Negociações para que congressistas do Centrão passem a lotar cargos no primeiro e segundo escalões do Poder Executivo e liberação de emendas parlamentares antes da aprovação de matérias do governo federal são práticas comuns na construção de coalizões no Congresso Nacional para passar agendas do governo federal.
Às vésperas da aprovação da reforma tributária na Câmara dos Deputados, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) liberou um lote de R$ 2,1 bilhões em emendas parlamentares concentradas no Ministério da Saúde. No fim de maio, um montante semelhante de emendas parlamentares já havia sido liberado, de R$ 1,7 bilhão, durante a tramitação da Medida Provisória que reorganizou a Esplanada dos Ministérios em janeiro deste ano.
Mas a prática não é de hoje. Lá em 1997, no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, foram liberados R$ 150 milhões (o que equivale hoje a aproximadamente R$ 1,2 bilhões) em emendas ao Orçamento pelos parlamentares para tentar aprovar as reformas administrativa e previdenciária na Câmara. Na época, cada deputado teve o direito de apresentar 20 emendas ao Orçamento de 1997, destinando um total de R$ 1,5 milhão para obras.
Essa moeda de troca existe desde a redemocratização, e as emendas parlamentares são uma ferramenta constitucional para viabilizar a construção de bases em torno de projetos. É também por meio das emendas que os congressistas destinam recursos para a implementação de propostas em suas bases eleitorais, especialmente em áreas distantes do governo federal. Trata-se de uma prática comum em diversas democracias para garantir representatividade política e atender demandas regionais dentro do orçamento. Não é, portanto, uma exclusividade brasileira.
Nesse contexto, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), vem sendo apontado como um articulador exímio na garantia dos interesses dos parlamentares na distribuição de emendas e de cargos na Esplanada diante da tramitação de propostas governamentais. Segundo análise da cientista política Joyce Hellen Luz, pesquisadora do Núcleo de Instituições Políticas e Eleições do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (NIPE/Cebrap), dentre os presidentes da Câmara que o Brasil já teve, Lira talvez seja o que melhor soube até agora “interpretar e aproveitar as brechas do regimento interno a favor dos poderes de agenda que o presidente da Câmara tem sobre o processo de tramitação”.
A cientista política explica que Arthur Lira pode ser analisado de acordo com o que se chama na ciência política de “empreendedor de ação coletiva”, possuindo habilidades em reunir e consolidar uma maioria no Congresso, demonstrando coordenação tanto em suas próprias ações como nas dos demais parlamentares, a fim de alcançar um consenso.
Nesse sentido, “muitas pessoas o veem”, inclusive, “como um discípulo de Eduardo Cunha, do qual era um dos aliados, adquirindo habilidades de articulação, negociação e domínio do regimento parlamentar”, afirma Lincoln Telhado, mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB).
O cientista político lembra que Eduardo Cunha (PTB) ganhou expressão política enquanto presidente da Câmara ao elevar o protagonismo da Casa na relação entre Congresso e Executivo. Isso foi possível também pela fragilidade política que atingiu o governo federal com a perda de controle político, a partir de junho de 2013 e das operações da Lava Jato, deixando o Executivo refém do Congresso Nacional.
“Eu vejo Arthur Lira como alguém que sabe aproveitar o contexto político de forma eficiente. Eduardo Cunha se tornou pioneiro em assumir um papel político mais proeminente no parlamento, embora seja possível que ele não tenha sido o primeiro a desbravar esse protagonismo na esfera econômica. Isso foi alcançado com Arthur Lira. No entanto, considero isso como parte de um movimento histórico, em que acredito que Eduardo Cunha tenha sido o precursor desse protagonismo.”
Orçamento público
Ainda que Cunha tenha feito escola, não foi apenas isso que contribuiu para a atuação expressiva de Lira na Câmara. Desde a Constituição de 1988, diversas alterações foram realizadas a fim de aumentar o domínio do Congresso sobre o orçamento público, de onde provêm as emendas.
