No imaginário brasileiro, reforma agrária é uma pauta da esquerda, dos socialistas e dos comunistas. Mas poucos sabem que, nos Estados Unidos, uma reforma agrária aconteceu no Século XIX e, para muitos, foi uma das grandes responsáveis pelo milagre econômico que transformou a ex-colônia britânica na maior potência econômica do planeta.
O momento histórico
Para entender a história, é preciso viajar no tempo até meados do Século XIX. Entre 1846 e 1848, os Estados Unidos estavam em guerra contra o México. Tudo começou um ano antes, em 1845, quando os estadunidenses anexaram o Texas, território que tinha declarado independência do México na década anterior mas que não era reconhecido pelo governo mexicano. Depois de 2 anos de batalhas, os EUA incorporaram grande parte do território da ex-colônia espanhola, incluindo os atuais estados da Califórnia, Nevada, Arizona, Novo México, Utah e Colorado.
A guerra contra o México representou a última grande expansão territorial dos Estados Unidos. Mas o país estava cada vez mais dividido. No norte, movimentos abolicionistas, apoiados pela elite industrial, queriam o fim da escravidão, enquanto no sul os fazendeiros escravocratas queriam manter tudo como estava. Com a adição dos novos territórios, as tensões entre o norte e o sul se acentuaram. Enquanto os abolicionistas queriam que a nova região adotasse a mão de obra livre, os escravocratas queriam expandir a fronteira das plantations, os latifúndios baseadas na mão de obra escravizada.
Em 1860, Abraham Lincoln, um senador do norte, foi eleito presidente. Essa foi a gota d’água que levou os estados do sul do país a declararem independência e guerra contra o norte. Entre 1861 e 1865, a Confederação (o sul) e a União (o norte) travaram uma guerra que transformou a história do país. Foi nesse contexto que o presidente Lincoln aprovou a lei conhecida como Homestead Act.
O Homestead Act
A legislação, sancionada em 1862, em meio à Guerra Civil, tinha dois objetivos. “Existiam duas perguntas: de como a terra deveria ser distribuída, de forma que fosse mais igualitária, e também como a distribuição poderia prevenir a escravidão”, explica Richard Edwards, economista da Universidade de Nebraska e especialista na história da reforma agrária estadunidense.
A medida era simples. O Estado passou a dar terras, de graça, para quem chegasse e a ocupasse. Toda família tinha direito a até 160 acres de terra, aproximadamente 65 hectares. Pequenas propriedades que seriam destinadas à agricultura familiar, prevenindo assim o uso de mão de obra escravizada.
Para ter a propriedade reconhecida, as famílias tinham que produzir, construir uma casa e morar na terra por pelo menos 5 anos. Os custos legais, para os assentados, eram mínimos: aproximadamente US$30, o que corresponde a US$900 em valores atuais. A distribuição de terras beneficiou principalmente famílias pobres, criando uma nova classe média rural que impulsionou toda a economia do país.
Segundo Edwards, o Homestead Act “criou uma grande indústria: a agricultura”. Ele explica que “até 1920, a maioria dos americanos viviam em zonas rurais, e a agricultura era a maior indústria”, mas também afirma que “[o Homestead Act] foi um grande impulsionador da economia do país, criando também empregos em outras indústrias”. O pesquisador resume a lei como um dos “motores principais do crescimento econômico”.
Mais de 1,6 milhão de títulos de terra foram concedidos sob o Homestead Act. 10% de todas as terras públicas do país foram destinadas à reforma agrária. Atualmente, mais de 90 milhões de estadunidenses são descendentes de assentados. Quase 30% da população do país, hoje, é formada por pessoas que vieram de famílias que ascenderam socialmente graças à distribuição de terras há pouco mais de um século e meio atrás. Mas nem todo mundo se beneficiou.
Os que ficaram de fora
Carlos Marentes, da Via Campesina, ressalta que o processo também foi extremamente violento para as populações indígenas. Carlos é um trabalhador do campo de origem Mexicana e vive em El Paso, no Texas, desde os anos 1970. “Não foram terras desocupadas que foram dadas aos colonizadores”, diz Carlos, “eram terras que pertenciam às comunidades indígenas, aos povos originários. Dar terras aos colonizadores foi, também, um ato de desapropriação dos verdadeiros donos do território nos Estados Unidos”.
Mas os indígenas não foram os únicos que ficaram de fora. Quando pensamos nos filmes de Hollywood, que contam a história da marcha para o oeste, sempre vem à cabeça carroças repletas de famílias brancas. Isso acontece porque este era, de fato, o caso. A imensa maioria dos “Homesteaders”, como os assentados são chamados, era formada por imigrantes brancos da costa leste do país ou de países como Alemanha, Suécia e Noruega, que vieram para os EUA com a promessa de terra.
De acordo com um estudo da Universidade de Nebraska, menos de 0,5% das terras destinadas à reforma agrária foram parar nas mãos de famílias negras. A lei não proibia que negros tivessem acesso às terras, mas a realidade criava um impeditivo. Além do custo, relativamente baixo, das taxas legais, os assentados precisavam, antes de mais nada, atravessar o país, o que demandava um dinheiro que as pessoas, até pouco escravizadas, não tinham.
“Pessoas negras participaram”, afirma Edwards, “por exemplo, nas Grandes Planícies foram criadas as ‘colônias de Homesteaders negros’, como são chamadas, para apoiar uns aos outros”. O professor afirma que na época da criação da lei, os deputados e senadores do norte garantiram que a população negra não seria excluída da lei, mas que só em 1866 que todos puderam se beneficiar, após a libertação das pessoas escravizadas no sul do país.
Os números, porém, não mentem. A maioria avassaladora de assentados brancos perpetuou, ainda mais, a tremenda desigualdade racial existente no país. Até hoje, as terras nos Estados Unidos são praticamente propriedade exclusiva de pessoas brancas, como relata Marentes: “Nós temos aproximadamente 90 milhões de acres de terra que são propriedades privadas. 98% pertencem a pessoas brancas”.
Uma linha imaginária entre pobreza e riqueza
À população negra, do sul dos EUA, majoritariamente formada por trabalhadores recém-libertos, o governo prometeu 40 acres de terra e uma mula. Depois do assassinato de Lincoln, a promessa foi engavetada.
Os efeitos da não distribuição são sentidos até hoje, e por todo mundo. “A distribuição de terras é, certamente, uma parte importante da política social e da construção da sociedade”, comenta Edwards, “nós ainda sofremos as consequências do fracasso da distribuição de terras no período após a Guerra Civil. E isso tornou, como resultado, negros e brancos do sul pobres”.
O Homestead Act só foi substituído em 1976. No Alaska, a lei durou por mais 10 anos. Foi lá que o último título de terra gratuita foi entregue, em 1988. De lá para cá, novas legislações, que favorecem o agronegócio em detrimento da agricultura familiar, entraram em vigor.
As consequências são sentidas na pele por Carlos Marentes, na fronteira dos Estados Unidos com o México: “A maioria dos pequenos agricultores, que conseguiram não desaparecer, se tornaram acessórios do agronegócio. Atualmente, você acha pouquíssimas fazendas que produzem comida para alimentar pessoas, mas sim comida para alimentar gado e alimentar carros”.
Edição: Thales Schmidt e Patrícia de Matos