Mais de uma centena de migrantes venezuelanos puderam retornar ao seu país de origem após passarem duas semanas retidos na fronteira entre o Chile e o Peru por proibições impostas pelos governos de Santiago e Lima. No último domingo (7), um avião providenciado pela Venezuela pousou no Aeroporto Internacional Simón Bolívar, que atende Caracas, trazendo 115 cidadãos que desejavam regressar após migrarem por conta da crise econômica.
O episódio, que só se resolveu quando Santiago aceitou a vinda do voo humanitário enviado por Caracas, adquiriu ares de tensão após os governos chileno e peruano militarizarem ambos os lados da fronteira e obrigarem os migrantes a permanecerem por duas semanas desabrigados na cidade chilena de Arica, que faz fronteira com o sul da província peruana de Tacna.
O grupo, do qual faziam parte mais de 200 migrantes, entre venezuelanos, colombianos, haitianos e salvadorenhos, tentava atravessar o território peruano para regressar a seus países de origem. O fluxo se originou nas últimas semanas, após o governo do presidente chileno, Gabriel Boric, endurecer as normas contra migração, direcionadas principalmente a venezuelanos que chegam diariamente ao país através da fronteira norte com a Bolívia.
No início de março, logo após decretar a militarização de províncias e cidades fronteiriças com a Bolívia e o Peru, Boric adotou um tom conservador contra os migrantes e afirmou que os habitantes dessas regiões tiveram que "experimentar os efeitos do ingresso massivo e irregular de pessoas que chegam a nosso país buscando oportunidades".
"Alguns deles também vêm com intenções de cometer crimes e eu quero ser muito claro quando digo que essas pessoas que vêm cometer crimes não são bem-vindas. Nós vamos persegui-las e vamos fazer, dentro do Estado de Direito, a vida delas impossível", disse.
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O presidente chileno ainda acusou os governos da Venezuela e da Bolívia de não auxiliarem na deportação de migrantes venezuelanos do território chileno, alegando que ambos se negariam a receber essas pessoas.
O governo boliviano respondeu Boric, dizendo que entre os dois países "não existe nenhum acordo, convênio ou instrumento bilateral que gere tal obrigação" e que o tema migratório deveria ser "abordado com as autoridades de migração de origem, evitando a estigmatização negativa do migrante e qualquer ação que possa vulnerar os direitos humanos".
Caracas, por sua vez, respondeu através de seu chanceler, Yván Gil, que esclareceu que a Venezuela não recebeu "nenhuma solicitação de trabalho coordenado com o governo do Chile a respeito de supostas deportações de venezuelanos".
As restrições impostas pelo Chile incentivaram um fluxo contrário de migrantes. Ao tentar deixar o país, se depararam com outras proibições, desta vez, por parte do governo peruano. Seguindo o exemplo do Chile, a presidente Dina Boluarte militarizou o sul da província de Tacna, na fronteira com o Chile, e negou passagem a migrantes que possuíssem alguma irregularidade nos documentos.
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Além disso, assim como Boric, Boluarte adotou um discurso hostil contra a migração e, no final de abril, quando anunciou um estado de emergência nas fronteiras, chegou a atribuir um aumento nos índices de criminalidade à chegada de venezuelanos e haitianos ao país. "Quem comete assaltos e outros crimes diariamente são estrangeiros. Entraram 800 mil venezuelanos, outros tantos haitianos e são eles que estão cometendo esses atos", disse.
Direitos humanos e politização
Em entrevista ao Brasil de Fato, a pesquisadora venezuelana Ana Gabriela Salazar, da ONG de direitos humanos Sures, expressou preocupação com as ações tomadas pelos governos do Chile e do Peru e disse que os países deveriam convocar reuniões multilaterais com a Venezuela para buscar soluções conjuntas.
"Nossa preocupação é com a tendência dos países a implementar políticas cada vez mais repressivas, cada vez mais expulsivas e aprovar normas nacionais, no plano interno de cada país, que são punitivas e que criminalizam os migrantes, aplicando cada vez mais mecanismos de controle fronteiriço e migratório utilizando as Forças Armadas", disse.
Salazar ainda afirma que, apesar das políticas internas de cada país, eles deveriam respeitar as normas sobre migração recomendadas pelas Nações Unidas e pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, dos quais Chile e Peru são signatários.