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Inicialmente, as emendas eram classificadas em quatro categorias distintas: emendas individuais, em que cada parlamentar decide como direcionar os recursos; emendas de bancada, que são definidas em conjunto pelas bancadas estaduais e regionais; emendas de comissão, que são estabelecidas pelas comissões temáticas da Câmara e do Senado; e as emendas de relator (RP9), que são uma categoria mais recente e são determinadas de acordo com critérios estabelecidos pelo relator geral do orçamento, selecionado anualmente.
Desde fevereiro de 2015, a legislação estabelece a execução obrigatória das emendas parlamentares ao orçamento até o limite de 1,2% da receita corrente líquida (RCL) realizada no ano anterior. Na prática, isso significou ao governo federal a impossibilidade de condicionar a liberação de emendas à votação de propostas.
Anteriormente, o orçamento era autorizativo, ou seja, os parlamentares faziam a requisição de uma emenda e o Poder Executivo tinha a opção de autorizar ou não. No entanto, quando as emendas se tornaram impositivas, esse poder de barganha por parte do governo federal foi eliminado. Hoje, o Executivo possui a capacidade de determinar o momento da liberação da emenda no período de um ano, somente.
Na época da aprovação do orçamento impositivo, capitaneado por Eduardo Cunha enquanto presidente da Câmara, o emedebista destacou que a partir daquele momento o Executivo não poderia mais condicionar a liberação de recursos à tramitação de propostas de interesse do governo. “Isso acaba com uma prática, que vai ser enterrada a partir de agora, que é a prática de os parlamentares ficarem reféns de liberação de emendas", afirmou na época.
Elisandro Roath Do Canto, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que especialmente a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso até o primeiro mandato de Dilma Rousseff a relação de poder entre Congresso e presidente se estabeleceu com relativa harmonia.
Mas, com a crise relacionada à compra de votos para a reeleição de FHC e o mensalão em 2005 no governo Lula, o Congresso Nacional passou a limitar os poderes de agenda do presidente. “Quando são instituídas as emendas impositivas, o Congresso obriga o Executivo a executar um percentual do orçamento relacionado com emendas parlamentares. Uma parte desse poder de barganha acaba se perdendo. O poder de barganha passa a ser do presidente do da Câmara, do presidente do Senado e dos líderes partidários. No período pós-2016, nós temos outra realidade institucional”, afirma Do Canto.
O cientista afirma que o Congresso, de maneira discreta, porém constante, passou a restringir os poderes presidenciais, reduzindo a capacidade de reeditar medidas provisórias, por exemplo. Foram estabelecidos prazos para votação das medidas provisórias do Executivo, a fim de evitar que caduquem. Além disso, houve um aumento no controle do orçamento público, o que representou uma grande mudança. “O Congresso buscou se fortalecer através do controle dos recursos públicos.”
Nesse contexto, a presença do centrão é de extrema importância, uma vez que eles se engajam em práticas políticas de cunho fisiológico. Isso porque “esses deputados e senadores representam municípios pequenos localizados no interior do Brasil, onde os recursos públicos provenientes das emendas parlamentares são fundamentais. Portanto, as transferências federais desempenham um papel essencial nas políticas públicas de comunidades menores”. Essa atuação fisiológica, portanto, “tem um impacto significativo na sobrevivência desses parlamentares e na manutenção de suas redes políticas nas regiões internas do país”.
O contexto fica mais evidente com um Congresso Nacional fragmentado, multipartidário e com poderes de controle mais expressivos sobre o orçamento público. “Enquanto permanecer a composição política da atual Câmara fragmentada e concentrando a capacidade de coesão, todos os presidentes, não só o Lula e os futuros presidentes, terão grandes dificuldades para implementar seus programas.”
Governo Bolsonaro + Orçamento Secreto
Dentre os mecanismos concedidos ao presidente da República para exercer a coordenação, um deles foi a exclusividade nas questões tributárias, fiscais e orçamentárias, segundo Elisandro Roath do Canto. A capacidade do presidente de iniciar legislação nessas áreas representava um recurso de poder significativo, pois ele era o primeiro a agir na relação entre o Poder Executivo e o Legislativo.
