Às margens dos trilhos abandonados da Transnordestina, pelo menos 90 famílias estão correndo o risco de despejo na Comunidade da Linha, em Ibura de Baixo, zona sul do Recife (PE).
"Quando começamos a construir, porque eles não vieram? Depois que a pessoa está bem habitada, gasta tudo, toda a sua renda, sua vida, pra do nada assim tirar isso da gente. Não é fácil, e a gente vai lutar. A gente não vai deixar ver a nossa casa sendo destruída", desabafa Luciana Maria da Silva, uma das primeiras moradoras da localidade.
"A minha renda é fazendo biscate. Tomo conta de uma menina, aí ganho trezentos e cinquenta reais. Juntando com o Auxílio Brasil, é o meu trocado", completa.
A linha pertence à União, mas quem faz a gestão é a Ferrovia Transnordestina LTDA (FTL), que ganhou a concessão da malha ferroviária do Nordeste em 1997.
Treze anos mais tarde, já com centenas de casas e comércios erguidos, a FTL ajuizou 6 processos de reintegração de posse, que podem afetar 95 famílias.
Um deles foi acatado pela 5a Vara Federal de Recife, em 2021, e envolve 19 residências. Mas o despejo foi suspenso com base na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de suspender as remoções forçadas durante a pandemia. Com o fim do prazo estipulado pelo ministro Barroso, o risco das famílias perderem o teto volta a ser iminente.
"Aqui eu vi minhas neta nascendo, já tenho neta com vinte e três anos. Aqui eu trabalho. Aqui a gente trabalha. Eu e meus filhos. Nosso trabalho é tudo aqui dentro mesmo. O pior de tudo é que eles falam que não tem direito a nada, vão derrubar, não vão indenizar e desde esse tempo que começou a nossa luta", explica Terezinha Francisca de Jesus, que vive no "beiral da linha" há 30 anos, desde o início da ocupação das áreas paralelas à linha férrea da malha ferroviária do Nordeste.
De acordo com um relatório elaborado pelo Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), pelo menos 70% das casas da Comunidade da Linha são chefiadas por mulheres. E dois terços dos moradores trabalham dentro da própria residência.
"Aqui é o meu sustento, de onde eu tiro minhas coisinhas pra sustentar a minha família. A gente tem dois filhos, depende muito daqui, a gente gosta muito daqui desse lugar", opina Roselane Severina da Silva Andrade.
A comerciante abriu um salão de beleza dentro da própria casa, e o marido vende espetinhos nas proximidades da residência. Os dois podem perder a fonte de renda. "Eles tão vindo, tão dizendo vão tirar a gente e a gente fica assim sem saber pra onde ir", lamenta a trabalhadora.
Mães da Linha
As casas foram erguidas nas proximidades do Aeroporto dos Guararapes. "No tempo que a Infraero construiu o aeroporto, que eles derrubaram, que ficou umas casas, eu ia pra lá pegar tijolos com meus filhos. Foi assim que hoje eu tenho minha casa aqui", relembra Terezinha.
A aposentada é uma das principais lideranças na luta contra a desapropriação dos terrenos. Atualmente, já são 600 famílias que vivem na comunidade.
"Muitas mães trabalham em casas de família, muitas pessoas, muitos pais de família são pedreiros, tem mulheres que trabalham como servente de pedreiro, aqui tem várias mulheres que fazem esse trabalho e muitas mães. Elas vendem alguma coisa, elas botam um lanche no carro, no carrinho, empurram até a porta de um colégio, até a porta de alguma empresa que deixam elas ficarem e assim a sobrevivência das pessoas que moram aqui", conta.
Na casa de Esther Xavier da Silva vivem 5 pessoas. E a principal receita da família é o Auxílio Brasil, já que ninguém tem emprego formal.
"Quando aparece trabalho, aí eu trabalho com serviços gerais, com o que ia aparecer, né? Porque meu currículo é variado, né? Babá, doméstica, diarista, tudo", explica.
O mesmo drama é vivido por Maria de Lourdes, que chegou na comunidade em 2011. "Não tem outro lugar pra ir. Se eu sair daqui, não vou conseguir pagar aluguel, eu ganho muito pouco", afirma a mãe solo, que sobrevive fazendo faxinas.
