Lá vão 22 anos dos atentados terroristas em Nova York (as torres gêmeas do World Trade Center), Washington (Pentágono) e Pensilvânia. As simbologias dos lugares e dos espaços atacados não deixam menor dúvida de que havia todo um pré-planejamento minucioso e atípico que não visava apenas causar a morte de seres humanos, mas enviar uma mensagem ao Ocidente e aos Estados Unidos de que todo o modelo econômico, financeiro e militar era desafiado.
Para o Ocidente e os Estados Unidos como ponta de lança, o postulado da democracia liberal, livre mercado, liberdades individuais eram o novo sacrossanto que se consagrou como apoteose triunfalista após a implosão do império soviético. Desse modo, nada havia de ser questionado sobre o caráter universalista desses valores e do papel doravante messiânico que os neoconservadores americanos e seus seguidores na Europa e no mundo deviam fazer para propagar a nova palavra e, se for necessário, implantar à força tais valores. Para os Estados Unidos, o mundo se tornou um feudo e os vassalos tinham de obedecer aos novos mandamentos.
Todavia, a história nos ensinou que nada é perfeito e muito menos eterno. A história da humanidade é cheia de exemplos de impérios e de líderes que pereceram e muitas vezes de forma dramática. Para os ideólogos do modelo ocidental, nada disso poderia ser aplicado ao novo império já que todas as supostas variáveis de queda ou inflexão eram estudadas em think tanks e, portanto, seriam tranquilamente evitadas.
É sabido hoje os contornos da transformação de um aliado para inimigo número um. Osama Bin Laden, membro da aristocracia saudita e que colocou todo seu auxílio financeiro e ideológico para pôr em prática uma estratégia minuciosamente desenhada em Washington e cuja premissa era convencer os árabes e muçulmanos que a guerra do Afeganistão contra os “ateus” soviéticos era não só uma causa justa, mas é uma guerra deles também. Por conseguinte o jihad fi sabili Allah, isto é, o esforço em prol do Deus, era um wajib/dever religioso.
Não demorou para que milhares de combatentes voluntários ditos mujahiddin chegassem ao Afeganistão em busca da vitória da Umma (comunidade muçulmana global) ou a Shahada/martírio que levaria, segundo eles, à glória eterna no mundo celestial. Para os americanos, isso foi uma jogada de mestre, tendo em conta que não precisariam enviar soldados americanos ao terreno, o que poderia ser interpretado como uma participação ativa contra os soviéticos algo que os americanos não queriam mostrar.
Mais do que isso, Washington ainda estava se recuperando do trauma e humilhação do Vietnã e, portanto, qualquer envolvimento direto seria contraproducente junto da opinião pública. Para os sauditas, o envolvimento financeiro e ideológico na guerra do Afeganistão era não apenas uma demonstração de serviço ao protetor americano, mas também uma oportunidade de exportar a sua ideologia wahabita até então pilar do poder político e teocrático da família al-Saud, o que contribuiria na projeção do regime à almejada posição de potência regional. Isso após anos em que a Arábia Saudita foi marginalizada pelos pan-arabistas como Nasser e pelos baathistas sírios (Assad) e iraquianos (Saddam Hussein). Finda a guerra do Afeganistão, com a derrota dos soviéticos, abriu-se um vazio para o exército de mujahidins que doravante querem levar o êxito de Cabul para a Umma e ao mundo, universalizando hukm Allah/ lei de Deus na terra.
O céu é o limite
São essas as forças profundas e longínquas que levariam cada vez mais a militância religiosa, acompanhada de uma espécie de "aqida", que é um conceito teológico de uma crença inabalável que os jihadistas compartilham entre si, a acreditar que, após derrotar a União Soviética, nada os impediria de derrotar os Estados Unidos.
Nessa narrativa fantasiosa, na qual todos os jihadistas acreditam, de que a vitória contra os soviéticos era por mérito próprio e não resultado da ajuda das armas americanas, transparece uma apropriação e construção de uma crença ilusória de que tudo era possível. Eis o mito fundador que convenceu a al-Qaida e seu mentor, Osama bin Laden, a tentar se vingar daqueles que consideram a causa dos dramas dos muçulmanos, exploradores de suas riquezas, da subordinação e inércia de regimes despóticos e vassalos como fora o caso das monarquias do Golfo.
Outro elemento desencadeador foi o estacionamento das tropas americanas na Arábia Saudita quando Saddam Hussein invadiu o Kuwait. A outra grande discórdia se construiu por conta dos dois pesos e duas medidas com que o Ocidente tratou os árabes e os muçulmanos na questão palestina. Percebe-se então o êxtase com que foram vistos os ataques por misseis balísticos Scud contra o Estado de Israel, disparados pelo Iraque em 1991.
A guerra infinita para a paz infinita
Talvez neste momento em que estamos vivenciando a construção de uma nova ordem mundial, com uma matriz claramente contestadora à hegemonia não só dos Estados Unidos mas do Ocidente inteiro, que conseguiu dominar, criar e moldar espaços e povos nos últimos cinco séculos, seja oportuno retomar e refletir sobre algumas ideias dos alguns melhores ensaístas estadunidenses. São nomes que, infelizmente, acabaram por se tornarem dissidentes e silenciados por terem tido a coragem de apontar os excessos da prepotência norte-americana nas últimas décadas. Nesse sentido, Gore Vidal é provavelmente o melhor de sua geração pela lucidez com que analisou a história política dos Estados Unidos, o assalto contra a república do país, cuja máxima personificação é a figura de Donald Trump e sua tentativa descarada de Golpe de Estado em 6 de janeiro de 2021.
