de que haveria uma “certa suavidade” em relação aos militares não se comprovou, e o impacto político é “inegável”.
“Só o fato de estarmos discutindo isso agora comprova esse impacto. São altos oficiais do Exército, pessoas que não só são do ciclo próximo do Bolsonaro [PL], mas que têm uma representação pela carreira que tiveram da fina flor das Forças Armadas brasileiras. Essas pessoas estão sendo alvo por tentativa de golpe de Estado. Então é inegável que haverá um impacto político”, afirma Rodrigues.
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O pesquisador argumenta que a lista de sugestão de indiciamento se soma à politização dos militares nos últimos anos, que contribuiu para diminuir a confiança da população nas Forças Armadas. Segundo a pesquisa A Cara da Democracia, do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (IDDC), publicada em setembro deste ano, 20% dos entrevistados dizem “confiar muito” nas Forças Armadas. Em setembro do ano passado, esse índice foi de 27%. Na mesma linha, aquele que não confiam "nem um pouco” nos militares saiu de 26% para 30%.
“Nos últimos seis anos [desde o governo de Michel Temer, aproximadamente], o movimento dos militares de ocupar a polícia institucional e cargos no Executivo gerou um ônus em termos de percepção da sociedade para com as Forças Armadas. Sem dúvida, os últimos acontecimentos e o relatório da CPMI entram nesse bojo”, afirma Rodrigues.
Casos isolados?
Ainda que as responsabilizações propostas no relatório da CPMI sejam individuais, tendo em vista até mesmo a ausência de ferramentas no ordenamento jurídico brasileiro para punir as Forças Armadas como um todo, o professor afirma que não é possível olhar para as condutas dos militares como casos isolados.
“A ideia de casos isolados é risível, porque a própria estrutura do Exército, da Marinha e da Força Aérea brasileira é tal que só chegam no topo da carreira aquelas figuras, cujos pares entendem como aptas a comando. A gente está vendo [na lista de sugestões de indiciamentos] generais e almirantes que chegaram no topo da carreira. Então quer dizer que todo o processo de escrutínio dentro das forças de nada serviu?”, questiona Rodrigues. “A alternativa é dizer que então a instituição não está preparada para decidir quem vai chegar no topo da carreira.”
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Nessa perspectiva, Juliana Bigatão Puig, professora do Departamento de Relações Internacionais da Unifesp e coordenadora do Observatório Brasileiro de Defesa e Forças Armadas, afirma que o “impacto é mais no sentido de a gente pensar o que são as Forças Armadas e quais são as suas funções”.
Por isso, a professora reafirma a necessidade de repensar a presença de militares na administração pública ou “o quanto isso é recomendado dentro de uma democracia”, ou seja, “a presença de militares nas mais diversas esferas do governo, em cargos que deveriam ser ocupados por civis”. As forças “deveriam estar cuidando da defesa nacional, de acordo com o que diz a nossa Constituição. Mas foram cada vez mais sendo politizadas”.
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“O relatório tem de ser lido num contexto mais amplo de que durante os quatro anos do governo Bolsonaro, tivemos várias demonstrações de envolvimento de membros das Forças Armadas em atos antidemocráticos que não só o 8 de janeiro, mas manifestações, motociatas, comícios e vários outros movimentos que tinham a presença da alta cúpula e de militares da reserva também que estavam envolvidos no governo Bolsonaro”, afirma Puig.
Responsabilização no relatório
A senadora Eliziane Gama atribuiu a policiais e militares principalmente os crimes de associação criminosa, violência política, abolição violenta do Estado democrático de direito e golpe de Estado. Ao longo das 1.333 páginas, que reúne quase cinco meses de trabalho, Eliziane Gama criticou a “herança autoritária” advinda da ditadura militar de 1964.
Em suas palavras, o 8 de janeiro é “resultado da omissão do Exército em desmobilizar acampamentos ilegais que reivindicavam intervenção militar; da ambiguidade das manifestações e notas oficiais das Forças Armadas, que terminavam por encorajar os manifestantes, ao se recusarem a condenar explicitamente os atos que atentavam contra o Estado Democrático de Direito; e de ameaças veladas à independência dos poderes”.
