O impresso no pacote anuncia: “O Arroz Velho Chico é produzido pelo campesinato do Baixo São Francisco, em Sergipe, a partir de práticas agroecológicas: com redução do uso de agrotóxicos. Ao consumir nossos alimentos, você contribui com a preservação dos recursos naturais e promove a economia socialmente justa, solidária e sustentável”.
O anúncio está acompanhado dos símbolos do Movimento dos Pequenos Agricultores, o MPA, e do Balaio de Solidariedade, projeto de iniciativa da Cáritas Nordeste 3 com o objetivo de fortalecer grupos socioprodutivos e a comercialização de produtos do campesinato, com destaque para o Arroz Velho Chico. (1)
Esse anuncio pode ser considerado um resumo da história de como a região e as relações de trabalho no Baixo São Francisco têm sido revitalizadas e melhoradas, a partir do trabalho do campesinato organizado pelo MPA para o plantio agroecológico de arroz. Desde 2016, o MPA, em parceria com a Cáritas, desenvolve o processo de transição agroecológica junto aos pequenos produtores da região, permitindo que alterem a forma de produzir arroz no Baixo São Francisco, trocando o cultivo baseado em agrotóxicos para o cultivo baseado em práticas agroecológicas.
A rizicultura é, historicamente, um dos mais importantes cultivos para a exploração econômica do Baixo São Francisco. Ao longo do tempo, a produção de arroz nessa região - que abrange cidades dos estados da Bahia, Pernambuco e Sergipe -, sofreu modificações causadas pela construção de barragens. E entre os anos de 1990 e início dos anos 2000, mais acentuadamente, foi, assim como ocorreu no restante do país, atingida pelo avanço das práticas de cultivo do agronegócio.
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A região é a “única no Baixo São Francisco que possui as várzeas banhadas pelo Velho Chico”. São mil quinhentos e seis lotes distribuídos entre famílias de pequenos agricultores ainda no período da ditadura militar, em um tipo ato que visava, não a distribuição de terras, mas a construção de barragens e a exploração econômica da região. Os lotes, de aproximadamente 3.8 hectares, estão nos territórios de cinco a seis municípios das áreas chamadas de lagoas, por serem banhadas naturalmente pelo Velho Chico, antes da construção de barragens, e com o apoio de sistemas de irrigação da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, a Codevasf, após.
O processo de transição agroecológica da produção organizado pelo MPA, teve início com a chegada do movimento social no Baixo São Francisco. Apoiados na experiência de militantes campesinos do Rio Grande do Sul com a rizicultura, o primeiro lote de arroz foi plantado na comunidade de Santa Cruz, em Propiá, dando início a uma experiência que, em sua terceira lavoura recebeu o apoio financeiro do Banco Mundial, através do projeto Dom Távora.
Este foi um aporte de recursos importante para apoiar a implementação de lavouras com a transição agroecológica mediante à ausência de políticas governamentais. Permitiu que os rizicultores se familiarizassem com a experiência e se abrissem à transição agroecológica em larga escala.
O projeto “financiou a lavoura sem custo, e isso deu uma ótima produção, a gente fez um bom ato de abertura da colheita [...] assim, se consolidou e nós [...] determinamos que o arroz se chamaria Velho Chico. Conseguimos imprimir a marca e o saquinho do arroz para poder empacotar”.
Elielma Barros, uma das coordenadoras da iniciativa pelo MPA, pontua que foi o “MPA em articulação com a Cáritas diocesana de Propiá que construiu o trabalho com os rizicultores, bebendo da experiência de camponeses assentados da Reforma Agrária no Rio Grande do Sul”.
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De acordo com Elielma, essa experiência foi construída a partir da compreensão pelo MPA de “que o modelo tecnológico de produção é o modelo agroecológico, com a produção de alimentos saudáveis, a geração de renda para as famílias da região e, sobretudo, para o contraponto do modelo produtivo predominante no Baixo São Francisco, com o uso de veneno e o monopólio do mercado”.
