O motim realizado pelo chefe do grupo paramilitar Wagner, Yevgueny Prigozhin, na Rússia, completa uma semana. O mundo viu com perplexidade um dos momentos de maior instabilidade da autoridade de Vladimir Putin em mais de duas décadas de poder.
A intensidade dos eventos foi proporcional à rapidez com que a situação foi apaziguada. Em algumas horas, Prigozhin anunciou o retorno às suas bases para evitar “derramamento de sangue”. No entanto, a empreitada do grupo mercenário abriu perigosos precedentes para o Kremlin e muitas questões ainda ficaram no ar sobre as motivações da crise.
Oficialmente, tudo indica que, após a rebelião do grupo Wagner na Rússia, a atuação do batalhão de mercenários na guerra da Ucrânia seja desmantelada.
Em meados de junho, o ministro da Defesa, Serguei Shoigu, já havia assinado uma lei determinando que todas as "formações voluntárias", incluindo o grupo Wagner, deveriam realizar contratos com o Ministério da Defesa até 1º de julho.
Em um pronunciamento em que comentou o futuro do grupo paramilitar, o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou que os combatentes de Yevgueny Prigozhin têm três opções: serem incorporados ao exército russo, voltar para casa ou ficar na Bielorrússia.
De acordo com o chefe do Comitê Estadual de Defesa da Duma, Andrei Kartapolov, o chefe do grupo Wagner, Yevgueny Prigozhin, teria se recusado a cumprir a decisão do Ministério da Defesa de incorporar os mercenários do Wagner às tropas regulares do exército russo.
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Na prática, esses movimentos representam o desmantelamento das operações do batalhão Wagner na guerra da Ucrânia. No entanto, na última sexta-feira (30) foi relatado que o grupo mantém o recrutamento de novos mercenários para o conflito.
O imbróglio em relação à operação do Wagner só reforça o diagnóstico de que o presidente russo saiu fragilizado dessa crise. Em entrevista ao Brasil de Fato, o presidente do Centro de Pesquisa Política Aplicada "Penta", Vladimir Fesenko, afirmou que a consequência mais negativa dos acontecimentos do último fim de semana é a evidência do enfraquecimento de Putin quando ele “acabou não sendo tão forte e decisivo como muitos pensavam”.
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No dia do motim, foi instaurado um processo criminal contra Prigozhin por “rebelião armada” dentro do país, o que poderia garantir de 12 a 20 anos de prisão. No entanto, como parte da negociação para pôr fim ao motim e não agravar a crise, foi anunciado o arquivamento do processo. A concessão do Kremlin ao chefe do grupo mercenário foi encarada como uma fragilidade do presidente Vladimir Putin.
“Putin não reprimiu o motim de Prigozhin através da força, mas teve que fazer concessões. É a primeira vez que acontece isso na Rússia sob sua liderança e ele teve que conceder”, observa.
O cientista político lembra também que a negociação entre Prigozhin e Dmitry Utkin - um dos fundadores do Wagner - não foi com Putin, mas com outras autoridades do Kremlin, como o secretário do Conselho de Segurança russo, Nikolai Patrushev, e, principalmente o presidente bielorrusso, Alexandre Lukashenko.
De acordo com Fesenko, a decisão do Kremlin de negociar com Prigozhin foi motivada pela imprevisibilidade e os riscos que um conflito aberto poderia gerar para a manutenção do próprio governo.
“Possivelmente Putin entendeu, e foi entendido no Kremlin, que os riscos são muito grandes, que eles poderiam não segurar Moscou. E se os combatentes de Prigozhin chegassem a Moscou, mesmo que não tomassem o poder, poderia realmente começar uma guerra civil, seria uma plena crise política na Rússia e não se sabe no que ia terminar. Seria um risco para o próprio Estado russo”, argumenta.
Em contrapartida, no decorrer da semana o presidente russo buscou mostrar estabilidade e contrapor a imagem de possível fraqueza do governo diante da crise. Ele aumentou significativamente as suas aparições públicas, fez dois pronunciamentos à nação, convocou o comando militar no Kremlin para agradecer por terem conseguido evitar uma guerra civil. No entanto, os esforços do líder para dar sinais de unidade entre o governo e o comando militar deixam uma grande controvérsia no ar.
A rebelião de Prigozhin não foi apoiada publicamente por nenhum dos altos funcionários russos, mas foi notório um certo silêncio e ausência de demonstração de apoio explícito ao presidente russo por parte de importantes figuras dos serviços especiais e dos órgãos de segurança, como Nikolai Patrushev, Serguey Naryshkin e Alexander Bortnikov.
No sábado passado, enquanto Prigozhin tomava a cidade de Rostov com seus tanques, não houve relatos de resistência por parte dos cidadãos do país, nem do exército russo. Pelo contrário, o que se viu foram imagens da população de Rostov tirando fotos com os combatentes do Wagner e assistindo passivamente ao levante.
Ao Brasil de Fato, o doutor em Ciência Política pela Universidade Estatal de Moscou, Stanislav Byshok, aponta que no círculo das elites russas começam a aparecer indícios de falta de confiança no atual governo. Ele destaca que, Vladimir Putin, em seus 23 anos no poder, colocou-se como um pilar de estabilidade e autoconfiança, sendo responsável pela Rússia não ter “deslizado para algum tipo de caminho revolucionário ou caótico de maior desenvolvimento”.