A congressista defendeu que durante todos os períodos republicanos, os militares “se colocaram como tutores da Nação”. E que no Brasil a sociedade civil nunca controlou as Forças Armadas, como é feito em “democracias consolidadas”.
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“Essa ausência de controle produz, como resultados diretos, o medo permanente, por parte da sociedade civil, de um novo golpe de Estado, como o de 1964; e, em setores das Forças Armadas, a crença em uma inexistente prerrogativa extraconstitucional para interferir na atuação dos Poderes da República”, escreveu Eliziane Gama em seu relatório.
É nesse sentido que, para a relatora, os atos criminosos do 8 de janeiro que culminaram na invasão e depredação dos prédios dos Três Poderes, é “produto direto dessa herança autoritária, que ainda teima em persistir em alguns setores militares”.
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“A atuação — omissiva e comissiva — das forças policiais e militares no Oito de Janeiro é motivo de preocupação, e assinala uma ameaça recorrente ao Estado Democrático de Direito: a cooptação, o uso e o aparelhamento de órgãos de Estado ― e, no caso, de braços armados do Estado ― como instrumento para promover uma tomada de poder.”
Veja a lista dos militares com pedido de indiciamento:
Ex-presidente da República:
Jair Bolsonaro: capitão da reserva do Exército
Ex-ministros de Bolsonaro:
Walter Braga Netto: general da reserva do Exército, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa, candidato a vice de Bolsonaro em 2022
Augusto Heleno: general da reserva do Exército, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional
Luiz Eduardo Ramos: general da reserva do Exército, ex-ministro da Casa Civil, da Secretaria-Geral da Presidência e de Governo
Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira: general do Exército, ex-ministro da Defesa
Ex-comandantes das Forças Armadas:
Almir Garnier Santos: almirante e ex-comandante da Marinha
Marco Antônio Freire Gomes: general e ex-comandante do Exército
Ex-ajudantes de ordens de Bolsonaro:
Mauro Cid: tenente-coronel do Exército
Marcelo Costa Câmara: coronel do Exército
Militares ligados a Bolsonaro:
Luís Marcos dos Reis: sargento do Exército;
Ailton Gonçalves Moraes Barros: ex-major expulso do Exército
Antônio Elcio Franco Filho: coronel do Exército
Jean Lawand Júnior: coronel do Exército
Ridauto Lúcio Fernandes: general da reserva do Exército
Militares do Gabinete de Segurança Institucional (GSI):
Carlos José Russo Assumpção Penteado: general do Exército, então secretário-executivo do GSI
Carlos Feitosa Rodrigues: general de Exército, então chefe da Secretaria de Coordenação e Segurança Presidencial do GSI
Wanderli Baptista da Silva Junior: coronel do Exército, então diretor-adjunto do Departamento de Segurança Presidencial do GSI
André Luiz Furtado Garcia: coronel do Exército, então coordenador-geral de Segurança de Instalações do GSI
Alex Marcos Barbosa Santos: tenente-coronel do Exército, ex-coordenador-adjunto da Coordenação Geral de Segurança de Instalações
José Eduardo Natale de Paula Pereira: major do Exército, então integrante da Coordenaria de Segurança de Instalações do GSI
Laércio da Costa Júnior: sargento do Exército, encarregado de segurança de instalações do GSI
Alexandre Santos de Amorim: coronel do Exército, então coordenador-geral de Análise de Risco do GSI
Jader Silva Santos: tenente-coronel da PMDF, então subchefe da Coordenadoria de Análise de Risco do GSI
Policiais militares do DF:
Fábio Augusto Vieira: coronel e ex-comandante-geral da PMDF
Klepter Rosa Gonçalves: coronel e ex-comandante-geral da PMDF
Jorge Eduardo Barreto Naime: coronel e ex-comandante de Operações da Polícia Militar do Distrito Federal
Paulo José Ferreira de Sousa Bezerra: coronel e ex-comandante interino do Departamento de Operações (DOP)
Marcelo Casimiro Vasconcelos Rodrigues – coronel e ex-comandante do 1º Comando de Policiamento Regional da Polícia Militar do Distrito
Flávio Silvestre de Alencar – major
Rafael Pereira Martins – tenente
Edição: Rodrigo Durão Coelho