Guerra da Ucrânia

Quem são os grupos de paramilitares russos lutando ao lado da Ucrânia?

Integrantes são ligados à extrema-direita e têm ganhado notoriedade com operações militares na Rússia

Rio de Janeiro |
Combatentes do Corpo de Voluntários da Rússia e da Legião da Liberdade da Rússia, ao lado de um veículo blindado apreendido, perto da fronteira com a Rússia, em 24 de maio de 2023. - Sergey Bobok / AFP

A semana foi marcada por diversos ataques ucranianos nas regiões fronteiriças com a Rússia, em particular na região de Belgorod, reforçando a tese de que a aguardada contraofensiva da Ucrânia foi iniciada. As incursões em território russo têm sido reivindicadas por grupos paramilitares como a "Legião da Liberdade da Rússia” e o “Corpo de Voluntários Russos” (RDK, na sigla em inglês), formados em sua maioria por cidadãos russos que se voluntariaram em lutar do lado ucraniano.

As autoridades ucranianas não reconhecem oficialmente o envolvimento nestas operações, mas não escondem que veem com bons olhos o fato de que a guerra está penetrando o território russo. Após os ataques de drones contra Moscou em 30 de maio, o assessor do presidente da Ucrânia, Mykhailo Podolyak, disse: "estamos felizes em observar" e previu mais investidas em território russo.

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O Corpo de Voluntários Russo, em particular, ganhou notoriedade em março ao reivindicar a ofensiva em território russo na região de Bryansk, atacando militares russos e fazendo civis de reféns. Foi a primeira incursão deste tipo na Rússia. Na ocasião, o presidente Vladimir Putin afirmou que o "ataque de militantes ucranianos na região de Bryansk é um ato terrorista".

Esses grupos não são muito numerosos. Apesar da pouca informação que se tem sobre eles, registros de reuniões dessas organizações divulgadas pelos seus líderes nas redes sociais revelam uma quantidade de algumas dezenas de combatentes. Analistas apontam que o número total de membros não deve ultrapassar algumas centenas. A magnitude das suas operações também revela um poder de fogo limitado. No entanto, desde março, esses grupos têm tido êxito em expor as fragilidades de segurança e defesa russa nas suas fronteiras.


Foto postada em 20 de abril de 2023 na conta oficial do Telegram do prefeito de Belgorod, Valentin Demidov, mostra danos após uma explosão na cidade. / Telegram do prefeito de Belgorod, Valentin Demidov / AFP

O jornalista e analista político ucraniano, Vitaly Portnikov, em entrevista ao Brasil de Fato, afirmou que esses grupos são formados por “cidadãos russos que se manifestam ativamente contra o regime de Putin” e que consideram que a “agressão de Putin contra a Ucrânia só pode ser vencida por meio militares”.

De acordo com o analista, as táticas da Legião da Liberdade da Rússia e do RDK revelam uma fundamental distinção em relação a outras organizações russas de oposição a Putin. Enquanto fracções oposicionistas de orientação mais ocidental lutam pelo fim do governo de Putin através de atuação nos processos políticos, os grupos paramlitares que atuam na linha de frente do lado ucraniano “consideram que esse regime só pode ser vencido por meio da força”.

“Dessa forma eles se diferenciam de outra parte da oposição a Putin, que acha que pode haver algum processo político. Eu não tenho certeza que eles possam alcançar esses objetivos, mas, ao mesmo tempo, com suas ações ativas na região de Belgorod, eles conseguem mostrar toda a ineficácia do governo de Putin. Se algumas pessoas com armamento leve pode entrar no território da Rússia reconhecido internacionalmente e enfrentar o exército e matar soldados russos […] que Estado é esse que não é capaz proteger as suas próprias fronteiras?”, argumenta.

A intensificação dos combates levou o ministro da Defesa russo, Serguei Shoigu, a se manifestar sobre as baixas de soldados. Ele declarou que 71 militares foram mortos e que outros 210 ficaram feridos ao repelir ofensivas ucranianas. Além disso, 15 tanques russos,  dois veículos e nove veículos de combate e de infantaria foram atingidos.

Ligação com extrema-direita

Em maio deste ano, o Corpo de Voluntários da Rússia divulgou um manifesto no qual afirma que o grupo luta por um "Estado-nação russo" com uma "nova visão étnica do mundo". De acordo com o documento, nesse Estado a terra "pertencerá aos que nela nascerem" e "apenas o sangue, as habilidades e as realizações pessoais" importarão.