A partir de reuniões, encontros de formação e visitas aos pequenos agricultores, a transição foi articulada de modo a cobrir o beneficiamento, a comercialização e demais processos da produção com práticas agroecológicas. As famílias envolvidas na produção são camponesas, ribeirinhas trabalhadoras da rizicultura por gerações.
O trabalho do MPA na região, pode ser caracterizado como de convencimento e trabalho constantes, pois a produção baseada no uso de agrotóxicos se dá, em resumo, por meio da oferta de pacotes aos agricultores familiares da região. O processo de transição agroecológica, tanto pela ausência de subsídios, quanto de uma política pública que apoie a transição agroecológica em larga escala, é encarado pelos pequenos agricultores como um processo “muito desafiador” .
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Rogério Sebastião, campesino do MPA e produtor no povoado Serrão, em Ilha das Flores, no Sergipe, iniciou a produção do arroz Velho Chico na terra de sua família em 2021, e atualmente acompanha a experiência de implementação da produção no território quilombola “Brejão dos Negros”, localizado em Brejo Grande.
Rogério considera que foi desafiador porque havia “muito receio da minha família e dos meus vizinhos de lote, alegando a possível perda da produção e consequentemente da renda, além de deixar de combater as pragas com químicos, que achávamos que era a única alternativa para o combate”. Porém, no primeiro ano de produção agroecológica, Rogério e sua família viram uma “produção até maior do que no ano anterior com a plantação convencional”.
A produção do arroz Velho Chico, de caráter agroecológico, envolve as famílias dos pequenos produtores, pois é a presença e a mão de obra familiar que caracteriza a pequena produção. Assim, o processo de transição acontece baseado não somente no apoio e na gestão de práticas agroecológicas, mas também, e principalmente, no trabalho sócio-cultural e educativo junto às comunidades produtoras:
“Nesse processo, se estabelece todo um programa de formação de acompanhamento da lavoura, de implementação, de produção dos bioinsumos, de defensivos naturais porque a região é muito rica nisso, então todo defensivo é feito extraído da natureza, pulmonil, xixi de vaca como fertilizante, da castanha crua com álcool é feito defensivo também, água de vidro e outros produtos que são utilizados para não usar o produto químico.”
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A construção da transição agroecológica pelo MPA, passa pela organização das famílias para a troca de experiências, aprendizados e reaprendizados sobre as formas de se relacionar com os recursos naturais e de se viver no e do campo. Para tanto, constrói pontos de interseção entre a política, a saúde, a nutrição e a biodiversidade que beneficiam os campesinos e campesinas no longo prazo e o desenvolvimento econômico e social da região.
O impacto disso, como pontua Rogério é a “diminuição do uso de agrotóxicos e de adubos químicos, de organização das famílias envolvidas, gerando consciência social e política de cuidado e responsabilidade com o meio ambiente”, e o entendimento de que “os rizicultores não precisam do veneno, são as empresas do veneno que precisam dos rizicultores”, para gerar a dependência das famílias “porque os pacotes de venenos já vinham prontos”.
Segundo Mauro Luiz Cibulski, militante do MPA e da Cáritas, a entrada massiva do agronegócio na região, a partir dos anos de 1990 em diante, gerou “uma enorme dependência dos agricultores em relação aos bancos, aos atravessadores e às políticas neoliberais do agronegócio”. Esta dependência promoveu o endividamento intergeracional dos pequenos agricultores e, consequentemente, o empobrecimento e o avanço da insegurança alimentar entre as famílias. Na contramão desse processo, o projeto de transição agroecológica do MPA tem permitido que os rizicultores comam o próprio arroz, algo que “não era comum antes”.
A rizicultura realizada com as práticas do agronegócio, hegemônicas antes do desenvolvimento do projeto de transição agroecológica do MPA, é baseada em um modelo de produção que privilegia o uso de químicos, se valendo largamente do uso de atravessadores: “Como o agricultor não tem acesso a banco, ao financiamento [...] o atravessador entregava o pacote, ou seja, a semente, o maquinário, o adubo e o veneno. O agricultor se tornava simplesmente um mero empregado.”
