APROVADA NA SURDINA

Mobilização de povos nativos chega a Buenos Aires em protesto contra a reforma constitucional

Colunas percorreram as províncias de Jujuy, Salta, Tucumán, Catamarca, Santiago del Estero, Córdoba e Santa Fé

Havana (Cuba) |
Ativistas viajaram quase 2 mil km para chegar à cidade de Buenos Aires - Telám

Coincidindo com as festividades do Dia da Pachamama, celebração ancestral dos povos andinos da América do Sul, uma caravana de manifestantes composta por quase mil representantes de povos originários do norte da Argentina chegou à cidade de Buenos Aires na terça-feira, 1º de agosto.

Trata-se do Terceiro Malón da Paz. Apoiada por várias organizações sociais, a manifestação partiu em 25 de julho de La Quiaca, cidade no norte de Jujuy que faz fronteira com a Bolívia, e viajou quase dois mil quilômetros para chegar à Buenos Aires.

A intenção do Terceiro Malón de la Paz é denunciar ações contrárias a direitos indígenas que o povo de Jujuy vem sofrendo há quase dois meses. Da mesma forma, os povos originários estão exigindo a defesa de seus territórios e recursos naturais. 

As colunas percorreram as províncias de Jujuy, Salta, Tucumán, Catamarca, Santiago del Estero, Córdoba, Santa Fé e Buenos Aires, realizando assembleias com povos nativos e movimentos sociais para discutir os problemas que estão enfrentando e decidir em conjunto o plano de luta a ser seguido. Na cidade de Buenos Aires, eles montaram um acampamento em frente à Suprema Corte de Justiça, exigindo que o Judiciário atenda às suas demandas. 

"As principais demandas do Terceiro Malón de la Paz são o cancelamento da reforma constitucional feita na província de Jujuy e o pedido de intervenção nacional na província, já que a reforma viola todos os direitos das comunidades", disse Sara Choquevilca ao Brasil de Fato

Choquevilca é integrante da comunidade indígena de Chalala Purmamarca e do grupo Autoconvocados de Purmamarca. O espaço surgiu em 2018 na cidade de Purmamarca para defender a água e os bens comuns da região contra vários projetos extrativistas na região. Quando as mobilizações eclodiram em Jujuy, em meados de junho, o grupo assumiu um papel importante na organização dos vizinhos da região. Hoje, ela faz parte dos que viajaram para Buenos Aires no Malón de la Paz

"A ideia do acampamento é pressionar nossos representantes nacionais para dar visibilidade às nossas demandas. Queremos que as pessoas percebam a grave situação política e as violações de direitos humanos que estamos sofrendo", acrescenta.

A invasão da paz

O nome Tercer Malón de la Paz (Terceiro Malón da Paz) refere-se a duas marchas anteriores que os povos indígenas do noroeste da Argentina realizaram na capital, Buenos Aires. A primeira foi em 1946, durante a presidência de Juan Domingo Perón. Sessenta anos depois, em 2006, o segundo Malón de la Paz foi realizado durante a presidência de Néstor Kirchner. Em ambos os casos, a mobilização exigiu o respeito à soberania dos povos indígenas sobre seus territórios.

O termo Malón de la Paz é uma apropriação positiva pelos povos indígenas das formas depreciativas com as quais as classes dominantes se dirigiam a eles. Malón é uma palavra espanhola da área do Rio da Prata que derivada de "Malok", que no idioma mapudungun significa "invasão". A ideia da "invasão dos índios à civilização" é uma noção muito presente na literatura argentina, uma forma depreciativa com que a oligarquia se referia ao retorno dos povos originais às suas terras.    

"Vale a pena observar que, de 1946 até agora, a demanda permaneceu a mesma: a entrega efetiva dos territórios comunais. Isso significa que os títulos comunitários são entregues a nós", reflete Sara Choquevilca. 

A chegada do Terceiro Malón de la Paz a Buenos Aires ocorre quando a província de Jujuy passa por uma crise profunda e grandes mobilizações populares há quase dois meses. Ao mesmo tempo, várias organizações de direitos humanos têm denunciado as ações repressivas do governo da província.

O contexto político 

As eleições regionais ocorreram em Jujuy em 7 de maio. Foram eleitos governadores, legisladores e prefeitos. Mas, além disso, nesse pleito, foram escolhidos candidatos para reformar a constituição provincial. 

Com um comparecimento de 74% (10% a menos do que nas eleições anteriores), o partido governista do governador Gerardo Morales obteve 49,5% dos votos. Em segundo lugar, o Partido Justicialista (Peronismo) obteve 22,43%. Em terceiro lugar, ficaram as forças de esquerda reunidas na Frente de Izquierda y Los Trabajadores (FIT). 

