O Supremo Tribunal Federal (STF) terá a oportunidade de sedimentar a interpretação dos direitos constitucionais indígenas em junho deste ano.
Está em pauta não apenas a definição do alcance do art. 231, referente à posse tradicional das terras indígenas, que engloba a demarcação e proteção destes territórios, mas também da garantia do acesso à Justiça aos povos indígenas, prevista no art. 232 da Constituição Federal, e, da consulta livre prévia e informada assegurada na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Constam na pauta do dia 07 de junho seis processos (ACO 1100, AR 2759, RE 1017365 (Tema 1031), ADI 5905, ADPF 991 e ARE 803462) que versam sobre essas matérias, o que indica a disponibilidade da Corte em enfrentar estes temas, que certamente se encontram maturados pelo conjunto dos magistrados.
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Vale lembrar que, nos últimos anos, a matéria indígena foi motivo de ameaça direta aos ministros e ao cumprimento das decisões do STF, a exemplo das promessas feitas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e sustentadas por mobilizações financiadas, ao que tudo indica, como se revelou a posteriori, por associações ligadas ao agronegócio brasileiro.
Interessante notar, que, tão logo se sinaliza a retomada de julgamentos sobre o tema indígena, se assanham aqueles que buscam suprimir a competência da mais alta Corte de Justiça em guardar a Constituição brasileira. Se não for pelo arbítrio da ameaça, e aqui relembramos 07 de setembro de 2021, ou da força, vívida na memória de todos os atos golpistas de 08 de janeiro, será pela via oblíqua da tramitação com urgência do Projeto de Lei 490/2007 na Câmara dos Deputados, uma proposta claramente inconstitucional, aprovada na Câmara no dia 30 de maio.
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Não surpreende o fato de o pedido de urgência ter sido formulado pelo Deputado investigado por estimular atos antidemocráticos, basta procurar pelo nome do parlamentar em qualquer site de buscas que se encontrarão menções, por exemplo, de pedidos de impeachment contra Ministros do STF. Como também não surpreende a expressiva votação na Câmara dos Deputados favorável à urgência na tramitação do PL 490, que contou com apoio de partidos ligados ao bolsonarismo mais radical e ao agronegócio.
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Todavia, a presente reflexão busca lançar luz especificamente sobre o chamado marco temporal.
Já tivemos em outras ocasiões a oportunidade de tratar do tema a partir da teoria do indigenato, da escolha dos Constituintes pelo direito originário, da imutabilidade do art. 231 da Constituição Federal em razão da consagração de direitos fundamentais como cláusulas pétreas, ou seja, cláusulas, como o art. 231, que não estão sujeitas à vontade de legisladores ordinários.
Para o Poder Constituinte, de 1987/88, foi consagrado como direito fundante do nosso país, verdadeira cláusula pétrea, o art. 231 da Constituição Federal: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. (...)"
É justamente sobre a integralidade do art. 231 da CF que será fixada a interpretação do Supremo Tribunal Federal, que uniformizará o entendimento constitucional acerca do direito dos povos indígenas sobre as terras que ocupam.
Quando reconheceu a repercussão geral do julgamento do RE 1017365, em 22 de fevereiro de 2019, o STF apontou o conteúdo a ser enfrentado, cujo o título foi assim fixado:
Tema 1031: Definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional.
Embora o julgamento tenha ficado popularmente conhecido como o julgamento do “marco temporal”, em nenhum momento o Constituinte ou mesmo o STF menciona o termo: “marco temporal”, como acima transcritos.
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A melhor definição do que seria o marco temporal, que tivemos a feliz oportunidade de ouvir recentemente, foi a construída pelo advogado indígena Ivo Macuxi, de Roraima, durante o Acampamento Terra Livre de 2023:
O marco temporal é uma fake news!
Concordamos com o colega, Dr. Ivo, pois é disso que se trata, o marco temporal é uma mentira argumentativa que restringe o alcance do art. 231 da Constituição Federal e suprime o direito mais importante para a existência dos povos indígenas e da pluralidade cultural de nossa nação.
Já para o Ministro Nunes Marques, no voto proferido no RE-RG 1017365 (Tema 1031), o marco temporal, seria:
“(...) Segundo tal critério, são consideradas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas somente aquelas que eles habitavam na data da promulgação da Constituição de 1988 – esse é o marco temporal. A teoria do fato indígena, que embasou o posicionamento deste Tribunal no caso mencionado, é a que melhor concilia os interesses em jogo na questão indígena. Por um lado, admite-se que os índios remanescentes em 1988 e suas gerações posteriores têm direito à posse de suas terras tradicionais, para que possam desenvolver livremente o seu modo de vida; por outro,procura-se anistiar oficialmente esbulhos ancestrais, ocorridos em épocas distantes, já acomodados pelo tempo e pela própria dinâmica histórica." (Grifos nossos).
Certo é que o Supremo Tribunal Federal em algumas oportunidades esclareceu que as condicionantes aplicadas ao caso Raposa Serra do Sol (Pet 3388), referenciado no voto do Min. Nunes Marques, observaram as especificidades do caso em concreto, pois se trata de uma decisão que ao final garantiu aos indígenas o direito à terra, reafirmou o texto da Constituição e a constitucionalidade do Decreto 1775/1996, bem como a legalidade e a juridicidade daquela demarcação e não o contrário. Não se tratou de um acórdão restritivo ou vinculante.
É difícil crer que a mais alta Corte de Justiça de nosso país tenha a intenção de anistiar os crimes que vitimaram os povos indígenas para apropriação de suas terras, como ocorrerá caso seja acolhido o argumento do “marco temporal”.
Tal perspectiva vai na contramão do avanço civilizatório de nossa humanidade e seria, por óbvio, um vexame internacional em um país que se lança mundialmente na atualidade como o baluarte da defesa dos direitos dos povos originários e da preservação do meio ambiente. Muito menos será a fake news do marco temporal a escolha de voto de ministros com longa trajetória profissional e acadêmica em defesa da Constituição Federal.
Pois se trata, o marco temporal, de mero argumento, uma escolha retórica oportunista e criminosa de convencimento, desprovida de fundamento jurídico e doutrinário que busca açoitar ainda mais os povos indígenas do Brasil.
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* Paloma Gomes, Rafael Modesto e Nicolas Nascimento, advogados e assessores jurídicos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Integrantes da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap).
** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Flávia Quirino