Reação

Após repressão e sob cerco policial, indígenas convocam mobilização no Jaraguá no domingo (4)

Os Guarani Mbya reivindicam o direito de terminar o ato contra o PL 490 interrompido pela PM na rodovia dos Bandeirantes

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Polícia Militar entra em aldeia Guarani Mbya sem mandado judicial na madrugada desta quarta (31) - Divulgação

Após a Polícia Militar (PM) “caçar” manifestantes indígenas no Jaraguá, a Câmara dos Deputados aprovar o Marco Temporal com o Projeto de Lei (PL) 490/07 e viaturas da polícia cercarem a comunidade Guarani Mbya, os indígenas convocam uma mobilização para o próximo domingo (4), às 8h. A concentração é na Terra Indígena (TI) Jaraguá. 

Os indígenas reivindicam o direito de terminar a manifestação contra o PL 490/07, que foi brutalmente interrompida pela PM na rodovia dos Bandeirantes na última terça (30). “Queremos que o Estado nos apoie para que a gente possa fazer nosso ato, nossa reza, em segurança até onde a gente tem que ir. Porque esse território também é nosso. Nós também fazemos parte desse todo”, salienta Thiago Karai Djekupe, do povo Guarani Mbya. 

O chamado acontece no contexto em que o território está sofrendo um cerco das forças de segurança do Estado de São Paulo. Desde a repressão ao protesto, policiais permanecem estacionados nos arredores e entradas das aldeias. Moradores, apoiadores e jornalistas que entravam ou saíam do território nesta quarta (31) foram abordados e uma liderança precisou sair da aldeia dentro do carro da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) para que pudesse ir trabalhar.  

Além disto, durante a madrugada desta quarta (31), uma viatura da PM entrou na aldeia. Segundo uma apoiadora jurídica dos indígenas que conversou com os agentes – e a eles teve de mostrar o documento – eles disseram que a visita era “preventiva” e fizeram questionamentos sobre o que estaria acontecendo ou sendo preparado. 

“Sem que haja a ocorrência de um crime comum que tenha sido noticiado, a presença da PM não pode ser aceita dentro de território indígena sem que as lideranças tenham sido consultadas", explica Luisa Cytrynowicz, assessora jurídica da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY). “A Polícia Federal é que é responsável de tratar de questões relacionadas a direitos indígenas”, afirma a advogada. “É ilegal a postura da PM com essa presença intimidatória”, constata. 

Bombas, tiros e perseguição 

Ao ver o helicóptero da PM que sobrevoou a TI Jaraguá durante todo o dia de terça-feira (30), uma criança do povo Guarani Mbya perguntou à mãe se “a guerra vai começar de novo”. Os tiros de bala de borracha, jatos de água e bombas de gás não foram disparados pela polícia na manhã de terça apenas para dispersar os manifestantes da rodovia.  


Além de um ancião de 106 anos, o protesto reprimido pela polícia tinha dezenas de crianças / Gabriela Moncau

Depois que a rodovia dos Bandeirantes já estava desobstruída, a PM perseguiu as pessoas, inclusive com rasantes de helicóptero, até a entrada da aldeia. Jogaram bombas de gás por cima do muro, ao lado do Centro de Educação e Cultura Indígena (CECI), a escola infantil. Houve desmaios, vômitos e atingidos com estilhaços de bomba e balas de borracha - um, inclusive, na testa.  

Ao Brasil de Fato, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) informou que desde que o travamento da rodovia aconteceu, policiais tentaram negociar com as lideranças “para a desobstrução da via, de forma que os grupos tivessem assegurado seu direito à livre manifestação sem desrespeitar o direito de ir e vir”. Não tendo sucesso, diz a nota, “a Tropa de Choque precisou agir com técnicas de dispersão de multidões”. 

