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Rússia e a rebelião do Wagner: Putin ainda tem as 'elites' políticas sob controle?

Indefinição sobre o destino de Prigozhin suscita rumores de "racha na elite" russa e Kremlin acende alerta para eleições

Rio de Janeiro |
O presidente russo, Vladimir Putin, se reúne com ex-alunos da Academia Presidencial Russa de Economia Nacional e Administração Pública no Kremlin em 4 de julho de 2023. - Pavel Bednyakov / Sputnik / AFP

A crise causada pelo motim do Grupo Wagner continua rendendo repercussões e gerando controvérsia sobre a política interna na Rússia. A rebelião dos mercenários de Yevgueny Prigozhin expôs as fissuras e as disputas entre a elite política do país, colocando em xeque o controle do presidente Vladimir Putin sobre as diferentes forças em torno do Kremlin.

Um discurso comum que é sempre retomado no meio acadêmico e midiático em momentos de instabilidade na Rússia é o suposto “racha na elite” do país. A ideia é que a centralidade com que Putin vem governando, na prática, há mais de 20 anos fosse garantidora de um certo equilíbrio de interesses entre as forças dominantes da Rússia. Assim, períodos de turbulência política ou econômica provocariam insatisfações de alguma dessas forças, provocando uma possível desestabilização no sistema de poder de Putin. Tal especulação só aumentou em meio ao prolongamento da guerra da Ucrânia e chegou ao seu ápice com a rebelião do grupo Wagner.

Mas, em primeiro lugar, é preciso qualificar o que são essas “elites” na Rússia. Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político e diretor do "Grupo de Especialistas Políticos" da Rússia, Konstantin Kalachev, explica que não se trata de um entendimento clássico de elite, considerando que, na Rússia, essa compreensão não está muito relacionada ao poder econômico. De acordo com ele, elites são compostas por pessoas que participam da formulação de decisões políticas, que tomam essas decisões, e “o mundo empresarial russo, via de regra, está apartado desse processo”.

“Então a elite russa é composta, em primeiro lugar, pelas pessoas que fazem parte do chamado ‘politburo 2.0’, que cercam o presidente e, de uma forma ou de outra, formulam a sua imagem do mundo, tomam parte na elaboração e na tomada de decisões. Uma parte significativa dessas pessoas fazem parte das estruturas de segurança. A elite russa é, em grande medida, a elite da força. O 'business' está subordinado a essa estrutura”, afirma Kalachev.

O diretor do Serviço de Inteligência Externa da Rússia desde 2016, Serguei Naryshkin, o secretário do Conselho de Segurança russo, Nikolai Patrushev, e o presidente da Duma, Vyacheslav Volodin, são alguns dos nomes conhecidos por formar o círculo mais interno de Putin e que participam ativamente da formulação de suas políticas.

Essa distinção entre o poder político e econômico ajuda a compreender o fenômeno da ascensão de Prigozhin e o que o levou a radicalizar a tensão com a alta cúpula do Kremlin.

O chefe do Wagner enriqueceu como empresário de uma rede de restaurantes ainda nos anos 1990, quando conheceu o então vice-prefeito de São Petersburgo: Vladimir Putin. Seus negócios se expandiram a um outro nível quando passou a ganhar contratos para oferecer serviços de catering no Kremlin. Em 2014, ele funda o grupo militar privado Wagner e começa a atuar no leste ucraniano, sem que Moscou reconheça qualquer envolvimento. A organização de mercenários também passou a atuar em países como Síria, Sudão, Líbia e Moçambique. A guerra da Ucrânia foi mais um trampolim para o seu status de oligarca.

A importância estratégica das tropas paramilitares do Wagner em meio à guerra da Ucrânia tornou Prigozhin um dos rostos mais notórios da operação militar de Putin. Já o comando militar russo passou a sofrer críticas pela falta de êxito do exército na linha de frente. Foi nesse contexto, alegando falta de suprimentos por parte do Ministério da Defesa a seu batalhão, que Prigozhin passou a atacar veementemente o ministro da Defesa, Serguei Shoigu, e o chefe do Estado-Maior, Valery Gerasimov.

Para o cientista político Vladimir Fesenko, a empreitada do chefe do Wagner “rumo a Moscou” durante a rebelião de 24 de junho dá margem à ideia de que ele “pretendia ter o papel de uma espécie de ‘curador’ de empresas militares privadas, de um possível bloco militar, que teria um financiamento na guerra da Ucrânia, e assim seria, relativamente falando, um dos "pilares" do Kremlin”.

“Ele já era um oligarca nas sombras, mas ele exercia um papel de executor, de fiador, era um instrumento de Putin, mas ele queria se tornar um dos tomadores de decisão e entrar no círculo mais próximo de Putin”, analisa Fesenko em entrevista ao Brasil de Fato.

A rebelião foi resolvida com o recuo do Wagner e o anúncio de que Prigozhin iria para Belarus, após mediação do presidente Alexander Lukashenko. Vladimir Putin, por sua vez, classificou o motim como um ato de “traição” e não houve alteração de quadros no Ministério da Defesa. Mas os indícios de que a aposta de Prigozhin teria sido alta demais e que ele teria a perdido a queda de braço ainda não estão claros e o destino do chefe do Wagner ainda deixa muitas perguntas no ar.