Ou seja, os atravessadores – vendedores de base do agronegócio, em termos simplificados – entregam ao pequeno agricultor um pacote que será utilizado “independente se a lavoura pedir ou não, porque o atravessador ganha na venda do produto e depois recebe toda a produção e faz uma conta do que sobra para o agricultor, ou não”.
O lucro da produção calculado dessa forma e em um momento no qual todos os atravessadores estão recebendo as produções, o que pressiona os preços para baixo, é repassado aos pequenos agricultores para que se mantenha “esse vínculo, para no próximo ano, financiar de novo” a lavoura.
É preciso considerar que “o custo do agrotóxico é muito alto. Tanto do agrotóxico, quanto da adubação química”. O modelo adotado pelo agronegócio e pelos atravessadores, como no caso da região, “não leva em conta a necessidade do uso”.
Nas lavouras, o interesse está na venda “pronta” do pacote de venenos. É um setor de negócios que se promove pela prática de lançamentos: “todo ano [...] eles colocam no mercado como uma novidade, então a produção de alimentos é uma mercadoria para eles, não é alimento”.
Esse conjunto de práticas, deixa claro que o que interessa na rizicultura estruturada pelo agronegócio “não é só a produção e a compra do arroz. Interessa a venda dos insumos que são os agrotóxicos e os agroquímicos no geral. Como sempre tem novidade, e eles têm uma assistência técnica deles, que são os vendedores, todo ano eles empurram muito a ideia de ‘novidades’, entre elas, muito veneno, e isso gera o endividamento, tem venenos caríssimos.”
Em uma região historicamente marcada por um índice de desenvolvimento humano já muito baixo, o endividamento intergeracional é um agravante produzido em torno de um cultivo que poderia, fora do agronegócio, gerar sustentabilidade econômica, social, ambiental e cultural na região.
Porém, na prática, para os pequenos agricultores vinculados ao agronegócio, esse tipo de produção se dá da seguinte maneira: “Um exemplo, um agricultor tem 3.8 hectares de terra, há um pacote pronto. Tantos quilos de sementes, tantas horas de máquina, tantos tipos de veneno, planta no plantio e no pós-plantio tal data, vem uma receita e eles entregam esse pacote, o agricultor recebe, cuida da produção, quando colhe, entrega a produção para eles e eles fazem essa conta [...] Então, quanto mais eles venderem veneno, quanto mais eles tiverem novidade para o agricultor, é um endividamento a mais, independente se precisa ou não.”
A transição agroecológica promovida através da produção do Arroz Velho Chico é fundamental para o desenvolvimento econômico, social, cultural e para a reprodução da vida na região. As questões ambientais passam a ser privilegiadas, com a promoção da “importância de cuidar o Velho Chico, o Rio São Francisco, que abastece grandes partes dos estados do Nordeste. Aqui em Sergipe, mais de 70% do consumo da água é dele, humana inclusive, então o cuidado e o respeito são necessários, porque a produção é nas margens do Velho Chico, então todo aquele resíduo do veneno vai para o rio”.
E, tão importante quanto, os camponeses e camponesas que se dedicam à rizicultura demonstram que um modelo produtivo fora do agronegócio “onde se diz que tudo é dentro daquele pacote”, é possível.
Desde o início das atividades do MPA, produz-se “muito bem, praticamente a produtividade não caiu, ela se manteve, não usando os produtos químicos, apenas os produtos naturais, a única coisa que se compra de fora é o esterco da galinha que lá na região não tem todo que é preciso para a adubação e a fertilização do solo” .
Entretanto, sem uma política de transição agroecológica massiva no país, todo o trabalho nas lavouras, de formação dos rizicultores, de assistência técnica, armazenamento, escoamento e comercialização está a cargo dos movimentos sociais e seus próprios recursos, em geral, advindos de parcerias e doações. No caso do Velho Chico, a responsabilidade está com o MPA.