Apesar de a Ucrânia não reconhecer oficialmente envolvimento com o grupo, o manifesto do RDK menciona que a organização faz parte das Forças Armadas da Ucrânia. O analista do International Crisis Group para a Rússia, Oleg Ignatov, disse ao Brasil de Fato que esses grupos possivelmente são um projeto da inteligência ucraniana. Ignatov aponta que nas atuais circunstâncias da guerra um cidadão russo não pode entrar em território ucraniano sem visto, e “é claro que não pode conseguir armas na Ucrânia sem que haja apoio do exército ucraniano”.

Em relação ao espectro ideológico desses grupos, o analista do International Crisis Group para a Rússia observa que trata-se de nacionalistas russos de extrema-direita que acreditam que a guerra da Ucrânia é uma guerra de dois povos irmãos. Eles defendem que, na Rússia, seja criado um Estado nacional “monoétnico”, compartilhando os mesmos valores dos nacionalistas ucranianos em seu país.

Para esses grupos, o governo de Putin representa um regime imperial que vai na contramão dos interesses nacionais do povo russo. Ou seja, os grupos paramilitares se colocam como oposição a Putin e à guerra na medida em que acreditam que "um regime de ocupação de outros territórios não representa o povo russo", afirma Ignatov. A lógica desses grupos funciona, portanto, através de uma fórmula “Rússia para os russos”. Assim, as pretensões imperiais de incorporar territórios com outros grupos étnicos seria uma forma de contrariar essa ideia.

O analista destaca que essa orientação ideológica gera complicações de análise, pois também existe uma grande representatividade de grupos de extrema-direita alinhados com o governo Putin que são abertamente anti-Ucrânia. Desde o início da crise ucraniana em 2014, há uma fragmentação entre nacionalistas de extrema-direita russos em relação à guerra.

Também são notórios os vínculos de membros desses grupos com a propagação do neonazismo. Um dos integrantes do RDK, Alexei Levkin, liderou o grupo neonazista Wotanjugend e já participou de eventos dedicados a Hitler. Outro combatente do grupo, Alexander Skachkov, foi preso na Ucrânia em 2020 sob a acusação de posse de armas e distribuição do manifesto do neonazista Brenton Tarrant.

No contexto dos rumores de uma contraofensiva de larga escala por parte da Ucrânia, grupos como o RDK e a Legião da Liberdade da Rússia, oficialmente ou não, tornam-se um importante braço das Forças Armadas da Ucrânia. Apesar do radicalismo de alguns de seus membros serem um constrangimento para Kiev, sobretudo em relação ao apoio financeiro e militar do Ocidente, que não defende ações militares em território russo, há uma clara convergência de interesses no âmbito da contraofensiva.

Destruição de represa pode ser obstáculo para contraofensiva ucraniana

A Ucrânia ainda não admite o início de uma contraofensiva em larga escala, mas reconhece ofensivas pontuais em alguns pontos da linha de frente. O presidente russo, Vladimir Putin, por sua vez, declarou na última sexta-feira (9) que a investida ucraniana já iniciou, porém rechaçou que Kiev tenha conseguido ter êxito.

O que pode mudar os rumos dos planos da reação ucraniana são os desdobramentos do rompimento da represa da usina hidrelétrica de Kakhovka, que fica na região de Khserson, anexada pela Rússia em outubro de 2022.

O incidente provocou a inundação de mais de 80 assentamentos próximos à represa, causando uma grave crise humanitária. As autoridades locais decretaram um estado de emergência e a evacuação em massa da população local. 

:: 'Estado de emergência': rompimento de represa na Ucrânia inunda 80 assentamentos::


Forças de segurança ucranianas atuam durante evacuação de uma área inundada em Kherson em 7 de junho de 2023, após danos sofridos na barragem da usina hidrelétrica de Kakhovka. / Aleksey Filippov / AFP

Apenas dois dias antes do colapso da represa em Kherson, a Rússia chegou a anunciar que as Forças Armadas da Ucrânia iniciaram uma "ofensiva em larga escala". Para o jornalista e analista político Vitaly Portnikov, a Rússia destruiu a represa com o intuito de frear a ofensiva ucraniana.

“A ideia dessa ação é um desejo de frear a ofensiva das tropas da Ucrânia na margem esquerda do Rio Dniepre. Considerava-se que essa era uma das possíveis direções da ofensiva ucraniana nos territórios ocupados pela Rússia e agora, é claro, essa ofensiva será muito problemática”, concluiu.

Enquanto não há evidência clara sobre quem foi o responsável pela destruição da represa, os dois países se acusam mutuamente. Moscou, por sua vez, acusa Kiev de realizar uma “sabotagem”. 

Edição: Patrícia de Matos