Mas a reportagem presenciou a negociação e os acontecimentos ocorreram de forma diferente. O acordo entre as partes foi de que uma faixa da via seria liberada. Os manifestantes cumpriram e, depois, informaram que poderiam liberar mais uma. Neste momento, entretanto, um jato de água de um caminhão blindado iniciou a repressão. A PM informou, ainda, “que não há relato de feridos”.  

De novo, não é o que evidencia a ferida de bala de borracha na testa e o olho roxo e inchado de Natalício Karai de Souza.


"A gente está apenas protestando contra o PL 490. O que não era para acontecer, aconteceu", diz Natalício. / Arquivo pessoal

“Fico feliz de não ter perdido minha visão. O resto, passa. Eu me coloquei no meio para não machucar mais ninguém. Porque nós, indígenas, não somos animais, cachorros. Somos humanos”, relata. 


Parlamentares do PSOL pediram ao Ministério Público a responsabilização de Tarcísio por repressão contra indígenas / Allison Sales/AFP

“Passaram dos limites. Não poderiam jogar bombas para cá, dentro do território. E eles não deixaram nós, a comunidade do Jaraguá, descansar”, denuncia Natalício Karai. “Está na hora deles pararem. A gente não está provocando ninguém. Nós não somos bandidos. Somos indígenas protegendo a natureza que ficou. Se protegendo do PL 490. É isso que a gente está fazendo”.  

“Eles vêm fazer o que dentro da comunidade? O que a gente tem aqui? Para que vão fazer ronda toda hora?”, se indigna Karai. Em nota, a SSP diz que a PM “tem previsão constitucional para o patrulhamento ostensivo rotineiro, inclusive no interior das comunidades indígenas”. 

“Ninguém vai segurar a gente” diz Natalício, ao explicar: “Não estou falando isso provocando. Falo porque a gente está no nosso direito. Essa luta não vai parar, não vai mesmo. Porque nós indígenas somos resistência”. 

"A gente não tem a opção de recuar"


Na noite da mesma terça em que houve o ato, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 490, que institui o marco temporal e flexibiliza mineração em TIs / Gabriela Moncau

Tape rupi pela vida”. Com o nome que em guarani significa “caminhada pela vida”, o ato na TI Jaraguá está marcado para a manhã do domingo, mas a mobilização deve começar já na noite de sábado (3). A comunidade convoca apoiadores a levarem barracas para passar a noite em vigília no tekoa Yvy Porã.  

“Ocupamos a rodovia dos Bandeirantes porque através de rezas e sonhos, nós fomos guiados a fazer uma cerimônia até o rio Tietê”, conta Thiago Djekupe. “O ex-presidente Jair Bolsonaro fez, por duas vezes, motociata na rodovia dos Bandeirantes. Esse é o nosso mundo também. Também temos o nosso tempo”, expõe.  

“Mas a justificativa dos juruá [brancos] para cometer a violência contra nós é que estávamos incomodando eles durante um dia. Mesmo que eles estejam nos incomodando desde quando chegaram há mais de 500 anos”, compara. “Desde muito tempo a polícia age com abordagens racistas contra nós”.  

“Desde quando fizemos uma ocupação no terreno onde uma construtora quer fazer um empreendimento, a gente vem sendo agredido pela polícia”, denuncia: “Eu, hoje, estou aqui por causa dessa mobilização. Mas estou fugido do meu território por estar sofrendo ameaça de morte”. 

“A gente precisa que a população compreenda o que a gente está sofrendo e que nos ajude a sair desse ciclo de violência que o Estado nos coloca”, convoca Thiago. “Precisamos que as pessoas que se identificam com a causa indígena, ambiental, que queiram buscar sua ancestralidade, que querem aquilombar a periferia – precisamos que lembrem que existimos, que nossos territórios estão expostos e que nesse momento estamos sob ameaça”, ressalta. 

“A gente precisa de apoio”, diz Djekupe. “Tanta violência não pode ser legitimada dessa forma”, defende. “E resistir, para nós, é a única opção”. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho