O Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura (MNPCT) voltou ao Rio Grande do Norte para periciar a Penitenciária Estadual de Alcaçuz após a série de ataques a prédios públicos e comércios do estado ocorridos por cerca de 15 dias em março. As ações foram comandadas pela facção Sindicato do Crime, como retaliação às péssimas condições dentro das penitenciárias do Rio Grande do Norte.
Após a visita a Alcaçuz, Ana Valeska e Bárbara Coloniese, peritas do MNPCT, falaram com exclusividade ao Brasil de Fato sobre o cenário que encontraram na penitenciária. Elas confirmam que não houve melhorias, em relação à última perícia no presídio, em novembro de 2022. O que viram, foi a piora do cenário, com pessoas escarrando sangue, casos de tuberculose e corpos marcados por tortura.
“Enfatizo que o que vimos no Rio Grande do Norte foi muito alarmante, algo além do que nos acostumamos a ver nesses oito anos com o Mecanismo Nacional”, afirmou Bárbara Coloniese. A perita diz que o cenário prisional no estado é o pior que viu durante este período.
A perícia feita por ambas, em novembro de 2022, deu origem a um relatório apresentado no dia 15 de março deste ano, com fartura de denúncias de maus tratos e sobre a rotina de tortura imposta aos presos. À época, Coloniese e Valeska alertaram o poder público sobre o cenário do sistema prisional potiguar.
Cinco meses após as perícias nos presídios, o Sindicato do Crime deu início aos ataques que tomaram conta das ruas do Rio Grande do Norte. “Desde quando começaram (os ataques), alguns direitos foram suspensos (dentro dos presídios), como a visita dos advogados dos presos e as visitas sociais. Ouvimos que posteriormente aos fatos que ocorreram extramuros, houve repressão dentro da unidade, em relação a determinados pavilhões da unidade. Em resumo, foi isso que aconteceu”, explicou Ana Valeska, que encontrou presos feridos com balas de borracha.
“Eles começaram a fazer o sistema prisional potiguar funcionar a partir da tortura física e psicológica. Eu vi um rapaz agora que morreu de tuberculose, mas estava num estado de desnutrição que eu nunca tinha visto”, lamentou Coloniese.
As peritas acreditam que a direção da Penitenciária Estadual de Alcaçuz mantém a circulação e disseminação da tuberculose dentro do presídio de forma proposital. Presos contaminados convivem junto com outros saudáveis nas celas.
“Percebemos, novamente, uma infinidade de pessoas sem tratamento, atiradas para morrer à míngua. Porque é sobre isso: se você não dá tratamento para uma doença tão séria como essa, não dá um lugar salubre, não dá comida, não é mais um vetor de tortura. É um vetor de morte que se instala”, finaliza Coloniese.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Por que vocês tiveram que retornar ao Rio Grande do Norte?
Bárbara Coloniese: Nós voltamos para o Rio Grande do Norte porque observamos que, em relação às inspeções de 2022, houve pouca mudança, comparado com o cenário de 2017, no pós-massacre [de Alcaçuz], quando o Mecanismo esteve lá. Isso gerou uma grande preocupação, especialmente quando observamos a inoperância do Tribunal de Justiça, do Ministério Público e outras autoridades que não têm dado uma resposta adequada para prevenir e combater práticas de maus tratos em ambiente de privação de liberdade.
Percebemos que precisávamos nacionalizar a situação do Rio Grande do Norte e a ideia foi, não só voltar, já que o cenário não mudou muito, mas também levar uma delegação com outras autoridades e instituições para criar um grande grupo de trabalho para monitorar sistematicamente o estado e ativar várias frentes de articulação para mudar o cenário.
Enfatizo que o que vimos no Rio Grande do Norte foi muito alarmante, algo além do que nos acostumamos a ver nesses oito anos com o Mecanismo Nacional. Embora já tenhamos tido experiências anteriores, o nível de tortura física e psicológica é impressionante.
O modus operandi do sistema prisional é a partir da prática da tortura física e psicológica em todas as celas. Em todas as celas que visitamos haviam pessoas machucadas em vários níveis diferentes, pessoas escarrando sangue e sangrando devido às agressões sofridas. Foi algo que, arrisco dizer, jamais visto naquele nível.
O que encontraram nesse retorno?
