A CNN Brasil, Metrópoles e outros veículos publicaram nesta semana uma notícia falsa sobre um suposto investimento de US$ 50 bilhões da empresa ucraniana Antonov no Brasil. A iniciativa teria sido cancelada após comentários do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia.
De acordo com o Metrópoles, as tratativas da fabricante de aviões com o governo de São Paulo foram desfeitas após um "mal-estar" causado por comentários de Lula sobre o conflito no leste europeu, que teria usado um tom que "pesou na comunidade internacional". Assim, o plano de construir uma fábrica de 70 mil metros quadrados teria sido abolido.
Em declarações públicas, o presidente brasileiro aponta a responsabilidade da Europa e dos Estados Unidos no conflito por enviarem armas para os ucranianos e defende que tanto a Ucrânia quanto a Rússia não tomam "a iniciativa de parar". O discurso e as propostas do petista não rimam com a versão dos Estados Unidos e do Ocidente para a guerra.
A notícia de que a empresa estatal ucraniana teria preparado um investimento de uma cifra que representa 25% do seu PIB de 2021, ou seja, antes da invasão russa afetar sua economia, foi questionada nas redes sociais. A Ucrânia conta com repasses de armas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e dos EUA para guerrear com a Rússia e o Fundo Monetário Internacional (FMI) já emprestou US$ 115 bilhões para os ucranianos, sendo que US$ 15,6 bilhões foram liberados em março.
E então veio a CNN Brasil. O site da rede internacional de televisão publicou que o governo de São Paulo confirmou uma reunião entre representantes da Antonov no Palácio dos Bandeirantes, com a Secretaria de Negócios Internacionais, para tratar do suposto investimento de US$ 50 bilhões. A reportagem conta com um "print" da "apresentação na qual o valor foi destacado". O material, que ilustra uma proposta bilionária, tem erros de português, como a grafia da Ucrânia sem acento e a palavra "Compamnhia".
Além disso, no rodapé da apresentação existe o logo de uma suposta empresa chamada "Bueno Maia Consultoria". Todavia, não existem registros na internet de uma companhia com esse nome.
Outra empresa citada no print é o escritório Kuntz Advocacia. O Brasil de Fato conseguiu confirmar a existência do empreendimento, que afirma em sua página no LinkedIn ter oito funcionários e ser um "escritório enxuto". A reportagem procurou por telefone e e-mail a Kuntz Advocacia para perguntar sobre a suposta negociação entre ucranianos e o governo paulista, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Diante da repercussão do caso, a Antonov publicou em sua página oficial no Facebook uma nota desmentindo qualquer negociação no Brasil.
"No atual momento a grande mídia da República Federativa do Brasil está espalhando informação falsa, que a Antonov suspendeu as negociações de um lançamento de produção de aeronaves no Brasil", afirmou a companhia. "A Antonov não tem representante autorizado no Brasil e não autorizou nenhuma pessoa, incluindo escritórios de advocacia, de ter a autoridade para representar os interesses da companhia."
A empresa também pede que, diante da "invasão em grande escala da Rússia", a imprensa "cheque com cuidado a informação relacionada à companhia".
A notícia falsa também repercutiu na mídia dos países que participam diretamente no conflito. A agência estatal russa Tass citou a CNN Brasil e o suposto plano suspenso da Antonov em território brasileiro e um portal de aviação ucraniano repercutiu a nota da Antonov desmentindo a reportagem da imprensa brasileira.
O Brasil de Fato procurou a assessoria de imprensa da CNN Brasil e do governo do Estado de São Paulo, mas até a publicação desta reportagem não recebeu retorno.
A Folha de S. Paulo publicou na quinta-feira (27) que Lula e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), conversaram por telefone sobre a notícia falsa e que o secretário de Negócios Internacionais, Lucas Ferraz, pode ser demitido no cargo. De acordo com o jornal, "há forte suspeita de que os supostos funcionários da empresa não são da Antonov e que o governo [de SP] caiu em uma espécie de armadilha".
Professor de jornalismo questiona "a quem interessa" publicação de notícia falsa
Correspondente na União Soviética para o jornal Folha de S. Paulo na década de 1980 e professor de jornalismo na PUC-SP, José Arbex Júnior afirma que não é coincidência que a notícia falsa sobre a Antonov tenha sido publicada logo após Lula visitar a China e firmar o acordo "histórico" para que a moeda chinesa seja usada nas trocas comerciais entre os dois países. Para Arbex, a notícia faz parte de uma tentativa de diminuir a projeção internacional de Lula e desacreditar a tentativa brasileira de ter um papel na negociação da paz.
"[Lula] está evidentemente contrariando os interesses de Joe Biden, da Casa Branca, da Otan e daqueles que estão investindo na guerra, tanto do ponto de vista econômico, a indústria militar da guerra, que está faturando bilhões com a venda de mísseis de bombardeio, tanques e etc., e daqueles que estão interessados em cercar a Rússia e impedir a aliança entre China e Rússia", diz o professor de jornalismo
Arbex ainda cita uma pesquisa patrocinada pela Otan publicada em 2020 sobre "guerra cognitiva", que coloca o cérebro como o campo de batalho definitivo.
"O verdadeiro campo de batalha no século 21 não será o solo, o território, claro que haverá batalhas pelo território, isso é óbvio, vai ter míssil, tanque, vai ter tudo isso, mas o principal campo de batalha vai ser o cérebro humano e portanto, o controle do cérebro é a chave para as guerras no século 21. Ora, o que está acontecendo aqui é uma batalha pelo cérebro humano, uma batalha de narrativas, como se diz atualmente. Procura-se desenvolver uma narrativa que o governo Lula no afã de 'defender o comunismo, defender o [Vladimir] Putin', está prejudicando o povo brasileiro. Esse, a meu ver, é o verdadeiro pano de fundo dessa discussão", avalia.
* Em nota enviada ao Brasil de Fato após a publicação da reportagem, a Secom afirmou: "Cabe informar que o Governo Federal não tem conhecimento de tratativas da empresa estatal ucraniana Antonov para instalar unidades fabris no Brasil. O governo brasileiro não recebeu pedidos de reunião com representantes do grupo ucraniano para tratar de projetos dessa natureza."
** Colaborou Serguei Monin.
Edição: Patrícia de Matos