Nas últimas décadas, as cadeias produtivas da sociobiodiversidade têm ganhado espaço nos mercados nacional e internacional. Além de alimentos como o mel e o açaí, produtos florestais não madeireiros como fibras, látex, cuias e resinas tornaram-se importantes para a bioeconomia de comunidades tradicionais da Amazônia, gerando renda e garantindo a manutenção da floresta em pé, em contraste ao desmatamento.
Apenas para comparação, no mês de abril deste ano, foram desmatados 328,71 km² na Amazônia segundo o INPE.
No Oeste do estado do Pará, destacam-se artesanatos como as cuias de Aritapera - declaradas Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), os trançados e teçumes das comunidades do rio Arapiuns; e os artesanatos oriundos do látex das comunidades da Floresta Nacional do Tapajós (Flona do Tapajós).
A comunidade de Jamaraquá, na Flona, é considerada a porta de entrada para o turismo na região do rio Tapajós. Visitantes de todos os lugares do mundo chegam para conhecer a vasta floresta que possui como uma das mais marcantes características os grandes seringais.
A seiva da árvore hevea brasiliensis, conhecida popularmente como seringueira, já era utilizada pelas comunidades tradicionais e indígenas para a produção de utensílios domésticos. No entanto, durante o Ciclo da Borracha, que se estendeu do fim do século 19 ao início do 20, essa atividade impactou significativamente não somente a economia, mas também os costumes do povo.
Após o fim do Ciclo da Borracha, foram décadas de inércia decorrentes do abandono dos seringais, até o início de um novo e revigorante ciclo, desta vez guiado pela expansão e intensificação do turismo de base comunitária na região, alicerçado no respeito ao limite ecológico do bioma, costumes, modo de vida e resiliência dos povos da floresta em consonância com a busca por alternativas de desenvolvimento econômico local, traduzindo um novo caminho: as cadeias produtivas da sociobiodiversidade.
Se um dia a seiva da seringueira foi conhecida como “ouro branco da Amazônia” por conta da borracha para pneus automobilísticos, hoje ela se transforma em biojoias, chaveiros, cadernos e sapatos, contribuindo para a geração de renda dos moradores que vivem em comunhão com o meio ambiente.
Donildo Lopes dos Santos, carinhosamente conhecido como Dido, é nativo da comunidade Jamaraquá e trabalha desde os 12 anos nos seringais. O saber tradicional herdado do pai o acompanha até hoje na extração da seiva: “comecei a andar com meu pai aqui dentro da mata, aprendendo a trabalhar com borracha porque eu via o meu pai trabalhar. No começo eu só acompanhava, foi com 12 anos que eu comecei a trabalhar com a borracha”, diz.
Hoje com 61 anos, conta que naquela época a borracha era muito valorizada, eles a vendiam em sua forma bruta. O trabalho começava na segunda-feira e no sábado era feita a coleta do material, pois o regatão, barco tradicional que passava pelas comunidades, comprava a borracha e a levava para Santarém.
Em 2004, a comunidade de Jamaraquá recebeu um projeto do Laboratório de Tecnologia Química – LATEQ, do Instituto de Química da Universidade de Brasília (UnB), sob coordenação do Professor Doutor Floriano Pastore Jr. Sabendo que às margens do Rio Tapajós existiam grandes árvores de seringa, ele viu um potencial produtivo.
Segundo o professor, o projeto teve como objetivo ampliar a produtividade de mantas, proporcionando melhorias técnicas e uso racional do látex da seringa. “O projeto treinou cerca de 20 comunitários, que assimilaram facilmente a técnica da Folha de Defumação Líquida, dada a sua simplicidade, pois era uma tecnologia direcionada ao seringueiro da Amazônia” , diz.
Ele destaca que até hoje a comunidade de Jamaraquá mantém em funcionamento a tecnologia através da produção da Folha Semi-Artefato (FSA), que é produzida na forma de folha e transformada em artesanatos criativos misturados a sementes da floresta. “Essa condição de manter viva a produção das folhas, em especial da FSA, foi o motivo que nos levou a escolher Jamaraquá para instalar a primeira unidade de produção do Tecido Emborrachado da Amazônia, o TEA, em 2014.”
O processo de retirada da seiva da seringueira manteve-se tradicional, porém agregado às boas práticas de manejo, o processo de preparo das mantas sofreu modificações com a adição de novas substâncias para melhorar a qualidade do produto final. A feitura é realizada de forma simples na oficina no centro da comunidade. O desejo dos artesãos é o uso exclusivo da tintura natural. Para isso buscam parceria com universidades para encontrar alternativas.
O projeto ampliou as oportunidades que geram renda a partir da produção de artesanato e, por isso, mais comunitários adotaram a atividade como forma de fonte de renda integrada ao turismo de base comunitária. Atualmente, quatro famílias trabalham diretamente com a cadeia produtiva do látex para fins artesanais. Cada membro responde por uma função, fortalecendo o saber passado de geração para geração.
“Aqui em casa minha mulher e meus filhos ficam responsáveis pela criatividade do artesanato, eles montam com sementes, fazem colar, caderno, sapatos. Esses saberes foram passados do meu avô para o meu pai, do meu pai para mim, de mim para os meus filhos, e dos meus filhos já vai para a outra geração”, explica Dido.
