Como vimos no artigo Guerra cultural: a dominação pela cultura, as forças de direita no Brasil, liberais ou fascistas, se valem há décadas do amplo uso da cultura e das artes para dominação e construção de uma hegemonia ideológica. E se utilizam da cultura fazendo largo uso de financiamentos e fomentos para os artistas e produções culturais de seu interesse. Mas e as forças de esquerda?
Apesar de haver um senso comum que diz que o universo artístico e cultural esteja dentro do espectro político e ideológico progressista – o que é validado ciclicamente em apoios a candidatos de esquerda nas eleições, como foi na última eleição de Lula –, a realidade material é bem mais complexa. A atuação da esquerda no campo da cultura, mesmo em alguns momentos produzindo obras engajadas independentes, são em sua larga maioria “empregadas” por “patrões” de direita.
Historicamente esses artistas não conseguem se autofinanciar. Além disso, politicamente, as forças culturais progressistas sempre optaram por focar seus esforços na construção de políticas públicas de acesso à cultura e em sua suposta “democratização”.
Quando os governos de esquerda saem de cena, essas políticas, mesmo que exitosas, são rapidamente desmontadas, fazendo com que não se tenha projetos de longo prazo, fundamentais para a ação cultural de fomento à arte.
Para o florescimento de novas produções culturais é preciso estabilidade e permanência. Uma vez que é a estabilidade financeira que dará ao trabalhador-artista tempo para criação. E é a permanência dessa estabilidade que dará previsibilidade e poder de planejamento e pesquisa.
Sem essas condições, não se consegue retirar das mãos do capital o domínio para dirigir a cena cultural, mantendo sua hegemonia permanente. Por isso é tão difícil ascender no tecido social assuntos que lhe são críticos e artistas que são seus inimigos, ou tudo aquilo que não passe por seus canais de validação e comunicação.
Se por um lado vemos mais de cem anos de financiamento privado de banqueiros e empresários à arte, há, na nossa história, pouquíssimas ações exitosas de fomento promovidas diretamente pela esquerda. Podemos citar aqui o maior exemplo: o Centro Popular de Cultura da UNE, que existiu por pouco mais de dois anos apenas (1962 – 64), mas que foi muito profícuo em resultados, com ações em distintas áreas: como teatro, música, cinema, literatura e artes plásticas.
Os CPCs investiram em pesquisas artísticas que buscavam criar diálogos com as camadas populares, e a criação de uma arte original, brasileira, politicamente engajada e de classe. Outro raro exemplo é a Casa do Povo, centro cultural localizado em São Paulo e criado em 1946 por judeus progressistas. Não é coincidência que ambas as iniciativas foram duramente perseguidas pelo fascismo brasileiro.
Vivemos na cultura um aparente paradoxo, mas que se revela um eficiente modo de controle. Temos muitos trabalhadores-artistas de esquerda, mas temos patronos das artes de direita. O efeito imediato é que, uma vez que a estabilidade financeira e material desses artistas está nas mãos do capital, há todo um amortecimento de pautas e mesmo de radicalidade, por parte desses artistas que querem ser “empregados”.
É fomentado assim um caldo cultural liberal que fica sempre estrategicamente distante dos problemas do povo e do desvelo da exploração capitalista. A censura (e autocensura) não é direta, mas feita na hora da seleção, da escolha, da premiação, da promoção, entre outras táticas. Criando assim sutilmente uma hegemonia cultural de ideias, temas e narrativas, escolhidos pelo capital. Trata-se de expor assim a produção social de uma hegemonia, embora no meio dessa produção, exceções sempre existirão.
Ao mesmo tempo, para os empresários que financiam as artes é criada uma aura de benevolência, intelectualidade, sensibilidade e afeto, fundamental também para o marketing e lobby desses capitalistas.
Esse é o cerne do domínio cultural feito através das artes. Desse campo, saem modulações para outras áreas de domínio ideológico, indo até a indústria cultural e criativa, se alastrando também para o universo digital e para ações de propaganda mais ordinária.
Conscientes disso, podemos entender o papel fundamental que possuem as organizações de trabalhadores no Brasil. É preciso que financiem a arte e a cultura diretamente. Que criem condições materiais para pesquisas artísticas, nas diversas linguagens, de modo permanente e por longo prazo. Que busquem relações com o popular e com a política ao mesmo tempo, com perspectiva de classe e anticapitalista.
Que criem centros culturais, museus, que financiem filmes, grupos de teatro, exposições de arte. Que inventem festivais e festas, e que promovam o encontro entre pessoas e artistas. Cabe ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Central Única dos Trabalhadores, ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, e a própria UNE, além de outras personalidades e instituições de esquerda com recursos, se juntar e se aprofundar cada vez mais no universo da cultura para estabelecer uma relação contra hegemônica frente ao Capital. O MST e o MTST vêm criando iniciativas nesse sentido.
Produzir e financiar as artes, criando uma rede de sustentação de trabalhadores-artistas que não passe por empresários, nem pelas políticas estatais intermitentes, podem produzir um conjunto de resultados muito significativos. Primeiramente: constituir camadas de empatia com a população se valendo das mesmas armas para relações públicas que o capital se vale há décadas.
Em um segundo momento: promover e difundir todo tipo de arte-política – além das narrativas liberais e formalistas depreciativas sobre “arte panfletária”. É preciso propor novas produções que não tenham medo do “popular” e da “política”, nem de se fazer arte para mudar a realidade. E assim conquistar as pessoas afetivamente e racionalmente para a luta contra o capital.
Por fim, e talvez o mais importante, é preciso criar condições materiais para que a camada mais pobre da população produza cultura diretamente. Prover meios de produção (o que no caso da cultura, não se trata apenas de máquinas, mas de tempo de criação) às camadas mais exploradas da nossa sociedade.
Oferecendo condições aos exaustos, aos espoliados, aos mais precarizados trabalhadores contarem também suas próprias histórias. Para quem sabe um dia, se tomar da classe média o domínio da produção artística.
Com tudo isso, que se “desnaturalize” o campo da cultura e que seja exposta a luta de classes que está também nele; que se desvelem as estruturas de dominação capitalistas e suas falsas narrativas; e que os problemas reais, bem como os desejos e sonhos da classe trabalhadora ganhem o palco principal.
*Guilherme Leite Cunha é produtor e crítico cultural. Criador da revista de crítica de arte DAZIBAO, é mestre em Estética e história da arte pela Universidade de São Paulo, e pesquisa as relações entre cultura e política.
** As opiniões expressas nesse artigo não refletem necessariamente as do Brasil de Fato
Edição: Rodrigo Durão Coelho