Os resultados permitiram que Morales, que pertence à oposição de direita reunida no Juntos por el Cambio (Juntos por el Cambio) no âmbito nacional, terminasse dois mandatos consecutivos com uma grande maioria eleitoral. 

Ele foi eleito candidato a vice-presidente na chapa encabeçada por Horacio Rodríguez Larreta para concorrer à presidência nacional. O perfil repressivo e duro que Morales cultivou durante seus anos de governo acrescentou à chapa a ideia de uma direita "capaz de enfrentar a resistência social".

Os membros da Assembleia Constituinte tomaram posse em 23 de maio e, menos de um mês depois, em 16 de junho, aprovaram a reforma constitucional. Não houve informação prévia para a população de que a votação estava sendo realizada, nem o debate foi publicado na mídia. A aprovação da nova constituição foi feita pelos constituintes do partido governista de Morales e do Partido Justicialista da oposição. Os constituintes da esquerda se retiraram da votação, denunciando o pacto entre as duas forças.  

O que diz a reforma?

"Para entender o que está acontecendo em Jujuy, a primeira coisa a entender é que o governador Morales introduziu uma série de modificações no judiciário, o que significa que ele controla todo o poder público na província", diz Manuel Tufro, diretor da área de Violência e Segurança do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) para o Brasil de Fato.

"Nessa nova constituição, há um artigo muito importante que o governo da província diz ser um novo direito, mas que é mentira. Ele diz que 'o direito à paz deve ser garantido'. No entanto, o que eles estão fazendo é limitar o direito de protestar. Nós, como organização de direitos humanos, juntamente com outras organizações, temos denunciado que isso vai contra a constituição nacional e os tratados internacionais dos quais a Argentina é signatária, que garantem o direito ao protesto social", acrescenta Manuel Tufro. 

Além disso, os povos indígenas alegam que a reforma permite que o estado provincial faça uso das terras que lhes pertencem para vários projetos extrativistas, como a mineração de lítio. E exigem que o direito à propriedade comunal que esses povos têm sobre suas terras seja respeitado.  

A rebelião popular de Jujuy: o Jujeñazo

"A província está passando por um conflito sobre os salários dos professores há meses. Somos os professores mais mal pagos de todo o país, com um salário que equivale a 1/3 da cesta básica", disse Claudia Pinela, da diretoria do sindicato dos professores do ensino médio, ao Brasil de Fato.

"A primeira mobilização dos professores foi em 5 de junho. Esse foi o ponto de partida dos protestos. Naquela época, o governo não havia dado nenhuma informação sobre a reforma constitucional. No entanto, pouco a pouco, ficamos sabendo que a reforma visava a sufocar o direito de protestar. Durante todo o seu governo, Morales governou com mão de ferro limitando o direito de manifestação. Por isso, durante a greve dos professores, começou a surgir o slogan "Aumentem os salários, baixem as reformas". Esse slogan se espalhou por diferentes setores que simpatizavam com a luta dos professores", acrescenta Claudia. 

Finalmente, em meio a esse clima de conflito social, em 16 de junho, em uma sessão fechada e sem discussão prévia com a população, o governo provincial e a oposição peronista chegaram a um acordo e aprovaram a reforma constitucional. As mobilizações contra a mudança não debatida se multiplicaram e o governo respondeu com uma dura repressão, resultando em duas pessoas que perderam os olhos e centenas de presos e feridos.

"A ordem do governo era semear o medo. Eles ordenaram que os hospitais não tratassem as pessoas que chegassem feridas por balas da repressão. Também começaram a prender pessoas em vans sem identificação, sem qualquer identificação. Começaram a entrar nas casas das pessoas e a levá-las embora", lembra Claudia. 

As práticas repressivas na província desde então foram tantas que várias organizações de direitos humanos começaram a denunciar a situação. O Escritório de Direitos Humanos da ONU expressou sua preocupação e o representante na América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Jan Jarab, fez um apelo urgente para que a repressão fosse interrompida.

"Atualmente, há mais de 150 pessoas acusadas de delitos criminais e mais de 100 outras que receberam contravenções com multas de milhões de dólares. O crime dessas pessoas foi participar dos protestos", acrescenta Claudia Pinela.

As mobilizações continuaram. Várias greves de trabalhadores, bloqueios de estradas e mobilizações ocorreram desde então. Nesse contexto, os povos nativos se reuniram no Terceiro Malon de la Paz e decidiram se mobilizar de Jujuy para Buenos Aires, o centro do poder político na Argentina.

Edição: Rodrigo Durão Coelho