Ana Valeska: Desde quando começaram os ataques, alguns direitos foram suspensos, como a visita dos advogados dos presos e estavam suspensas as visitas sociais. Ouvimos que posteriormente aos fatos que ocorreram extramuros, houve repressão dentro da unidade, em relação a determinados pavilhões. Em resumo, foi isso que aconteceu. Uma preocupação nossa é a superlotação e os benefícios, como progressão de regime, que estão vencidos. Vimos celas que cabem 12 pessoas, mas que tinham, 37, 51 e 61 pessoas, na triagem.
Vocês encontraram pessoas feridas, depois da crise no sistema penitenciário do Rio Grande do Norte?
Ana Valeska: Nessa volta, verificamos pessoas feridas com "granadas outdoor", que é uma munição para uso em espaços abertos, para controle de manifestações por exemplo, que não pode ser utilizada em espaços fechados.
Bárbara Coloniese: Eles começaram a fazer o sistema prisional potiguar funcionar a partir da tortura física e psciológica. Eu vi um rapaz agora que morreu de tuberculose, mas estava num estado de desnutrição que eu nunca tinha visto. De costas, ele era reto.
O estado do Rio Grande do Norte tem apresentado muitas mortes suspeitas (dentro dos presídios). Não tem alimentação e não deixam a família levar alimentação, sem qualquer justificativa. Eles têm acesso à água apenas duas ou três vezes, mas não há recipientes.
Eles não recebem papel higiênico e não podem usar se receberem, porque alegam que podem tapar buracos de fuga. Então, não tem banho de sol, não tem alimentação, não tem acesso à saúde, insalubridade total, não tem atividade lá dentro, não tem ventilador e não tem lâmpada, gente! Eu nunca vi tanta miséria e um espaço tão estéril, é muito cruel.
Para você configurar o crime de tortura tem três elementos: intencionalidade, finalidade e causar sofrimento físico ou mental. Você tem tudo isso de forma abundante no Rio Grande do Norte e não é em um setor, é institucionalizado na penitenciária inteira. As pessoas que fizeram a inspeção com a gente se emocionaram muito.
Quais seriam soluções possíveis para essa tragédia do sistema penitenciário?
Ana Valeska: Precisamos pensar numa política que priorize a população prisional. Não é o que vemos com o uso dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Fupen). Diante desse cenário, nesses últimos anos o que se faz é construir cadeia e comprar armas ou equipamento de segurança para a polícia e não priorizar políticas públicas para as pessoas presas.
Também temos que trabalhar a humanização desses policiais penais. A gente tem que desconstruir uma cultura de recrudescimento da violência fomentada a partir da criação da FTIP [Força Tarefa de Intervenção Penitenciária.
Hoje a polícia penal é extremamente treinada para a guerra. E também estamos acompanhando atentamente a regulamentação da polícia penal. Foi aprovada uma PEC em 2019 e está para ser regulamentada, vai entrar em pauta provavelmente esse ano. A polícia penal tem que ter o papel de custódia e não de polícia repressiva e ostensiva.
O Mecanismo trouxe uma suspeita de haver uma manutenção da tuberculose dentro do sistema penitenciário, colocando contaminados com não contaminados. A tuberculose é usada como forma de tortura ali dentro?
Bárbara Coloniese: Sim. Começo com o caso do rapaz que eu fui ver, que me deixou muito impressionada. A pessoa está com tuberculose e não tem assistência à saúde. Percebemos, novamente, uma infinidade de pessoas sem tratamento, atiradas para morrer à míngua.
Porque é sobre isso: se você não dá tratamento para uma doença tão séria como essa, não dá um lugar salubre, não dá comida, não é mais um vetor de tortura. É um vetor de morte que se instala. A questão de saúde lá no Rio Grande do Norte é uma das mais graves que já enfrentamos. De novembro para cá, não houve preocupação nenhuma de melhoria em relação ao atendimento de saúde.
Fomos lá num domingo, tinham poucos policiais penais e mais nada. Um menino veio falar comigo, ele tinha levado spray de pimenta no rosto. Quando ele levantou para falar comigo, sangue espirrava de dentro do nariz dele de uma forma absurda. Eu pensei “vou voltar para casa cheia de sangue”.
