No dia 19 de abril comemora-se o dia do indígena, uma data que, pode-se dizer, é mais ligada à memória de violações sofridas pelos povos indígenas ao longo dos anos. Historicamente, essas violações de direitos também são observadas na esfera trabalhista, onde as condições de trabalho tendem a ser mais degradantes para essa população.
A Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) atua no combate ao trabalho escravo em todo o território nacional desde 1995, quando foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, formado por auditores-fiscais do trabalho de várias partes do país. Seu diferencial de atuação é a transversalidade de competências, uma vez que o trabalho análogo ao de escravo identificado na esfera administrativa-trabalhista também pode ser configurado como crime na esfera penal.
Desde 2004, quando o perfil das vítimas passou a ser registrado nas guias de seguro-desemprego de trabalhador resgatado, consta que 704 trabalhadores indígenas foram submetidos a condições análogas às de escravo, dos quais 7% eram mulheres indígenas, percentual que acompanha a proporção geral de mulheres resgatadas nos registros do MTE. Os dados vêm das declarações contidas nas guias de seguro-desemprego do trabalhador resgatado, benefício previsto no art. 2º-C da Lei nº 7.998/90.
O campo é autodeclaratório, cabendo à pessoa identificar-se como indígena a fim de constar no banco de dados do Ministério do Trabalho e Emprego.
Pode-se dizer que o número de indígenas resgatados é subdimensionado, tanto em razão da ausência de dados disponíveis entre 1995 e 2003, quanto por erros ou omissões nos lançamentos das guias de seguro-desemprego de trabalhador resgatado. Mais da metade das guias lançadas nos bancos de dados do MTE possuem o campo raça não informado.
Apenas em uma única fiscalização do Grupo Móvel, na ocasião formado pela Inspeção do Trabalho e pela Polícia Federal, no município de Brasilândia/MS, em 2007, um total de 1.011 indígenas foram resgatados da atividade de corte de cana-de-açúcar, o segundo maior resgate de trabalhadores desde 1995. No relatório de fiscalização, de mais de 4 mil páginas, foi relatado que a equipe tentou contato com a FUNAI para acompanhar o caso, mas não obteve sucesso.
Na segunda operação da história do Grupo Móvel, realizada em 1995 no município de Água Clara/MS, o auditor-fiscal do trabalho Mário Lorenzoni presenciou graves violações de direitos de trabalhadores indígenas e relatou emocionado a ocasião em que uma bebê de três meses foi salva:
“Ao chegar na fazenda objeto da fiscalização encontramos várias famílias indígenas trabalhando na catação de sementes de braquiária, uma atividade manual na qual se trabalhava de cócoras o dia todo. Uma trabalhadora indígena de 15 anos tinha uma filha de 3 meses, chamada Bianca, o pai tinha 17 anos.
"A mãe não tinha leite, a fazenda era localizada em área isolada e os pais tinham que andar 30km para comprar leite, então eles cozinhavam feijão e coavam o caldo em uma meia para dar à bebê. A criança estava desidratada e vomitando muito, levamos a bebê e mais outros seis trabalhadores doentes ao hospital da cidade mais próxima."
"A bebê passou por transfusão de sangue e os médicos falaram que, nas condições nas quais ela estava, não teria nem mais 24 horas de vida. Nunca me esquecerei disso, o Grupo Móvel salvou a vida da Bianca”.
A exploração do trabalho indígena em condições análogas à de escravo evidencia a existência de faixa etária mais jovem, entre 18 a 24 anos, assim como ocorre com os resgatados que se declararam pretos, pardos, indígenas ou amarelos.
Faixas etárias de indígenas resgatados entre 2004 e 2022:
10 a 14 anos: 8 (trabalho escravo infantil)
15 a 17 anos: 19 (trabalho escravo infantil)
18 a 24 anos: 254
25 a 29 anos: 151
30 a 39 anos: 144
40 a 49 anos: 85
50 a 65 anos: 39
Idade não sabida: 1
Nos últimos anos, o número de indígenas resgatados tem permanecido estável: 43 em 2022, 46 em 2021 e 42 em 2020. No ano passado, auditores-fiscais do trabalho resgataram trabalhadores indígenas em apenas seis unidades da Federação: Minas Gerais (8), Mato Grosso do Sul (19), Piauí (1), Rio Grande do Sul (15), Santa Catarina (1) e Tocantins (1).
Do histórico de indígenas vítimas de trabalho escravo contemporâneo, tem-se que 43% eram analfabetos no momento das ações fiscais que resultaram em resgate, sendo que 89% delas ocorreram em atividades rurais.
A vulnerabilidade indígena é acentuada por fatores como o racismo, a discriminação e a situação de miséria e pobreza na qual estão inseridos. A recente crise humanitária dos Yanomami em Roraima é reflexo de um histórico antigo de violações de direitos aos povos originários.
O relatório de 2021 publicado pelo Instituto Socioambiental e produzido pela Associação Hutukara descreve a evolução do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (TIY) e seus efeitos avassaladores. As situações de exploração sexual e trabalho análogo ao de escravo na TIY são extremamente difíceis de se investigar, por estarem em um contexto de total informalidade e criminalidade, onde os principais responsáveis se utilizam de “laranjas” e o garimpo ilegal apenas abre o leque para uma variada gama de crimes, dentre eles o trabalho análogo à escravidão.
Em 2016, no munícipio de Iracema/RR, dois indígenas Yanomami foram resgatados de condições análogas à escravidão. Após saírem com suas famílias da região do Ajarani em razão de conflitos entre tribos, buscaram ajuda em uma fazenda próxima da divisa com a terra indígena e acabaram submetidos a condição análoga à de escravo.
A moradia disponibilizada aos trabalhadores indígenas e suas famílias, com 8 crianças, não possuía energia elétrica, nem instalações sanitárias, nem local para preparo de alimentos, as refeições preparadas estavam armazenadas em bacias e baldes. A moradia servia também como depósito para fertilizantes e utensílios para montaria. O resgate pelos auditores-fiscais do trabalho, que inclui o pagamento de direitos trabalhistas foi acompanhado e auxiliado pela então Coordenação Técnica Local da Frente de Proteção Yanomami e Ye’kuana (FUNAI – FPEYY).
A situação relatada se amolda aos resultados encontrados na pesquisa da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG (CTETP) que constatou que a grande maioria (94%) dos autos de infração relacionados ao trabalho análogo à escravidão diz respeito à existência de submissão a condições degradantes de trabalho que, por sua vez, estão calcadas em um “tripé da degradância”: ausência de instalações sanitárias, falta de água potável e alojamento precário. Além disso, a pesquisa observou ainda que a maioria das vítimas era oriunda de municípios e regiões com baixo índice de desenvolvimento humano.
Ambos os indígenas trabalhavam em troca de comida para as suas famílias, embora tivessem recebido a promessa de ganhar mil e quinhentos reais pelo trabalho realizado. Um dos trabalhadores deixou a fazenda com sua família no dia seguinte à fiscalização e tomou destino incerto.
O outro recebeu do empregador os valores de verbas salariais e rescisórias devidas, bem como o seguro-desemprego de trabalhador resgatado, no valor de 3 parcelas de um salário-mínimo, embora não soubesse contar dinheiro e não tivesse noção do valor do montante recebido.
A configuração desse tipo de trabalho relatado também poderia ser enquadrada como crime, nos termos do artigo 149 do Código Penal. Assim, foi oferecida pelo Ministério Público Federal (MPF), denúncia crime, sendo aberto o processo 0003772-83.2018.4.01.4200 na 4ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária de Roraima.
Em decisão de primeira instância, o ex-empregador foi absolvido do crime, por atipicidade penal da conduta, ou seja, o juiz da ação entendeu que o fato não constituía infração penal. Na visão do magistrado, as infrações trabalhistas encontradas não eram suficientes para se considerar o trabalho como degradante, assim como o fato de que as vítimas não estavam sob vigilância ostensiva ou com a liberdade de locomoção cerceada.
Outra pesquisa realizada pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (CTETP) da UFMG acerca das ações criminais relativas ao trabalho escravo contemporâneo identificou o que se denominou de pirâmide da impunidade, constatando o baixo índice de punibilidade desse tipo penal, qual seja, 4,2%.
É preciso destacar que o Supremo Tribunal Federal (STF) já pacificou o entendimento de que o conceito de escravidão contemporânea no país não se restringe à liberdade de locomoção, entendendo que o bem jurídico a ser tutelado não é a liberdade, mas sim a dignidade da pessoa humana. Isso é essencial para que se compreenda que os grilhões que hoje aprisionam os indígenas, assim como todos os trabalhadores resgatados de condições de escravidão moderna no país, são invisíveis, porém extremamente fortes e limitantes, haja vista que se referem à necessidade básica de sobrevivência. Essa sim capaz de manter vigilância ostensiva sobre os indígenas, ao passo que a liberdade de locomoção se apequena frente à fome e a morte que os aguarda.
*Lívia Miraglia é professora da UFMG e Maurício Krepsky, auditor-fiscal do trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato
Edição: Rodrigo Durão Coelho