Ao conhecer a composição do Congresso Nacional e a distribuição das preferências político-ideológicas, o presidente poderia construir seu pacote de governo e seu plano de ação com base nessas posições já conhecidas. Por outro lado, ele utilizava recursos político-institucionais para obter a adesão da maioria necessária para aprovar seu pacote, tais como nomeações para cargos públicos na estrutura ministerial, que chamamos de recursos de patronagem.
Do Canto afirma que, portanto, havia duas grandes linhas de atuação. Por um lado, o controle da iniciativa nas políticas tributárias, fiscais e orçamentárias. No âmbito dos poderes orçamentários, o orçamento era elaborado pelo Poder Executivo, enquanto o Congresso participava dessa relação ao aprovar e emendar o orçamento, mas o Executivo mantinha o poder de autorizar ou não os gastos, levando em consideração as contas públicas e as prioridades do governo federal.
Ocorre que durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), o ex-presidente praticamente se eximiu de sua atividade de proposição legislativa. Lincoln Telhado, mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), afirma que Bolsonaro abriu mão de confrontar o Congresso em certos pontos, deixando as articulações nas mãos dos presidentes do Senado e da Câmara exclusivamente, como no caso da aprovação da reforma da previdência, em dezembro de 2019.
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Somou-se a isso o orçamento secreto, que surgiu após uma série de reformas implementadas nas emendas parlamentares, durante o primeiro ano do governo Bolsonaro, a fim de aumentar o poder do relator sobre a liberação de recursos do Orçamento a pedido de deputados e senadores. Uma das mudanças estabelecidas foi a falta de transparência em relação aos nomes dos parlamentares beneficiados com as emendas, diante da possibilidade de fazer as requisições de forma anônima, apenas com a assinatura do relator. Daí surgiu o termo “orçamento secreto”.
Era o casamento perfeito: de um lado, o governo Bolsonaro conseguiu aprovar a sua agenda; por outro, o Congresso garantiu o escoamento de recursos do orçamento público. “Agora estamos em com uma nova presidência, mas com um parlamento que está acostumado a ter muito controle sobre o orçamento e a política”, afirma Lincoln Telhado.
Governo Lula
Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), surgiu um momento de redesenho do equilíbrio de forças entre Congresso e governo federal. “Estamos em um momento de retorno do ex-presidente Lula, conhecido por seu governo forte e propositivo, com várias mudanças e políticas implementadas. Do outro lado, temos um Congresso acostumado a ter controle sobre o orçamento público. Agora, com Lula no governo, há uma nova postura de não abrir mão do poder de governar”, afirma Telhado.
“Até agora, temos visto um cabo de guerra entre Arthur Lira, que busca protagonismo e defende a descentralização, e o presidente que deixa claro que não entrega tudo e está disposto a negociar em seus próprios termos. Vejo isso como uma disputa de cabo de guerra. Há uma luta constante por esse rearranjo de poder. Todos têm de fazer concessões.”
Na mesma linha, Joyce Hellen Luz, pesquisadora do Núcleo de Instituições Políticas e Eleições do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (NIPE/Cebrap), afirma que “a partir de 2023 é a retomada de um padrão observado até 2018, ou seja, a gente tem um presidente que de fato usa o seu poder legislativo. Mas tem um legislativo que foi acostumado ao vício de só cooperar com o executivo perante a liberação de recursos.”
Essa situação se mantém, mas somente com as emendas impositivas, já que o orçamento secreto foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em dezembro do ano passado. Ainda assim, não se trata de uma situação em que um representante ganha mais que outro. Lira e Lula protagonizam as negociações que se esperam de um ambiente democrático. A aprovação da reforma tributária é um dos exemplos mais recentes disto. De um lado, o presidente da Câmara precisou ceder para encaixar as prioridades do governo federal na votação. Do outro, Lula precisou fazer uso das emendas constitucionais.
Há de haver um equilíbrio nessas negociações, ainda que o Congresso Nacional tenha passado quatro anos com um presidente que abriu mão das negociações e praticamente se eximiu da exclusividade nas questões tributárias, fiscais e orçamentárias.
Edição: Rodrigo Durão Coelho