Os camponeses e camponesas indicam certo esgotamento das políticas governamentais de acesso ao crédito e às linhas de financiamento das lavouras nos moldes atuais. Estes, tendem a favorecer o agronegócio, e sem incentivos direcionados à transição agroecológica, ou mesmo que considerem as especificidades dos movimentos sociais, o acesso a programas públicos pelo campesinato fica comprometido.
Em um país marcado por programas e política sociais sob os quais recai toda a responsabilidade de minoração da pobreza e da fome, que como vimos nos últimos anos, ficam ao sabor do governo em exercício, a transição agroecológica massiva oferece uma saída sustentável, de longo prazo e que cria tecnologias sociais que permitem a existência no campo e o abastecimento das cidades com a preservação da natureza, da cultura e de um modelo que privilegia a vida.
Se o objetivo é que dependamos cada vez menos desses programas para atingirmos a meta de quebra intergeracional da pobreza, colocada por programas como o Bolsa Família, tudo isso já está acontecendo no campo, falta a decisão política de apoiá-la.
Nota da autora: Registro meus agradecimentos ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), pela confiança e abertura ao me convidarem para conhecer a série de iniciativas que desenvolvem pelo país. Pensar “um campo diferente para o campesinato brasileiro”, a potência do Projeto Raízes do Brasil: comida de verdade, como podemos Fazer chegar os alimentos e a Soberania Alimentar e conhecer a proposta de transição agroecológica do Arroz Velho Chico e a quebra intergeracional de pobreza que ela promove, só foi possível porque campesinos e campesinas toparam responder minhas questões e, pacientemente, me explicar o que eu não sabia e não conhecia, aprendi muito com todos/as eles/as, meus agradecimentos ao Beto e ao Mateus que me forneceram o suporte necessário. A publicação desta série de textos não teria acontecido sem o apoio do Brasil de Fato, e registro meus mais sinceros agradecimentos, na figura do editor-executivo Glauco Faria, pela confiança e pelo espaço cedidos para este projeto.
Notas:
(1) “Criada em 2019, a Rede Balaio de Solidariedade agrega mais de 50 empreendimentos econômicos solidários da Bahia e Sergipe e vem somando esforços na comercialização e aquisição de insumos, além de contribuir para o fortalecimento de mulheres que atuam em coletivo gerando renda para o sustento de suas famílias. A rede possui lojas em Feira de Santana, Banzaê e Rui Barbosa, na Bahia, e em breve terá espaço de comercialização fixo em Aracaju (SE).” Cáritas Brasileira – CNBB. <http://ne3.caritas.org.br/noticias/assessora-nacional-de-economia-popular-solidaria-destaca-avancos-e-desafios-na-bahia-e-em-sergipe>
(2) Cuenca, M.A.G; Nazário, C.C. A rizicultura no Baixo São Francisco alagoano – aspectos conjunturais e sua evolução no período de 1990 e 2001. (Embrapa Tabuleiros Costeiros. Documentos, 55). Disponível em: < http://www.cpatc.embrapa.br/publicacoes_2003/D55.pdf >.
(3) Cibulski, Mauro Luiz. Entrevista concedida à Denise De Sordi. 10 e 11 maio de 2023. Acervo de pesquisa da autora.
(4) Barros, Elielma. Entrevista concedida à Denise De Sordi. 11 maio de 2023.
(5) Sebastião, Rogério. Entrevista concedida à Denise De Sordi. 11e 12 maio de 2023.
(6) Quevedo, Mateus. Entrevista com Lenilce Santos, jovem camponesa. MPA. 17 jun. 2022. Disponível em: https://mpabrasil.org.br/noticias/o-velho-chico-permitiu-que-os-rizicultores-comessem-seu-proprio-arroz/
* Denise De Sordi é doutora em História Social, pesquisadora da FFLCH/USP e da Fiocruz. É especialista em políticas e programas sociais e nas relações entre movimentos sociais e Estado no Brasil contemporâneo. Desde 2020 se dedica a pesquisas que analisam a emergência das Cozinhas Solidárias e comunitárias enquanto formas de mobilização social que têm revitalizado a esfera pública brasileira.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho