O retorno de Lula à Presidência alterou a correlação de forças políticas na América do Sul e abriu novas possibilidade de aproximação com parceiros comerciais estratégicos dos quais o país havia se afastado nos últimos anos, como a Venezuela. Extremamente dependente da renda petroleira, o país andino é tradicionalmente um comprador de bens de consumo brasileiros, o que nos últimos 20 anos rendeu ao Brasil uma balança comercial superavitária.
No entanto, a partir de 2017, os negócios entre Brasil e Venezuela caíram a níveis comparados aos do começo do século, muito por conta da crise econômica venezuelana e, em seguida, do rompimento diplomático levado a cabo pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Os laços, agora, podem ser retomados e aprofundados, principalmente se a Venezuela retornar ao Mercosul.
Em entrevista à agência Sputnik, o diretor do Mercosul no Itamaraty, Francisco Cannabrava, chegou a afirmar que o Brasil pretende retomar as conversas com Caracas e anular a suspensão do país do bloco comercial.
Para o professor de Relações Internacionais da UFABC Igor Fuser, a reintegração do país vizinho a essas esferas de comércio seria economicamente positiva não só para o Brasil, mas também para os outros países-membros.
"A Venezuela é um país que, por suas características, importa muitos produtos, especialmente alimentos, que são produzidos de uma forma muito intensa pelos países do Mercosul, e o Brasil é também um produtor de certo peso de produtos manufaturados. Então o retorno da Venezuela ao Mercosul facilita a conquista desses mercados por empresas do Brasil, da Argentina, também do Uruguai e do Paraguai", explica.
Ao Brasil de Fato, o professor ainda argumenta que, para além dos motivos econômicos, a presença do país no bloco é estratégica para manter uma unidade sul-americana em torno de pautas comuns em negociações com outras potências.
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"Não existe o menor motivo para manter a Venezuela excluída de nenhum foro ou espaço de articulação regional na América do Sul, ao menos que a Venezuela não queira, o que não é o caso. O país quer se reintegrar", diz.
A Venezuela foi suspensa do Mercosul em 2017. À época, a justificativa utilizada pelos demais países-membros foi a de que Caracas não teria cumprido algumas exigências técnicas do bloco, como a interiorização de regulações tarifárias e outras normas.
Mais tarde, naquele mesmo ano, uma resolução chegou a alegar que haveria ocorrido uma "ruptura da ordem democrática" na Venezuela e que, portanto, o país estaria violando um dos protocolos que obriga que os membros tenham governos comprometidos com a democracia, o chamado Protocolo de Ushuaia.
Na prática, a decisão estava ligada a questões políticas e ideológicas. Naquele momento, Brasil, Argentina e Paraguai eram governados por forças de direita que já começavam a articular alianças para pressionar o governo do presidente venezuelano Nicolás Maduro.
O professor Roberto Goulart Menezes, vice-diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), explica ao Brasil de Fato que a predominância de governos de direita em três dos quatro países-membros facilitou a decisão de afastar a Venezuela. O Uruguai, governado então pelo ex-presidente de esquerda Tabaré Vásquez, tentou se opor à decisão e chegou a ser pressionado pelo governo brasileiro de Michel Temer.
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"A decisão foi política. Naquele momento, o chanceler do Brasil, que era o José Serra, conseguiu o apoio do Paraguai, da Argentina e tentou persuadir o governo da Frente Ampla [de esquerda] do Uruguai. Inclusive o Serra viajou ao Uruguai, acompanhado do [ex-presidente] Fernando Henrique Cardoso para tentar chantagear o Uruguai para que o país não passasse a presidência pró-tempore do bloco à Venezuela", afirma.
Agora, com um novo cenário político na região, os esforços para reintegrar a Venezuela ao bloco não dependerão somente do governo brasileiro, já que o reingresso precisa do sinal verde dos demais membros: Argentina, Uruguai e Paraguai. Segundo Menezes, o governo do presidente argentino Alberto Fernández não deve impor objeções, mas Paraguai e Uruguai, ambos governados pela direita, podem colocar obstáculos.
"Para a Venezuela retornar, ela teria que cumprir os protocolos ou ter agora um novo consenso dos outros quatro membros do Mercosul para que o país possa receber uma extensão de prazo para cumprir esses protocolos, dado que a saída dela foi abrupta. O caso é que ela vinha cumprindo rigorosamente com os protocolos e que isso foi um álibi político que não faz sentido. Eu acho que isso está no caminho, mas certamente os governos do Uruguai e do Paraguai devem colocar algum tipo de reticência justamente pela cláusula democrática", afirma.
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Do lado venezuelano, há interesse em se reintegrar não somente aos espaços de diálogos multilaterais da região, como também expandir suas relações comerciais com parceiros sul-americanos, retomando os laços com potenciais fornecedores de bens de consumo. O isolamento recente ao qual o país foi empurrado obrigou que Caracas buscasse em potências emergentes, como China, Irã, Rússia e Turquia, novas rotas comerciais não só para vender seu principal produto, o petróleo, mas também para abastecer seu mercado interno com itens básicos.
No entanto, um traço que segue presente na diplomacia do atual presidente venezuelano, Nicolás Maduro, herdado de seu antecessor, Hugo Chávez, são as aproximações políticas com países estratégicos para tentar escapar da hegemonia estadunidense. Ao Brasil de Fato, Cairo Junqueira, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Sergipe e coordenador do Observatório de Regionalismo, comenta o balanço que deve ser feito pela Venezuela entre os aspectos comerciais e políticos nas suas relações.
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“A grande problemática é tentar estabelecer um mínimo denominador comum com uma parte que é importante que é a parte comercial, e disso a Venezuela obviamente não pode abrir mão e nem deve. Mas a Venezuela também enxerga, e aqui eu falo principalmente do Maduro como uma continuidade de certos pontos do Chávez, ela enxerga os processos de integração regional também do ponto de vista político”, diz.
O professor também destaca que o governo brasileiro também terá que rever algumas posições para não repetir as mesmas abordagens de 20 anos atrás, quando Lula e Chávez viveram o período mais próspero de cooperação entre Brasil e Venezuela.
“A relação de Lula com Maduro agora será muito diferente da relação que ele teve com Chávez na década de 2000. Por exemplo, o Maduro não compareceu à reunião da CELAC e à posse de Lula, esses processos podem parecer pouca coisa, mas eu fico pensando em quais níveis essas relações se mantêm. O Lula adotou uma perspectiva multilateral e vai continuar com ela, mas a grande chave para esse governo é verificar que o contexto de agora não é o mesmo contexto dos primeiros governos”, afirmou.
Edição: Arturo Hartmann