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"Para que isso aconteça, é preciso desideologizar essa questão e que os governos legitimamente eleitos sejam reconhecidos para que planos e programas tenha efetividade e aplicação como, por exemplo, o Plano Volta à Pátria, que enfrenta restrições em alguns casos nos quais há politização de espaços intergovernamentais regionais que colocam obstáculos para a atenção aos migrantes", afirma.
O Plano Volta à Pátria foi criado pelo governo venezuelano em 2018 como um método de emergência para atender a crise migratória venezuelana em países vizinhos. Através do programa, a Venezuela oferece voos humanitários de repatriação a todo e qualquer migrante venezuelano que manifeste o desejo de retornar ao país de origem.
O programa, no entanto, enfrenta diversos empecilhos políticos e diplomáticos que, muitas vezes, são sequelas do reconhecimento quase unânime na América Latina do "governo interino" de Juan Guaidó. Com a autoproclamação do ex-deputado em 2019, muitos países vizinhos passaram apenas a dialogar com forças opositoras e cortaram canais diplomáticos oficiais com o governo do presidente Nicolás Maduro, o que incluiu o fechamento de embaixadas e sedes consulares. A ausência desses serviços em muitos países sul-americanos ainda dificulta que Caracas possa manter um canal aberto com migrantes no exterior e saber, por exemplo, quantos querem regressar.
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Além disso, as sanções impostas pelos EUA contra a Venezuela também impactam negativamente na execução de voos humanitários. Na maioria dos casos, o programa Volta à Pátria é executado com aviões da companhia aérea venezuelana Conviasa, de propriedade estatal. Em muitos países a empresa não pode operar porque outras companhias e prestadores de serviço se recusam a abastecer ou receber esses aviões com medo de sofrerem sanções de Washington.
"O sofrimento, as condições desumanas, a situação de precarização a que essas pessoas foram submetidas é muito preocupante, porque demonstra uma indiferença à condição humana. Há crianças, mulheres grávidas ou que acabaram de dar à luz, idosos, ou seja, setores de população que já estão extremamente vulneráveis", argumenta Salazar.
Xenofobia serve agendas internas
A crise econômica na Venezuela, agravada pelo bloqueio imposto pelos EUA, motivou diversos venezuelanos a migrarem. Segundo dados da ONU, mais de 5 milhões de pessoas já deixaram o país desde 2014, quando começou a recessão. O fluxo migratório aumentou consideravelmente após 2017, quando Washington endureceu sua política de sanções e atacou a indústria petroleira venezuelana, principal fonte de recursos do país.
Durante os anos de maior intensidade migratória, países vizinhos da Venezuela eram governados por presidentes de direita que apoiavam a estratégia de "pressão máxima" contra Maduro elaborada pela Casa Branca. Para o professor de Direito da Universidade Central da Venezuela (UCV) Andrés Antillano, foi nesse período que a migração venezuelana passou a ser politizada e utilizada como "uma prova do fracasso político das alternativas de esquerda".
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"Os países vizinhos, então, abriram as portas à migração venezuelana, não por solidariedade, mas como um instrumento político para criminalizar a Venezuela e provar o fracasso do modelo político venezuelano", diz Antillano, em entrevista ao Brasil de Fato.
No caso dos migrantes retidos na fronteira do Chile e do Peru, o professor aponta para as debilidades do governo Boric que, segundo ele, se viu pressionado a adotar uma postura mais conservadora para tentar ganhar votos da extrema direita nas eleições para a nova assembleia constituinte. Para ele, tal postura terminou afetando os migrantes venezuelanos.
"O centro da campanha para a constituinte no Chile foi a segurança e a migração, na qual um governo de esquerda permitiu que a direita impusesse uma agenda xenófoba e securitária, a partir de uma perspectiva claramente reacionária, cujos resultados ficaram evidentes no domingo passado. No caso do Peru, um governo pouco legítimo que está contra a parede por conta dos protestos populares, que consegue, ou pelo menos tenta, trocar o problema da crise política e da legitimidade do governo de Dina Boluarte pelo perigo da migração venezuelana", explica.
Antillano ainda afirma que "em ambos os lados, o perigo da migração venezuelana, a xenofobia e o endurecimento de políticas contra a migração venezuelana serviram a agendas políticas domésticas".
Edição: Thalita Pires