"O que eu ganho é para sustentar a minha família. E está difícil. Muito difícil mesmo. Hoje eu já não sei o quanto eu tomei remédio pra conseguir trabalhar. Eu tenho um problema muito sério na coluna", completa.
Trilhos abandonados
A área ameaçada por despejo abriga duas Comunidades de Interesse Social (CIS ), que antecede as Zonas Especiais de Interesse Social, áreas demarcadas para a construção de moradias populares.
Dos 4.238 quilômetros da antiga Malha nordeste, só um trecho de cerca de mil quilômetros está ativo, entre os estados do Ceará e Maranhão. O restante está abandonado ou subutilizado, como é o caso do trecho que corta a Comunidade da Linha.
O desejo dos moradores é que o ramal subutilizado seja extinto ou, pelo menos, que menos famílias sejam desalojadas. A Justiça decidiu que todas as casas que estão a menos de 21 metros dos trilhos sejam removidas. Os moradores querem uma área menor, de seis metros e meio de distância dos trilhos, largura da faixa de segurança.
"O DNIT já se comprometeu com os 6,5 metros. Mas por enquanto a Transnordestina não apresenta um projeto concreto para a área, porque até agora eles só querem o ramal por conta da obrigação contratual de fazer a gestão, mas não se tem nenhuma proposta do que fazer aqui. Aqui é um ramal que não passa trem, é um ramal de manutenção que vai pro Edgar Werneck, rarissimamente passa. Enfim, não é uma linha utilizada", pontua Natália Almeida, advogada popular do Centro Popular de Direitos Humanos.
Transnordestina
A concessionária Transnordestina pertence à Companhia Siderúrgica Nacional, cujo sócio é o milionário Benjamin Steinbruck. A CSN também é controladora da Transnordestina S.A (TLSA), responsável por construir e operar um dos trechos da Ferrovia Transnordestina, o que vai do sul do Piaui ao porto de Pecém, no Ceará.
A obra foi iniciada em 2006 e nunca concluída. O trecho nordestino, que liga Salgueiro (PE) ao Porto de Suape, deve ficar sob responsabilidade da mineradora Bemisa, que pretende construir um terminal de minérios no manguezal da Ilha de Cocaia, em Cabo de Santo Agostinho (PE), para viabilizar o projeto.
Segundo o CPDH, dos 194 processos de reintegração de posse de autoria da companhia de Steinbruck em Pernambuco, 6 estão na Comunidade da Linha. São mais de cinco mil famílias ameaçadas de despejo em todo o estado.
"Imagina cinco mil famílias que estão no processo, fora as que moram e que ainda não estão mapeadas. A gente vive um déficit habitacional enorme em Pernambuco, né? Eh um dos aluguéis mais caros aqui na cidade do Recife e a gente se preocupa muito porque esses processos da Transnordestina não tem nenhuma solução habitacional adequada", explica a advogada Natália Almeida.
"A linha resiste e persiste e é isso que eu falo para toda a comunidade da Linha. Não é só aqui. Tem várias comunidades do Recife, tem Prexeiras, têm o Sertão, são várias comunidades", finaliza Terezinha.
Outro Lado
Em nota enviada ao Brasil de Fato, a Ferrovia Transnordestina Logística (FTL), subsidiária da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), afirma que "tem a obrigação imposta pela legislação vigente (Lei 6766/79) e pelo contrato de concessão de adotar medidas para evitar a ocupação ilegal da faixa de domínio pertencente à União, mesmo em trechos não operacionais".
Afirma também que é "sensível ao impacto social" das ações de reintegração de posse e que participa de um comitê junto com representantes da comunidade e outras instituições para discutir possíveis soluções.
O Brasil de Fato procurou também a Prefeitura do Recife. Em nota, a gestão municipal disse que "a questão da comunidade da linha é de competência exclusiva da União, tendo em vista de que o terreno onde vivem as famílias pertence à Transnordestina e que a antiga gestão do Governo Federal foi a autora do pedido de reintegração de posse".
Afirma também que, mesmo assim, a Prefeitura tentou interlocução com a União, que, durante os últimos anos, "não mostrou disposição para atender às demandas. Novas tratativas serão realizadas com a atual gestão federal, que tomou posse no dia 1º de janeiro".
Edição: Thalita Pires