Eu chamei o diretor para levar ele ao atendimento emergencial, e o diretor disse: “Eu tenho um que está pior e hoje não tenho atendimento nenhum aqui, então ele vai ser atendido amanhã”. Ele não conseguia ficar de pé e era um chafariz de sangue. Mas o diretor disse que não tinha condições de levar ele porque outro caso era mais grave. É alarmante. Não há atendimento médico, as pessoas só saem de lá quando estão morrendo literalmente. Essas pessoas estão sendo usadas como vetor de tortura.
Ana Valeska: Perguntei às pessoas privadas de liberdade se nos últimos dois meses alguém havia morrido dentro do sistema prisional. Sempre confirmavam. “Morreu há um mês, um de tuberculose”. “Morreu um de meningite”. Também entrevistamos pessoas com HIV que não estão renovando exames e estão sem tomar medicação. E um senhor com quem eu conversei tinha uma hérnia no órgão genital, do tamanho de uma bola. Debaixo do short dele, ele a segurava enquanto sentava e levantava.
Conversei também com um senhor que estava deitado no chão e só se levanta com a ajuda de outro custodiado, que o auxilia, dá banho nele. Acaba sendo uma dupla pena para aquele outro custodiado que é obrigado, pela necessidade, a cuidar do colega que se encontra em uma situação muito debilitada. Tem pessoas que não têm condições de estar ali.
Tem um médico só, que diz que atende dez pessoas por dia. Quando vai, fica no máximo duas horas. Então, além da superlotação, um dos pontos mais graves no sistema prisional do Rio Grande do Norte é a Saúde. A desassistência, a falta de medicação, de equipe, está matando as pessoas. Essa é a realidade.
Outra questão importante: seis anos sem visita íntima. É uma forma de manter os vínculos familiares e está respaldada pela Constituição Federal, em respeito ao princípio da dignidade humana. É importante que a pessoa tenha contato com sua família.
Bárbara Coloniese: Nesta nossa ida, as autoridades se comprometeram a rever as situações apontadas no relatório e os conteúdos divulgados. Sobretudo a governadora disse duas coisas: se compromete em olhar com mais detalhe essas questões do sistema prisional e a implementar o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura.
Vocês fizeram inspeções nos presídios em 2017 depois do Massacre de Alcaçuz, voltaram em novembro do ano passado e viram uma situação similar. Os ataques de março alertavam sobre as condições dentro das prisões. Como reação, houve o envio da Força Nacional, autoridades governamentais falando sobre recrudescimento de vigilância e repressão, construção de mais um presídio. Como vocês avaliam as respostas das autoridades a esse cenário?
Bárbara Coloniese: Tem esse apontamento para a construção de mais presídios. Veja, quando você constrói 100 vagas, já tem um déficit de 500. Não é a vaga que vai resolver essa questão. Ficar privado de liberdade num espaço como aquele é absurdo.
Temos que reduzir o número de presos provisórios. O Brasil tem um número altíssimo de presos provisórios. Se a média nacional é de 30 a 35% dos presos, têm regiões do Brasil que chegam a 50% a 60%. No massacre do Amazonas, a maioria das pessoas que morreram eram presas provisórias.
A gente precisa de medidas alternativas à prisão. A gente precisa de política de desencarceramento, sim. A prisão deve ser exceção e não regra. De forma geral, as autoridades têm adotado uma política de reforço do encarceramento, de ampliação de vagas como solução. E não é.
Ana Valeska: É importante que o governo do Estado se comprometeu a olhar para as nossas recomendações. Foi importante também a conversa com o Poder Judiciário. Inclusive a ministra Rosa Weber poderá fazer uma visita ao RN em breve.
Há uma preocupação também do Poder Judiciário em relação ao sistema prisional do Rio Grande do Norte, principalmente em relação à superlotação e aos pedidos de benefícios vencidos das pessoas privadas de liberdade, como livramento condicional ou liberdade provisória.
Nos governos do PT, quando se trata de sistema prisional e segurança pública, vocês veem diferença em relação a governos de outros espectros políticos?
Ana Valeska: Independente da sigla partidária, a gente vê que falta vontade política de olhar de forma sensível para o sistema prisional. E também temos que trabalhar a prevenção. Acho que todos nós sonhamos com um dia que não existam mais cadeias no Brasil. É uma luta, não é fácil. Mas é uma luta para a qual estamos aqui para contribuir.
Edição: Thalita Pires