A recriação do Ministério das Cidades e do Programa Minha Casa, Minha Vida, bem como uma política nacional de prevenção e mediação de conflitos fundiários para impedir a iminente onda de despejos em massa no país. Estas estão entre as principais demandas dos movimentos de moradia atualmente no país, todas voltadas ao governo que se inicia com a chegada de Lula (PT) ao planalto.
A conjunção governo Bolsonaro (PL), pandemia de covid-19 e eleição presidencial faz com que o ano de 2023 chegue em um cenário atípico da luta por moradia no Brasil. O aumento da pobreza e da fome e, portanto, do contingente populacional sem teto, encheu as calçadas das grandes cidades e as ocupações de novos moradores. Com isso, também o risco de despejos. O quadro explosivo impulsionou dois fenômenos sem precedentes.
Por um lado, uma articulação nacional inédita de movimentos populares do campo e da cidade na luta contra as remoções forçadas: a Campanha Despejo Zero, criada em julho de 2020, juntando 175 entidades.
Por outro, como fruto dessa pressão, a suspensão temporária dos despejos por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), que vigorou do início da crise sanitária até o fim da eleição presidencial. O efeito colateral, ainda por se saber como se dará, são as reintegrações de posse que estiveram represadas e que podem afetar, agora, quase um milhão de pessoas.
Agora chega 2023 e um governo petista, cuja campanha caracterizada por uma frente bastante ampla, contou com o engajamento de movimentos populares de moradia. Segundo ativistas ouvidos pelo Brasil de Fato, que têm a expectativa de terem as reivindicações atendidas, o impedimento dos despejos segue sendo a bandeira principal para o ano que entra. Mas não só.
Propostas apresentadas à equipe de transição
“Uma das coisas que nós, enquanto movimento, colocamos a todo momento para a equipe de transição é o alerta em relação aos despejos. Tem um convencimento grande em relação a isso, que é uma das crises que podem estourar nos primeiros 100 dias de governo Lula”, constata Rud Rafael, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
A Campanha Despejo Zero entregou uma carta à equipe de transição do governo federal na qual elenca uma série de propostas de curto, médio e longo prazo para lidar com a moradia – ou a falta dela – no Brasil.
Entre as medidas urgentes está a criação de um fundo emergencial para solucionar casos graves de despejos coletivos e de famílias atingidas por eventos climáticos. Além disso, a suspensão imediata de despejos de famílias pobres por inadimplência com financiamento operado pela Caixa Econômica Federal ou por ocuparem áreas públicas federais.
“Atuamos efetivamente em vários grupos de trabalho na transição do governo e foi unânime a necessidade de se criar um órgão que trate de conflitos agrários e tenha atuação interministerial”, acrescenta a advogada Izadora Brito, também coordenadora nacional do MTST.
A proposta é que o órgão tenha interlocução com a presidência e seja composto também por movimentos sociais, Conselho Nacional de Justiça, Polícia Federal e Defensorias Públicas. “Ao mesmo tempo estamos lutando pelas políticas públicas que combatam efetivamente o déficit habitacional”, elenca Brito.
“O novo governo deve prezar por uma política de proteção às pessoas e não à propriedade privada”, resume Camila Sofia, integrante das Brigadas Populares. “Estamos otimistas em relação a essa vontade política”, afirma.
Cristiano Schumacher, do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), foi um dos que, representando a Campanha Despejo Zero, entregou a carta em Brasília. “As equipes das Cidades e da Participação Social receberam as reivindicações e ficaram de construir uma proposta que atenda às necessidades. Em seguida, o grupo de trabalho do Ministério da Justiça também acolheu a carta”, relata.
As novas regras para os despejos no Brasil, ainda no papel
O fim da proibição de despejos no país, em 31 de outubro, veio acompanhado de uma série de condicionantes determinadas pelo STF para que as remoções possam acontecer. A decisão, tomada no âmbito da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 828, estabelece, por exemplo, que os tribunais de justiça nos estados criem Comissões de Conflitos Fundiários.
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Para Rud Rafael, trata-se de uma das vitórias da Campanha Despejo Zero, por ser um avanço no Judiciário, “um dos poderes menos permeáveis à pressão e participação popular no país”. Apesar de as condicionantes do STF serem chamadas de “regime de transição”, já que tratam de como as remoções vão ser retomadas no Brasil, Rud lembra que as novas normas devem ser permanentes.
Segundo o Supremo, o Poder Público passa a ser obrigado a ouvir representantes das comunidades afetadas; avisá-las com antecedência da situação; dar um "prazo razoável" para a desocupação e encaminhar quem precise para "abrigos" ou adotar "outra medida eficaz para resguardar o direito à moradia".
Resta fazer, no entanto, que saiam do papel. Benedito Barbosa, da União de Movimentos de Moradia (UMM) e da Central de Movimentos Populares (CMP), diz que a luta pelo cumprimento da ADPF 828 é a de que “os despejos não possam mais, no Brasil, desencadear situações em que as pessoas fiquem de fato desabrigadas, desamparadas pelo Estado. Esse é o grande objetivo da decisão”.
“Para isso”, salienta Benedito, “esses processos precisam estar articulados entre os governos federal, estadual, municipal, com os tribunais e os órgãos da sociedade civil”.
A relação dos movimentos com o novo governo
“Independentemente do debate de compor, ser base ou apoiar o governo, é necessário pressioná-lo para que avance numa política de desconcentração da terra urbana e rural no país”, defende Rud Rafael, para quem esse caminho deve ser menos difícil de trilhar do que tem sido nos últimos anos.
“A gente não tem ilusões de derrubar os muros que afastam o Judiciário da sociedade. Mas pelo menos a ADPF 828 cria passagens para o debate”, avalia. “Do ponto de vista do Legislativo e do Executivo, a expectativa é retomar um outro nível de diálogo, ao menos de garantia do Estado democrático de direito no país”, completa.
Camila Sofia reforça que, de qualquer forma, “o papel enquanto movimento social” seguirá sendo feito: “ocupar para denunciar as propriedades que não cumprem a função social, para garantir o direito à moradia das famílias sem teto de todo país”.
Reparação histórica
Com boa expectativa em relação à interlocução com o governo petista e a retomada de políticas habitacionais que foram desmontadas por Bolsonaro, Benedito salienta, no entanto, que a luta dos movimentos de moradia busca alterar uma lógica de exclusão sistemática que atravessa séculos.
Citando a escravidão e a Lei de Terras de 1850 (que estabeleceu a propriedade privada no Brasil, impondo restrições para que a população negra não tivesse acesso à terra), Barbosa ressalta que as estatísticas dos que sofrem risco de despejo hoje não são coincidência.
Segundo levantamento da Campanha Despejo Zero, das cerca de 900 mil pessoas em todo o país que podem ser colocadas, à força, na rua, dois terços são negras.
“Nossa luta é para alterar essa lógica”, ressalta Benedito, para quem “o componente racial e reparatório é fundamental no enfrentamento aos despejos no Brasil”.
Edição: Glauco Faria