Em dezembro de 2017, um estudo da Universidade Federal do Oeste do Pará estimou a produção anual de 2,6 toneladas de látex extraídos pelo método conhecido como sangria na comunidade de Jamaraquá. “Considerando o número de árvores inventariadas em produção (836) nos três locais de coleta e três sangrias por mês, a produção de látex de Jamaraquá seria em torno de 323 kg mês, o que representaria, aproximadamente, 0,4 kg por árvore por mês ou 3,1 kg por árvore por ano”.
O látex transformado em artesanato agrega valor à borracha natural colhida na floresta, entretanto pouco ainda se sabe sobre a viabilidade econômica e a produtividade desta atividade considerando os poucos dados levantados na comunidade.
Comercialização e turismo: a loja de Jamaraquá
Quem visita Jamaraquá pode conhecer a loja de artesanatos da comunidade. O espaço reúne a produção artesanal, num misto de cores e texturas que impressionam os cerca de 60 visitantes que passam pelo local por dia na alta temporada, de julho a fevereiro.
A estrutura foi construída a partir do apoio do Projeto BR 163 - Floresta, Desenvolvimento e Participação, oferecido pelo Ministério do Meio Ambiente por meio de recursos da Comissão Europeia. No início eram produzidos somente artesanatos de sementes naturais, logo depois, a partir de oficinas profissionalizantes na comunidade, a atividade com látex passou a ganhar espaço.
Atualmente, a loja é abastecida por biojoias produzidas por 17 mulheres.
O Serviço Brasileiro de Apoio a Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) tem desenvolvido trabalhos que buscam entender a realidade e as necessidades das comunidades locais no empreendedorismo, mas ainda não atuam na área voltada ao artesanato de látex, conforme afirma Paulo Dirceu, gerente regional:
"Temos um pólo de Bioeconomia SEBRAE, no qual trabalhamos as comunidades da Flona, onde temos vários tipos de segmentos com temática de sustentabilidade e biodiversidade da Amazônia [...] com foco em empreendimentos formalizados com CNPJ.”
Dona Lourdes Melo dos Santos, uma das artesãs, conta que a dificuldade para a inserção no mercado é proporcional à facilidade da aquisição de matéria prima, mas que se mantém otimista frente a seu maior desafio: a compreensão do grande potencial do empreendedorismo das mulheres da floresta.
“Hoje a gente só vende os nossos artesanatos aqui na lojinha. Os turistas precisam vir até aqui para conhecer nossos produtos, por um lado é bom, mas quando estamos na baixa temporada não podemos contar com essa renda”, explica.
A artesã destaca também que a falta de meios para escoar o produto é um dos grandes entraves. A estruturação da cadeia é um dos desafios a serem superados. “Nós precisamos de uma pessoa que nos ajude e diga que nós temos mercado, e que podemos produzir a quantia que a gente quiser que vai ter saída. Aqui na comunidade a gente sempre bate nessa tecla nas reuniões”, relata.
Apesar da produção desses artesanatos fluir muito bem e eles conseguirem atender todas as demandas, a necessidade de cursos, oficinas, palestras e workshops voltados ao empreendedorismo para comunidades tradicionais é real, persistente e sentida diretamente por produtoras como Dona Lurdes, que diz que é preciso maior conhecimento acerca de cadeias produtivas, planejamento e logística, além de controle de estoque, precificação de produto e formas de comercialização.
Em anos anteriores a lojinha tinha o controle do fluxo de comercialização de seus produtos, atividade que era feita por consultora voluntária, contudo, tal controle de fluxo deixou de ser feito após seu afastamento, devido à falta de conhecimento e instrução dos processos administrativos acerca das vendas por parte das comunitárias.
Marlena Soares (foto), articuladora de projetos ambientais da Conexsus, atua com mais de 20 negócios comunitários na região do Tapajós, e destaca a importância dos produtos da sociobiodiversidade para a economia: “Um produto que vem da sociobiodiversidade, ele tem um valor agregado muito forte, porque conta a história de quem está por trás do produto, gera renda para as famílias e protege o território”, diz Marlena.
Um estudo realizado pela The Nature Conservancy (TNC), em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Natura, mostra os impactos socioeconômicos dos produtos da sociobiodiversidade no estado do Pará. Os dados destacam que em 2019, o PIB gerado por 30 cadeias produtivas analisadas foi de R$5,4 bilhões, além da geração de mais de 200 mil empregos.
A dependência da sociedade de modelos insustentáveis de produção e consumo e a atual crise ambiental ocorrendo ao mesmo tempo em que a luta dos povos da floresta ganha força, realçam a importância e os benefícios das cadeias produtivas da sociobiodiversidade. A continuidade da tradição da produção comunitária de artesanato oriundo do látex na Amazônia colabora com a preservação e manutenção da vida e estimula a bioeconomia como fonte de renda para os povos da floresta.
*Reportagem para o Programa de Microbolsas Jornalismo Tapajós, uma parceria do Laboratório de Comunicação Amazônia e do Projeto Saúde e Alegria para estimular a produção jornalística de jovens profissionais da região.
Edição: Rodrigo Durão Coelho