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Programa de reparações por escravidão nos EUA pode oferecer até US$ 5 milhões e casa própria

Estado da Califórnia e sua capital, São Francisco, discutem projeto de compensação para descendentes de escravizados

Nova Iorque |

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As propostas, no entanto, não agradam os conservadores. Para eles, escravidão é coisa do passado. - AFP

No fim do mês passado, a Suprema Corte dos Estados Unidos acabou com as ações afirmativas nas universidades, mas em alguns estados, como a Califórnia, avançam debates sobre políticas amplas de reparação por racismo.

A Força-Tarefa de Reparações da Califórnia, criada em 2020 para reparar séculos de escravidão e segregação, apresentou no fim de junho um relatório final de mais de mil páginas com recomendações à câmara estadual.



Dr. Amos Brown, vice-presidente da Força-Tarefa, falou com orgulho sobre o resultado final durante a solenidade: “nós vamos garantir que nossos descendentes serão capazes de consultar esse grande documento e ver a evidência de que este estado tem cometido crimes contra o povo preto e está na hora deles pagarem a conta desse crime”.

Em 40 capítulos, o texto apresenta de forma meticulosa evidências de abusos perpetrados pelo estado - ou com a conivência do estado - contra pessoas negras. Da escravidão até às políticas de gentrificação, passando pela guerra às drogas, e muitos outros exemplos. O objetivo é a aprovação de uma lei de reparações ampla.

“A evidência esmagadora deste relatório nos obriga a reconhecer que nós existimos em um sistema de castas”, disse Lisa Holder, advogada que também compôs a Força-Tarefa, “e é um sistema de castas que perpetua insígnias da escravidão com efeitos devastadores em comunidades negras contemporâneas”.

Dentre as recomendações, uma prevê um pedido de desculpas formal pela escravidão. Mas não para por aí. Em outra o grupo sugere uma reparação financeira aos cidadãos do estado que consigam provar que descendem  de pessoas escravizadas. O valor poderia chegar a US$1,2 milhão por pessoa acima dos 71 anos.

Cheryl Grills, professora de psicologia da Marymount University, e que fez parte da Força-Tarefa, conversou com o Brasil de Fato sobre o processo. “Nós estamos seguindo o que é considerado o padrão da ONU para reparações”, disse Grills, “e desses padrões, cinco no total, apenas um tem a ver com a questão de pagamentos pelos males causados. Então nós, na verdade, no nosso relatório final ao estado da Califórnia, entregamos um relatório com mais de 115 recomendações de reparação”.

Em São Francisco, propostas de impacto ainda maior

A Força-Tarefa estadual, no entanto, não é o único grupo produzindo materiais para uma possível política de reparações. Na cidade de São Francisco, um comitê criado pela prefeitura apresentou propostas ainda mais profundas no sentido financeiro.

Algumas das sugestões do comitê são compensações financeiras de US$ 5 milhões, cerca de R$ 24 milhões, por residente que se qualifique, a oferta de uma casa própria pelo custo de US$1 e garantia de salário anual acima de US$ 97 mil durante 250 anos." Tal qual na Força-Tarefa estadual, o objetivo é reparar não apenas a escravidão, mas as consequências geracionais sentidas até hoje."

As propostas de São Francisco levantaram um debate sobre se a cidade teria capacidade de arcar com o custo. Cheryl Grills, porém, não vê com bons olhos esse questionamento. “Pra mim é muito interessante”, afirma a psicóloga, “que as pessoas dizem ‘ah, mas nós podemos bancar isso?’ quando se trata de pessoas pretas”.

Dra. Grills disse ainda que “não existe quantia de dinheiro que consiga compensar pelas atrocidades, pela crueldade, pela desumanização de pessoas afrodescendentes neste país e no mundo”, e questionou: “o que é justo quando se está falando sobre negar direitos às pessoas? O que é justo quando se fala de tirar a vida das pessoas? O que é justo quando, durante gerações, se negou direitos a pessoas que outros cidadãos têm o privilégio de ter?”.

A ideia não agrada os políticos mais conservadores. Em 2019, Donald Trump afirmou, em uma entrevista, que uma reparação seria “algo muito incomum”. Já Mitch McConnell, líder dos republicanos no Senado, disse que não achava “uma boa ideia uma reparação por algo que aconteceu há mais de 150 anos, e pelo qual ninguém vivo é responsável”.

Outro argumento comum usado pelos críticos é de que as medidas seriam uma espécie de “racismo reverso”. Cheryl Grills discorda: “quando as pessoas começam a jogar esse termo ‘racismo reverso’, para mim, é um exemplo da tentativa de desviar a atenção dos problemas reais. Nós não estamos pedindo para receber mais do que outras pessoas. Nós estamos dizendo ‘nos trate de forma igual!’ Isso não é racismo reverso. Isso é chamado de democracia. É tudo o que a gente quer”.

Ainda que o debate sobre reparações avance em alguns estados, a nível federal a conjuntura é outra. Também no fim de junho, a Suprema Corte acabou com as ações afirmativas em universidades, o que é visto como um retrocesso pelo movimento negro dos Estados Unidos.

Cheryl Grills, no entanto, espera que o país enfrente o que chama de “pecado inicial”: “Eu queria que os EUA tivessem a força de caráter, a coragem, a decência de ser verdadeiro e de se encarar para que a gente possa ser essa 'união perfeita' que dizemos ser. Nós estamos vivendo uma ilusão, e esta ilusão está machucando as pessoas”.

Edição: Thales Schmidt