Migração

ONU: Apesar de US$ 2,5 bi arrecadados, 67% dos migrantes venezuelanos passam necessidade

Segundo relatório, mais de 4,4 milhões sofrem com situação, mesmo com investimento de países ricos

Caracas (Venezuela) |
Pesquisadores apontam reflexos das sanções na crise migratória venezuelana - ONU/R4V

Desde o início da crise migratória de venezuelanos, diversos países da comunidade internacional, entre os mais ricos do mundo, já investiram mais de 2,5 bilhões de dólares em programas de assistência. No entanto, mais da metade dos venezuelanos que deixaram seu país ainda passam necessidades básicas e estão em situação de vulnerabilidade.

Os dados são da Plataforma Regional de Coordenação Interagância R4V, um fórum criado em 2018 em parceria com a Organização das Nações Unidas (ONU) para coordenar as ações das agências do órgão para assistência aos migrantes venezuelanos. Os fundos são arrecadados pela R4V para a aplicação do Plano de Resposta para Refugiados e Migrantes da Venezuela (RMRP, na sigla em inglês) em 17 países da América Latina.

Segundo um relatório publicado na última segunda-feira (11), mais de 4,4 milhões de migrantes da Venezuela estão em condições de necessidade, conceito que mede o grau da falta de acesso a serviços e direitos como educação, segurança alimentar, moradia e saúde.

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A quantidade de migrantes nessas condições representa quase 68% do total de venezuelanos que já deixaram seu país. Segundo números da própria R4V, são mais de 7,7 milhões. Os dados do total de migrantes foram compilados de acordo com cifras oferecidas pelos governos dos países receptores e, portanto, cada decimal pode não representar um único indivíduo.

Quatro anos após as primeiras ondas massivas de migrantes e planos de auxílio serem implementados, o montante acumulado em doações e repasses de entidades de diversos países do mundo pela R4V entre 2019 e agosto de 2023 foi de 2,504 bilhões de dólares. No entanto, apesar do investimento bilionário, a situação de milhões de venezuelanos é de vulnerabilidade.

Dos mais de 4 milhões em condição de necessidade, 54% tem falta de acesso à saúde, 48% à moradia e mais de 60% à integração com as populações locais. Além disso, na maioria dos países receptores, a falta de integração, de proteção e de segurança alimentar foram listados pelos migrantes como os três principais problemas enfrentados.

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Para Ana Gabriela Salazar, pesquisadora da ONG venezuelana de direitos humanos Sures, o contexto político implícito no tema migratório venezuelano estimulou um processo de "mercantilização" da migração e colocou obstáculos para o diálogo binacional entre os países receptores e a Venezuela, apontado por ela como mecanismo fundamental para a solução da crise.

"Após os primeiros anos de estímulo à migração de venezuelanos, com algumas facilidades oferecidas, hoje a realidade é que muitos países exigem vistos e trâmites burocráticos que restringem a entrada e a permanência dessas pessoas", afirma. Segundo o relatório da R4V, mais de 36% dos migrantes estão em situação irregular nos países receptores. Para Salazar, esses espaços de diálogo entre governos latino-americanos e a Venezuela foram obstaculizados pela chamada política de "pressão máxima" elaborada pelos EUA, à qual diversos países da região aderiram.

"Essa estratégia incluiu a aplicação de sanções contra a Venezuela durante o governo Donald Trump e isso aumentou a migração venezuelana, porque as pessoas buscavam melhorar suas condições de vida devido aos efeitos da situação econômica no país. Isso coincidiu com a decisão de alguns países latino-americanos de desconhecer o governo da Venezuela, romper relações, fechar embaixadas e isso prejudicou possíveis soluções binacionais para o problema migratório", aponta.

A pesquisadora diz que é impossível dissociar a elevação das tensões políticas entre Venezuela e EUA da crise migratória. Em 2014, o país sul-americano foi declarado por Washington como uma "ameaça inusual e extraordinária", o que permitiu a aplicação de sanções econômicas que se agravaram a partir de 2019, quando a indústria petroleira, polo mais dinâmico da economia venezuelana, foi bloqueada.

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Desde então, a Venezuela é alvo de mais de 900 sanções que, segundo cifras oficiais, causaram uma perda 98% na arrecadação de dólares e uma contração de mais de 75% no PIB. De acordo com os dados da R4V, a maior parte das doações para o fundo de assistência à migração venezuelana provém dos EUA e da União Europeia que são, justamente, os formuladores e aplicadores das sanções contra a Venezuela.

Em 2018, o governo venezuelano criou um plano de repatriação para migrantes que manifestem desejo de regressar ao país. No entanto, o programa enfrenta dificuldades como a ausência de representação diplomática em algumas nações e os atritos políticos entre governos. O último caso expressivo de complicações durante a repatriação ocorreu com 115 migrantes que estavam retidos na fronteira do Chile com o Peru.

Pouco dinheiro?

Apesar dos 2,5 bilhões de dólares que foram arrecadados desde 2019, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados fez um alerta para a necessidade de mais financiamento. Na última terça-feira (12), um dia após a publicação do relatório da R4V, o UNHCR disse que "aumentar o financiamento para países na região [América Latina] é extremamente necessário".

Isso porque a agência alega que dos 1,7 bilhões estipulados pela R4V como orçamento necessário para o ano de 2023, apenas 12% do total foi arrecadado até agosto. "Novos investimentos podem salvar vidas", afirma a ONU.

Para o sociólogo venezuelano Luis Ernesto Navas, pesquisador do tema migratório na região, o alerta das Nações Unidas não é extraordinário nem inédito. "Eu já acompanhei como ouvinte duas conferências internacionais em anos anteriores da R4V e esse tipo de pedido por mais investimento é normal", diz.

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O pesquisador ainda diz não acreditar que países ricos como europeus e os EUA tenham "abandonado" a questão migratória, nem que os países receptores tenham deixado de tratar do tema. "O que há é uma mudança na retórica de alguns países, mas não me parece haver uma mudança com relação ao financiamento, porque sempre foi assim, nunca se recebe o montante total estipulado e oferecido", afirma.

De fato, as metas de arrecadação em doações planejadas pela R4V nunca foram alcançadas em sua totalidade desde o início do projeto. Em 2019, a plataforma conseguiu arrecadar 52% do total, o que representou 384 milhões de dólares. Já em 2020, foram arrecadados 46% do estipulado, em 2021 foram 40% e em 2022 pouco mais de 37%.

Apesar de ter o menor percentual, no ano passado foi o período em que a plataforma conseguiu arrecadar mais doações e repasses, totalizando mais de 667 milhões de dólares. A medição deste ano corresponde só até o mês de agosto e totaliza 205 milhões de dólares.
 

Edição: Patrícia de Matos