“As pessoas de quem o governo buscava ‘resguardar’ a Rússia, como oposicionistas liberais ou pró-ocidentais, acabaram aqui totalmente fora de cena, e eis que uma rebelião surge a partir de um personagem conhecido pela sua ultralealdade a Putin”, argumenta.
Quais foram os verdadeiras objetivos de Prigozhin?
A empreitada do chefe do Wagner também revelou uma intriga entre o círculo de poder no Kremlin que já vinha ganhando força no contexto da guerra da Ucrânia. No início da semana, Prigozhin se pronunciou pela primeira vez desde a resolução da rebelião, e lançou uma luz a mais para compreender as motivações do motim e a sua “marcha para Moscou”.
Segundo ele, o objetivo da marcha era impedir a “destruição da companhia militar privada Wagner e levar à justiça as pessoas que, por meio de suas ações não profissionais, cometeram um grande número de erros durante a operação militar”.
“Nossa decisão de dar a volta e recuar teve dois fatores principais. O primeiro é que não queríamos derramar sangue russo. O segundo é que fomos demonstrar nosso protesto e não derrubar o governo no país”, explicou.
Desde que a crise se instaurou com a rebelião de Prigozhin, os rumores de golpe de Estado ou ameaça de guerra civil causaram estranheza justamente pelo grau de lealdade que ele representa em relação a Putin. O conflito com o comando militar cresceu nos últimos meses com ataques de Prigozhin sendo destinados exclusivamente ao ministro da Defesa, Serguei Shoigu, e ao chefe do Estado-maior russo, Valery Gerasimov. O presidente era sempre blindados de suas críticas.
O cientista político Vladimir Fesenko aponta que esse motim foi, em primeiro lugar, uma “consequência de um agravamento de atritos da elite política interna e não somente entre Prigozhin e Shoigu”.
“Prigozhin e Shoigu é a superfície. Aqui a questão foi sobre atritos mais profundos de diferentes grupos de forças de segurança, entre os quais estão Shoigu, Prigozhin, e, digamos assim, as elites mais antigas do Kremlin, representando um lado. E de outro lado, havia grupos mais jovens, mais agressivos, duros, que queriam mais poder e mais influência, e que não estavam satisfeitos como vem se desdobrando a guerra na Ucrânia e a situação na Rússia em geral”, afirma.
De acordo com o analista, o estopim para que Prigozhin radicalizasse suas ações é que ele “poderia ter informações vazadas e sinais de que havia um ataque sendo planejado contra ele”. “Ele mesmo declarou que havia um plano de destruição do grupo Wagner a partir de 1º de julho. Isso é o que pode ter empurrado Prigozhin a ações mais drásticas”, acrescentou Fesenko.
Assim, o analista destaca que “isso não foi um motim contra Putin, mas foi contra uma parte do sistema de Putin, contra pessoas particulares do regime de Putin”.
“Qual foi o erro de Prigozhin e aqueles que o apoiaram nessa rebelião? O erro de Prigozhin foi que ele não considerou que Putin iria entender isso como um motim contra si. A utilização de força militar para intrigas internas da elite é uma violação das regras do jogo”, completa.
Reação dos Ocidente e o temor de uma "Rússia instável"
Apesar da rebelião ser vista como uma fragilidade de Putin em meio à guerra da Ucrânia, a instabilidade na Rússia também gerou um alerta e foi vista como um perigo pelo Ocidente. Foi o que disse o chefe da diplomacia da União Europeia, Joseph Borell, na última quinta-feira (29).
“Está claro que Putin sai desta crise enfraquecido. Mas um Putin mais fraco é um perigo maior. Portanto, temos que estar muito cientes das consequências”, ponderou Borell.
A crise também resultou em um contato entre a Casa Branca e o Kremlin, o que é extremamente raro no contexto da guerra da Ucrânia. O representante do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, informou que “houve boas comunicações com os russos durante o fim de semana” e disse esperar que isso continue no futuro.
Para Vladimir Fesenko, a crise mostrou que, para os EUA, que uma Rússia instável pode ser muito perigosa, sobretudo por conta dos riscos do uso não controlado de armas nucleares.
“Isso representa uma tendência e uma perspectiva importante, porque a princípio mostrou que existem coisas mais importantes, que os americanos não se importam somente com a Ucrânia, mas é evidente que lhes interessam os riscos de uma guerra nuclear, os riscos de um uso descontrolado de armas nucleares. E sobre estas questões, eles podem chegar a acordos com russos de maneira velada”, destaca o analista.
O cientista político também ressalta que foi relatado por várias mídias ocidentais que os americanos teriam “insistentemente pedido à Ucrânia não impulsionar ações militares em 24 de junho para não atiçar Prigozhin e não reforçar a instabilidade na Rússia”.
“Os americanos temem mais a instabilidade dentro da Rússia do que querem a derrota da Rússia. A derrota da Rússia, se for controlável, é do interesse dos EUA, mas eles temem que a situação [interna] fuja do controle”, conclui.
Edição: Patrícia de Matos