Os militares que se recusaram a participar do plano de um golpe de Estado e de assassinato de autoridades brasileiras podem ter prevaricado ao não denunciar os crimes em andamento sobre os quais tinham conhecimento.
Na semana passada, a Polícia Federal indiciou 37 pessoas pelos crimes de tentativa de golpe, tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e organização criminosa. Dos indiciados, 25 são militares, sendo alguns, inclusive, da alta cúpula das Forças Armadas, como os generais Walter Braga Netto e Augusto Heleno, que foram ministros do governo de Jair Bolsonaro (PL), da Casa Civil e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), respectivamente.
O número de militares envolvidos poderia ser maior, e o golpe poderia ter sido consumado, se outros tivessem topado fazer parte da trama golpista elaborada para manter o ex-presidente no poder. Os ex-comandantes do Exército, o general Freire Gomes, e da Aeronáutica, o tenente-brigadeiro Baptista Júnior, foram incentivados a contribuir com o plano, mas recusaram. De acordo com o relatório da PF, ambos “rechaçaram qualquer adesão de suas respectivas forças ao intento golpista, reiterando que não concordariam com qualquer ato que impedisse a posse do governo eleito”.
Até onde vão as investigações, no entanto, tanto Freire Gomes quanto Baptista Júnior não levaram o caso para as autoridades policiais. Rodrigo Lentz, advogado e professor de Ciência Política, apontam que os ex-comandantes prevaricaram, o que ocorre quando um funcionário público se depara com uma atitude manifestamente criminosa e não comunica as autoridades competentes por motivos diversos.
“A depender do comportamento desses dois comandantes, o país jamais saberia de tudo o que aconteceu, porque o comportamento deles foi de silêncio. Há uma confusão deliberada de alçar alguns heróis legalistas do Exército e da Força Aérea Brasileira, que basicamente são dois comandantes”, afirma Lentz.
Além da omissão, os ex-comandantes podem ter atuado diretamente para obstruir provas dos crimes. As investigações ainda não deram conta da totalidade dessa informação, no entanto. Um dos trechos do relatório da PF mostra que, ao ex-ajudante de ordens do ex-presidente, o tenente-coronel Mauro Cid, Sério Cavalieri, também militar, enviou prints de conversas com um interlocutor chamado “Riva” com a informação de que militares teriam rasgado um decreto golpista assinado por Bolsonaro. “Rasgaram o documento que o 01 assinou”, possivelmente se referindo a um decreto de golpe e ao ex-presidente como “01”.
“Confirmados alguns relatos das provas colhidas que constam no relatório da Polícia Federal, esses militares, inclusive, destruíram o que seria a prova dos crimes que deveriam noticiar”, afirma Rodrigo Lentz sobre a informação presente no relatório. E reforça: “A depender desses comandantes, eu repito, o Brasil jamais saberia que estivemos às portas de um golpe de Estado, seja porque rasgaram o decreto ou porque se mantiveram em silêncio”.
O tamanho das Forças Armadas no golpismo
A despeito da omissão dos militares, Lentz destaca a importância de distinguir os militares que aderiram à tentativa de golpe daqueles que rejeitaram a proposta, bem como dos golpistas em relação às Forças Armadas. As Forças Armadas, enquanto instituição, não pode ser responsabilizada, mas especialistas defendem a sua reformulação.
Ainda assim, o distanciamento da instituição acerca da trama criminosa não pode acobertar as razões pelas quais determinados militares decidiram embarcar nos planos de golpe de Estado. “As Forças Armadas educam e educaram todos esses militares que foram indiciados dizendo que o golpe de 1964 instaurou um governo democrático, que foi uma revolução democrática. Se os militares dizem que o golpe de 64 foi democrático, evidentemente que, diante de circunstâncias do presente, sobretudo numa circunstância de crise política produzida, eles vão entender que as práticas de 64 seriam democráticas em 2022”, afirma Lentz.
As distinções não podem, em resumo, “impedir de que se vejam as razões estruturais, institucionais e organizacionais do comportamento desses militares que aderiram, tramaram e deram início a um golpe de estado com o Brasil”.
Soma-se a essa análise a pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes/Unesp), Ana Penido, para quem a divisão interna no alto comando das forças se deve mais a um apego às instituições por parte daqueles que se recusaram e participar da tentativa de golpe.
Os militares que se opuseram ao golpe estavam preocupados com as consequências para a instituição caso a tentativa fracassasse. “Está se tentando forçar uma interpretação na lógica de que aqueles ali são democratas, são legalistas. Mas, no meu entendimento, a principal dimensão é uma dimensão de apego institucional. Eles estavam preocupados que, se desse errado, quem ficaria com a responsabilidade? Os militares”, afirma.
“A principal contradição dentro do alto comando não é entre direita e esquerda ou liberais e conservadores. A principal contradição entre os militares é entre quem tem um apego institucional e quem se tornou literalmente militante”, diz Penido.
A recusa, por exemplo, em participar da tentativa do golpe por parte de Freire Gomes e Baptista Júnior resultou em uma ofensiva liderada por Braga Neto, que chegou a determinar ao major reformado do Exército Ailton Gonçalves Barros o direcionamento de ataques pessoais, incluindo familiares, aos ex-comandantes na tentativa de incluí-los ao grupo criminoso. O comportamento deixa evidente a ausência de qualquer institucionalidade intrínseca aos cargos.
Em determinado momento, Braga Netto chega a concordar em “oferecer a cabeça” de Freire Gomes durante mensagens trocadas com Ailton Barros. "Vamos oferecer a cabeça dele aos leões", escreveu Barros. Em resposta, Braga Netto disse: “Oferece a cabeça dele. Cagão”. Em outro momento, diz sobre o comandante da Aeronáutica: “Senta o pau no Batista Junior (...) traidor da pátria. Daí para frente. Inferniza a vida dele e da família”.
“As mensagens que têm saído a público deixam evidente que tinha um processo de tensionamento interno muito grande, principalmente quando você vê coronéis xingando generais”, analisa Penido.
Reformulação das Forças Armadas
A pesquisadora defende que tais elementos fazem surgir um momento propício para discutir uma reforma profunda nas Forças Armadas, com o objetivo de fortalecer o controle civil e garantir a democracia no país.
O desafio está em reestruturar a instituição para que seus membros atuem de forma mais ética e sirvam ao interesse público. "A grande questão é: como é que a gente olha e constrói uma outra forma de controle? Não só dos indivíduos, mas da instituição como um todo. É essa reforma que precisamos para que ela sirva ao crescimento do Brasil", destacou.
Um dos pontos enfatizados pela pesquisadora é um controle civil fortalecido capaz de exercer de fazer com que prevaleça o interesse público sobre o sentimento de lealdade e coesão, que podem servir para encobrir atitudes criminosas.
Nesta linha, Rodrigo Lentz afirma que é “necessária uma prestação de contas institucional, ou seja, as Forças Armadas precisam dar uma resposta à sociedade e às autoridades da República”.
“Quais são as medidas, a partir de agora, as Forças Armadas tomarão para que isso não se repita? Essa é a grande pergunta. A gente tende a colocar tudo nos ombros dos funcionários públicos, porém, é o comando político da administração, ou seja, o comando político da República, com a sociedade, que deve assumir como tarefa produzir garantias de não repetição”, diz.
Edição: Nathallia Fonseca