Num conjunto de ensaios publicados logo depois de 11 de setembro (The Last Empire, Perpetual War for Perpetual Peace; Dreaming War: Blood for Oil and the Cheney-Bush Junta; e Imperial America), Vidal faz uma espécie de cruzada reflexiva e tenta defender o que restava da ideia da República Americana. É nesse sentido que se percebe a denuncia que ele faz da junta Cheney-Bush, para derrubar as mentiras das quais vive o Império Americano, revelando uma contrahistória que traça as origens das atuais ambições imperiais dos Estados Unidos desde a experiência da Segunda Guerra Mundial, a doutrina Truman do pós-guerra até chegar ao período Cheney-Bush, que declararam sem hesitação o recurso à uma guerra infinita.
Vidal questionou os verdadeiros motivos dessa doutrina de guerra preventiva, como em nome da guerra o Afeganistão foi transformado em escombros para vingar os 3.000 mortos em 11 de setembro, como Saddam Hussein e o Iraque foram substituídos após a derrota dos Talibã, enquanto “evidências” foram inventadas para ligar Saddam ao 11 de setembro, a suposta existência de armas de destruição maciça. Como consequência da invasão do Iraque, justificada com base em uma mentira, milhões foram mortos, incluindo crianças e civis, e foi realizada uma rapina do patrimônio histórico e da vasta riqueza petrolífera do país.
Gore Vidal antevia a atual crise de um mundo novamente em risco, justamente pelas relações promíscuas dos governantes americanos, tanto no lado democrata como no lado republicano, de continuarem servindo lealmente àqueles que de fato os elegeram - Lockheed Martin, Northrop Grumman, Boeing, McDonnell Douglas, General Electric, Mickey Mouse e assim por diante.
Vidal explica como a República Americana se tornou o Império Americano, elucida como a falsa narrativa de salvar o mundo do comunismo e hoje dos terroristas, Eixo do mal, Estados párias e dos não democratas foi criando um Estado de vigilância em nome da Segurança Nacional, além do envolvimento em centenas de guerras secretas e abertas, levando os Estado Unidos a acumular uma dívida de trilhões de dólares. Pior ainda foi o sinistro projeto Timber Sycamore, criado de raiz pela CIA durante o governo Barack Obama (2012) e financiado pela Arábia Saudita para formar e armar uma coalizão de milhares de Jihadistas com a finalidade de decapitar o regime de Bashar Al-Assad. Em termos práticos, o programa Sycamore foi a semente do hediondo Estado Islâmico (Daesh). Nessa equação, os vencedores foram os comerciantes de armas; os perdedores foram os cidadãos que vivem em guetos sem acesso à educação e ao emprego.
A derrota estadunidense no Afeganistão e a fuga humilhante dos soldados e dos aviões americanos destroem a imagem imaculada da hiperpotência. Chega um momento em que os impérios deixam de exercer energia e se tornam simbólicos - ou existenciais, como se costumava dizer nos anos 40 do século passado.
A atual crise com a guerra da Ucrânia no coração da Europa, a rivalidade com a China, a discussão sobre os limites da expansão da Otan demonstra o dilema em que se encontra um império simbólico quando lhe falta a mente, e os recursos, para impor sua hegemonia sobre antigos Estados clientes. No final, a entropia acaba pegando todos nós.
Mudam os tempos, mudam as vontades!
Parafraseando o geopolítico francês Gérard Chaliand, podemos afirmar que hoje vivemos em um mundo multipolar, incerto, cheio de conflitos e em plena mudança. Multipolar porque esse mundo marca o fim da hegemonia ocidental pós-Guerra Fria. Essa hegemonia está agora sendo desafiada pela ascensão da China e pela influência renovada da Turquia no cenário internacional.
Uma era conflituosa, devido ao equilíbrio de poder no cenário internacional, e especialmente a rivalidade sino-americana.
Incerta e em fase de mudança, especialmente desde que a guerra na Ucrânia acentuou uma tendência fundamental: a de uma divisão que coloca o Ocidente contra o resto do mundo. Uma tendência confirmada pela expansão do Brics. Isso confirma o poder crescente desse clube e oferece a muitos países uma alternativa confiável ao G7. Considerando esse contexto internacional podemos nos questionar, que perspectivas geopolíticas tem o futuro? A China poderia substituir os Estados Unidos como a principal potência do mundo? A rivalidade sino-americana é inevitável? Como a guerra na Ucrânia provavelmente evoluirá e quem poderá vencê-la?
Voltemos à “natureza selvagem deste mundo”, lembrando o juramento de Hipócrates, que ordena aos médicos: “Acima de tudo, não causar dano”. Hipócrates também escreveu, comovido e abalado: “A vida é curta, mas a arte é longa, a oportunidade é fugaz, o experimento é perigoso, o julgamento é difícil”.
* Mohammed Nadir é Coordenador do Laboratório de Estudos Árabes da Universidade Federal do ABC (UFABC) e Coordenador do GT África no Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB-UFABC).
**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Thales Schmidt