Na última quinta-feira (6), Lukashenko afirmou que o líder do grupo paramilitar se encontra em “liberdade” e está na Rússia. A ida de Prigozhin para Belarus foi parte do acordo para encerrar a rebelião do grupo no dia 24 de junho. Ao mesmo tempo, o porta-voz de Putin, Dmitry Peskov, afirmou que o Kremlin "não monitora" o paradeiro de Prigozhin.

‘Racha na elite’ ou equilíbrio de interesses?

A incógnita e a falta de clareza sobre os bastidores da tomada de decisão do Kremlin diante da crise é um dos aspectos que suscita a disseminada tese – sobretudo na imprensa ocidental – de que Putin teria saído fragilizado. A imagem de Putin como garantidor da estabilidade e alguém que tem as elites russas sob controle estaria em xeque, o que poderia causar o “racha na elite” e prejudicar o poder do presidente russo. No entanto, pesquisas independentes, realizadas pelo Centro Levada, mostraram que a popularidade de Putin não foi alterada.

O cientista político Konstantin Kalachev aponta que a ideia de um “racha na elite” deve ser visto com ceticismo, pois o sistema de poder do Kremlin funciona através de um “complexo sistema de equilíbrio de interesses”.


Registro das Forças Armadas Ucranianas mostra a destruição na cidade de Bakhmut, região de Donetsk, no leste da Ucrânia. / Forças Armadas da Ucrânia / AFP

“Aquilo que muitos reconhecem como um racha interno da elite por conta do aumento das divergências das elites na Rússia é, na verdade, um equilíbrio, um complexo equilíbrio de interesses. Um sistema de equilíbrio não se constrói em um ano e na realidade isso depende de que lado observamos. Podemos enxergar como um ‘racha’, ou podemos enxergar como um sistema de pesos e contrapesos”, argumenta.

Ao mesmo tempo, o cientista político reconhece que houve uma “dessacralização" do governo e da “imagem que foi construída ao longo de mais de 20 anos”. “É claro que o sistema interno de equilíbrio foi alterado, mas é um sistema tão complexo e nem sempre sustentável, digamos assim, mas a eliminação de um dos atores, de um dos membros desse sistema, é inviável, porque pode violar todo o equilíbrio”, acrescenta.

Antes do motim, 82% dos entrevistados do Levada declararam seu apoio total ou parcial às ações do presidente russo. No dia da rebelião foi constatada uma aprovação de 79%, e após a resolução da crise o índice voltou para 82%. Já a popularidade de Prigozhin caiu significativamente. Se antes da rebelião 30% apoiavam suas atividades, a partir de 25 de junho esse índice caiu pela metade.

“Da mesma forma, o Grupo Wagner dava um equilíbrio em relação ao Ministério da Defesa, sobretudo em relação à imagem. Quem era o político mais popular da Rússia depois de Putin? O ministro da Defesa, Serguei Shoigu, mas isso foi até o início da ‘operação militar’ [na Ucrânia]. Quem perdeu popularidade nas pesquisas após o motim, além de Prigozhin? O ministro da Defesa. Por isso é formado um sistema no qual ninguém deve crescer muito e se tornar uma ameaça ao presidente”, completa Kalachev.

Uma semana antes do motim, a aprovação de Shoigu na Rússia era de 60%. Após a rebelião do Wagner, esse índice passou para 48%.

Eleição de 2024 entra em pauta

Não por coincidência, o tema das eleições presidenciais de 2024 entrou em pauta no Kremlin. No começo da semana, a presidente da Comissão Eleitoral Central, Ella Pamfilova, em reunião oficial com o presidente russo, declarou que as eleições em 2024 serão "fatídicas não apenas para o próprio país, mas para o mundo inteiro".

As eleições presidenciais na Rússia estão marcadas para 17 de março de 2024. Putin ainda não anunciou se participará. No entanto, após a crise do Wagner, o presidente russo aumentou significativamente suas aparições públicas, se deixando fotografar com apoiadores e reafirmando a “unidade do povo” em uma série de pronunciamentos oficiais.

Konstantin Kalachev destaca que são sinais claros de que sua campanha para garantir a sua quarta reeleição já começou. Para o cientista político, a estratégia de Putin para se reafirmar no poder está colocada: mostrar que o sistema de equilíbrio do poder do Kremlin é sustentável.

Ele aponta que a forma com que a crise do Wagner foi resolvida está sendo apresentada como uma esperteza, “como uma indisposição a um derramamento de sangue, como alguém que está disposto a fazer concessões, e muitos se conformaram com essa versão”. Em contrapartida, o analista destaca que, do ponto de vista das elites, muitos “começaram a repensar algumas coisas, se estaria se perdendo a garantia de uma segurança, a garantia de um arbítrio superior, no quanto o próprio sistema é sustentável”.

“Então do ponto de vista das pesquisas, Putin não perdeu nada, do ponto de vista da percepção de uma minoria ativa, eu acredito que algo tenha mudado. E o quanto mais alto você estiver na pirâmide hierárquica, mais se vê problemas, porque todos viram que o sistema se encontra um tanto perdido. Ninguém saiu às ruas para defender o presidente […] e, no fim das contas, ninguém derrubou esse grupo de rebeldes, então surge uma questão. Mas, sim, o sistema é sustentável, mas simplesmente porque não há alternativa”, completa.

Edição: Thales Schmidt