O Dia do Quadrinho Nacional – e não o dia nacional do quadrinho – celebra a produção brasileira de arte sequencial. A escolha da data, 30 de janeiro, remonta à publicação de As Aventuras de Nhô-Quim por Ângelo Agostini em 1869, considerado por muitos como o primeiro quadrinho brasileiro. Entretanto, diversos pesquisadores e historiadores de quadrinhos contestam o pionerismo do título, pela existência de trabalhos anteriores que também são considerados histórias em quadrinhos. Apesar das divergências sobre o cânone, a data destaca a importância histórica, artística e social dos quadrinhos brasileiros.
Quando se fala de quadrinhos brasileiros, em que você pensa? Muito provável que a resposta de muitos seja a Turma da Mônica de Maurício de Souza, talvez alguma tira de jornal de Laerte Coutinho ou mesmo nos trabalhos de Ziraldo. Embora o Brasil não possua um mercado de HQs como o de países como Estados Unidos e Japão, graças aos esforços de incontáveis artistas, o quadrinho brasileiro é gigante.
A produção de quadrinhos na ditadura militar representa um importante marco no desenvolvimento do quadrinho brasileiro, sobretudo independente. Nomes como Laerte, Luiz Gê, Ziraldo, Julio Shimamoto, Henfil e tantos e tantas mais que publicaram HQs em veículos como O Pasquim, Revista Ovelha Negra, entre outros, mostraram o poder da nona arte na batalha de ideias. Utilizando das especificidades que só o desenho sequencial possui, fizeram dos quadrinhos uma importante ferramenta na luta pela democracia e liberdade artística. Ao retratar um momento tão sensível da história brasileira, contribuem também como documentos na salvaguarda da memória nacional – memória essa que é constantemente atacada.
A profusão do quadrinho independente e autoral no país os tornaram os verdadeiros pulmões do quadrinho nacional. Com artistas, temas, formatos e substratos diversos, o quadrinho independente apresenta um caleidoscópio do que é e do que pode ser, mais e mais, a arte sequencial brasileira. E essa força do independente se deve a luta de incontáveis artistas que lutaram e lutam, insistentes, em fazer da arte sequencial brasileira mais do que uma mera mídia ou versão do quadrinho estrangeiro.
A auto-organização, o senso de comunidade e os eventos de quadrinhos e feiras gráficas são pontos fundamentais da manutenção e crescimento das HQs. A descentralização dos modelos de produção e circulação e novos modelos de publicação, como por meio de redes sociais, vêm possibilitando com que mais pessoas criem e publiquem os seus trabalhos.
Para mencionar alguns dos muitos trabalhos de teor autoral e independente, trago alguns nomes, como Em ti me Vejo, de Regi Braz e Marília Marz, com uma história de uma mulher negra com o seu cabelo; na série Gibi de Menininha, organizada por Germana Viana e outras quadrinistas, temos uma série de histórias que misturam terror e erotismo que satirizam a expectativa do que seria um gibi feito por mulheres; em Quase Tudo São Flores, a artista Karipola faz uma espécie de ensaio sobre utilitarismo e a relação humana com as flores; na série Quadrinhos A2, de Paulo Crumbim e Cris Eiko, acompanhamos histórias cotidianas autobiográficas; Nascida de Parto Normal, de Deleon Stu, segue uma mulher presa entre uma promessa da família e um embate trabalhista; Kael Vitorello narra a sua luta para conseguir fazer uma mastectomia em Filosofia do Mamilo; em Pumii do Vulcão, Rogi Silva apresenta um universo onírico e poético em tiras; Contos dos Orixás, de Hugo Canuto, apresenta uma narrativa heroica sobre os orixás; o mangá brasileiro 48km, de IaraNaika, apresenta uma comédia romântica entre duas garotas que pegam o mesmo ônibus; Aline Zouvi reflete sobre o entendimento da própria sexualidade em Não Nasci Sabendo; em A Coleta, Pedro Vó acompanha o cotidiano de catadores de material reciclável em São Paulo.
Esses são apenas alguns dos muitos exemplos que compõem o grande mosaico do quadrinho brasileiro nos últimos anos. Fica evidente que não existe um único quadrinho brasileiro, e sim muitos. Em um país de dimensão continental como o nosso, tentar resumir o todo da produção brasileira a adjetivos e estéticas específicas é limitante e pode, facilmente, cair em elitismos ou purismos vazios, como ocorreu no movimento Modernista em sua busca por consolidar uma estética legitimamente brasileira. Então, neste dia do quadrinho nacional, celebremos esse grande mosaico, caleidoscópio, que é o quadrinho brasileiro, e a sua memória em constante desenho.
* Leonardo Rodrigues é editor de vídeo e jornalista no Brasil de Fato. É mestre em História da Arte pela na Universidade de São Paulo, com pesquisa sobre o protagonismo de quadrinistas negros no Brasil. É membro do Afronerd, produzindo conteúdo sobre quadrinhos e cultura pop japonesa.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nicolau Soares