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Assim como a mãe, Fernanda Torres retratou 'identidade brasileira em transe', define Walter Salles

Atriz ganhou prêmio inédito ao Brasil ao conquista Globo de Ouro por protagonizar Ainda Estou Aqui

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Walter Salles já havia dirigido a mãe de Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, em Central do Brasil, de 1998 - Divulgação/Ainda Estou Aqui

26 anos depois de lançar Central do Brasil, Walter Salles apresenta ao cinema nacional um novo filme capaz de atrair os olhos do mundo. Em 1999 a história interpretada por Fernanda Montenegro levou o Globo de Ouro de melhor filme em língua estrangeira, atingindo um novo nível às produções brasileiras. Agora, Ainda Estou Aqui  foi reconhecido pela academia, mas trazendo ao país, pela primeira vez, o prêmio categoria melhor atriz conferido à protagonista, Fernanda Torres.

Ao Brasil de Fato, o diretor vê uma semelhança nos dois longas e nas duas protagonistas dos filmes, que vão além do fato de serem mãe e filha. 

“Esses filmes talvez tenham um ponto em comum, por serem ambos sobre uma identidade brasileira em transe. E sobre duas mulheres que, por razões diferentes, tiveram que construir formas singulares de resistência”.

“Elas [Fernanda Torres e Montenegro] imantaram esses dois filmes, elevaram o trabalho coletivo que fizemos”. 

Ainda Estou Aqui conta com mãe e filha no elenco, que atuam como Eunice Paiva, antropóloga e esposa do deputado Marcelo Rubens Paiva, que foi sequestrado e morto pela ditadura militar. 

Na última semana do ano, Ainda Estou Aqui ultrapassou mais de 3 milhões de ingressos vendidos pelo Brasil. O longa foi escolhido como o filme nacional a ser representado no Oscar.

Segundo Walter Salles, um filme que escancara os crimes cometidos pelo regime ajuda a reconstruir a memória coletiva “implodida” pela extrema direita mundo afora. 

“A literatura formada por livros como o do Marcelo, a música, o jornalismo e o cinema independentes podem oferecer justamente a possibilidade de um contracampo. Ou seja, a criação de uma memória”, comenta o diretor se referindo ao autor do livro que dá origem ao filme, Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado sequestrado. 

Confira a entrevista na íntegra

Nos últimos 10 anos o Brasil passou por uma Comissão da Verdade inconclusa, um golpe contra uma presidenta que foi torturada por militares, a eleição de alguém que disse que “o erro da ditadura foi torturar e não matar” e a volta de um presidente que pediu para que o 31 de março passasse em branco. Ainda Estou Aqui combate esse cenário de esquecimento?

Concordo com todos os sintomas acima.  A eles podemos adicionar o fato de que o crescimento recente da extrema direita mundo afora foi baseado na mesma receita: corrosão da educação pública, criação de “verdades alternativas” nas mídias sociais, implosão da memória coletiva. Nesse contexto, a literatura formada por livros como o do Marcelo, a música, o jornalismo e o cinema independentes podem oferecer justamente a possibilidade de um contracampo. Ou seja, a criação de uma memória. É importante compreender que aquilo que a gente escolhe não lembrar acaba voltando. Subscrevo integralmente a posição de Eunice Paiva: os crimes cometidos durante a ditadura devem ser julgados e punidos. 

O filme é ambientado com músicas da época, trazendo o Tropicalismo no início, passando pela Jovem Guarda e depois, novamente, Caetano Veloso. Há uma mensagem sendo passada por meio dessa trilha sonoras? Como foi esse processo de escolha?

Um amigo diz que nos anos 70, as pessoas se definiam pelas músicas que ouviam. Caetano, Gal, Gil, Os Mutantes, todo o pessoal da Tropicália vinham na contramão da ditadura militar, tanto em termos políticos quanto comportamentais. Tom Zé, que abre o filme, também.  E é interessante notar como músicos populares como Erasmo Carlos também desvendavam, através de suas músicas, aquilo que estava acontecendo nas entranhas do Brasil.  A frase “É preciso dar um jeito, meu amigo”, de Erasmo, não nasce por acaso.

O filme foi escolhido para representar o Brasil no Oscar. Como o senhor vê a possibilidade da academia de cinema de um país que patrocinou a ditadura premiar uma produção que justamente denuncia esse período?

Filmes como os ótimos A História Oficial, de Luiz Puenzo, ou Apocalyspse Now de Coppola, respectivamente sobre os anos de chumbo na Argentina e a Guerra do Vietnã, foram premiados pela Academia, o que revela que essa relação é mais complexa do que parece.  Existem fissuras que se tornam mais ou menos evidentes dependendo dos anos. 

Isso dito, as premiações dizem às vezes mais sobre o corpo de votantes do que sobre os filmes.  Em relação às chances de AEA, elas são poucas.  Não pelo tema do filme, mas pelo fato da competição dos filmes não falados em inglês ser a mais acirrada dos últimos anos. 

Que paralelos podem ser feitos entre os dois Brasis que você cinematografou, do Central do Brasil e este Ainda Estou Aqui? E sobre as duas Fernandas que protagonizaram os dois filmes?

Esses filmes talvez tenham um ponto em comum, por serem ambos sobre uma identidade brasileira em transe.  E sobre duas mulheres que, por razões diferentes, tiveram que construir formas singulares de resistência. Poder colaborar com Fernanda Montenegro em Central do Brasil e com Fernanda Torres e dona Fernanda em AEA foi um presente. Elas imantaram esses dois filmes, elevaram o trabalho coletivo que fizemos.

O Brasil de Fato tem há três anos um programa jornalístico chamado Central do Brasil, comprovando a atualidade que o longa ainda exerce, quase 30 anos depois do lançamento. Qual a sua relação com o filme depois deste período?

Tem um momento em que um filme deixa de ser do grupo que o criou, e passa a pertencer à todos que o completam nas salas de cinema, coletivamente. Um filme que gera programas jornalísticos ou qualquer forma de pensamento cumpriu sua missão. Nesse sentido, o retorno das pessoas de diferentes gerações às salas para viverem uma experiência coletiva no cinema vendo AEA foi, na verdade, o maior prêmio que nós todos que fizemos o filme poderíamos receber.

Edição: Nathallia Fonseca