Uma terra indígena não é só um lugar para morar e trabalhar. Cada território carrega identidades construídas ao longo de gerações. Sob o chão, descansam ancestrais que forjaram culturas milenares. É o que dizem lideranças ao comemorarem a inclusão de suas terras na lista de homologações do governo Lula.
O Brasil acaba de sair de quatro anos sem "nenhum centímetro" de terra indígena demarcada, conforme prometeu Bolsonaro em 2018, para o anúncio da homologação de 13 territórios que já cumpriram todas as etapas da regularização e estão livres de entraves judiciais.
Confira a seguir o histórico de luta de três terras indígenas no Amazonas, no Ceará e em Santa Catarina, e o impacto que as homologações terão nos territórios, de acordo com as próprias lideranças locais.
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Povo Tremembé vence batalha contra gigante do turismo
"Foi com muita alegria que a gente soube da nossa homologação. A comunidade está muito feliz", disse Erbene Tremembé, do povo Tremembé, uma liderança da Terra Indígena Tremembé da Barra do Mundaú (CE), que deve ser homologada nos próximos meses.
Não por acaso, "Tremembé" se repete nos nomes da liderança, da terra e do povo. Para Erbene, são uma coisa só.
"Nós somos os verdadeiros donos da terra. Nós nascemos aqui e nossos antepassados viveram aqui. Você acha que nós sairíamos daqui para vivermos jogados para um outro canto?", pergunta.
Para homologar a Terra Indígena (TI) Tremembé da Barra do Mundaú, que está livre de pendências judiciais, basta que o presidente Lula assine um decreto ratificando todos os procedimentos demarcatórios feitos até agora. Gesto que foi negado por Bolsonaro, considerado "genocida" pela ampla maioria das organizações indígenas.
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A homologação do território abre caminho para encerrar um ciclo de violência, ameaças e retomadas que assola as comunidades desde 2002. Foi quando a área despertou interesse de um grande empreendimento econômico.
Ancestralmente ocupada pelos Tremembé, a paradisíaca faixa litorânea teria se tornado uma grande cidade turística de luxo, não fosse a luta de pessoas como Erbene. "Ficou tudo área privada", lembra a liderança indígena.
"Invadiram tudo, tomaram nossos espaços sagrados, fecharam nossos locais onde a gente ia à praia e onde a gente ia pescar no rio. Tinha policiais todos os dias aqui dentro da terra, vigiando".
Mas na TI Tremembé da Barra do Mundaú, a assinatura de Lula não vai resolver todos os problemas. A próxima etapa, segundo Erbene, é a expulsão de 110 famílias que nasceram e vivem na área, mas não se reconhecem como indígenas. É a chamada desintrusão, etapa seguinte da homologação.
"Essas pessoas ficaram do lado dos empreendimentos e até hoje continuam dessa forma. Não tenho felicidade de saber que pessoas que foram criadas junto conosco, com quem a gente teve uma harmonia no passado, terão que deixar o território", diz a liderança.
"Mas cada um faz as suas escolhas. E nós escolhemos estar do lado do povo que queria permanecer. Essa era a vontade e a sabedoria dos nossos anciãos, dos nossos idosos. Foram eles que nos deram sabedoria e nos apoiaram", complementa Erbene Tremembé.
Um enclave indígena no litoral catarinense
Os portugueses que exploravam o litoral de Santa Catarina no início do século 16 conheceram os indígenas Guarani. Até hoje, porém, a TI Morro dos Cavalos, no município de Palhoça (SC), não teve o processo de regularização concluído. Agora, o território está na lista de regularizações do novo governo federal.
"Desde a invasão de nossa Yvy Rupa (território) em 1500, vivemos lutando para garantir o pouco que nos restou, buscando resgatar o que é nosso por direito, nossas terras", diz Kennedy Karai, do povo Guarani Mbya, professor e liderança na comunidade.
Os moradores aguardavam a homologação desde 2008, quando a área foi declarada como de ocupação tradicional indígena. Kennedy diz que um "sentimento de alegria tomou conta da comunidade" quando souberam que teriam o usufruto exclusivo da terra garantido.
"Hoje a homologação de nossa terra é um sonho se realizando. O sonho de nossos xeramoi e xejaryi kuery (anciões e anciãs), crianças, jovens, adultos e até mesmo daqueles que já alcançaram Yvy Marae’y (Terra sem Males)", diz a liderança.
Diferente de áreas na Amazônia onde a presença indígena é relativamente aceita e reconhecida pelo poder local e pelos não indígenas, os Guarani do Morro dos Cavalos sofrem com uma dose a mais de segregação e preconceito.
Kennedi diz que a comunidade enfrenta uma batalha cotidiana por viver em um estado cuja colonização europeia é mais valorizada do que a ocupação ancestral indígena.
"Nossas lideranças sofreram e ainda sofrem perseguições físicas e políticas de pessoas contrárias aos direitos indígenas. São muitas invasões, desmatamento, especulação imobiliária e queimadas", narra Kennedi.
Com a homologação, a possibilidade de os Guarani Mbya serem ouvidos pelo poder político local poderá se concretizar.
"O plano diretor de Palhoça (SC) não tem participação da população, nunca fez a consulta nas comunidades indígenas e usa a Câmara Municipal para promover conflitos com desinformações, gerando ataques contra nós indígenas", conta.
"Resistimos há mais de 520 anos e resistiremos quantos anos a mais forem precisos, para mostrar que somos originários daqui, nascemos aqui e aqui iremos ficar", enfatiza Kennedi.
Povo Nadöb: vulnerável ao garimpo e ao narcotráfico
Na região do médio Rio Negro (AM), onde há uma das maiores proporções de população indígena no Brasil, uma terra ancestral aguardava o reconhecimento final do Estado brasileiro: a TI Uneiuxi do povo Nadöb.
O diretor-presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Marivelton Baré, explica que a população é considerada quase de recente contato, com baixo grau de integração à sociedade dos colonizadores.
A Foirn representa 50 mil indígenas de 750 comunidades na calha do Rio Negro. Segundo Baré, a homologação será "um presente maravilhoso" e representa uma "reconquista".
Perto dos Nadöb, segundo a Foirn, estão balsas de garimpo que exploram minério ilegalmente no rio Japurá. Como se não bastasse, os indígenas estão na rota de facções que fazem o contrabando de drogas da Bolívia.
"É uma área que é bastante ameaçada. Criou-se uma rota de narcotráfico, e não há fiscalização nem monitoramento. A Polícia Federal não atua, e a Funai não atuava. Com a homologação, a gente espera que possa vir a garantia da proteção daquele território", afirma Baré.
"O narcotráfico está até mesmo atrapalhando a conclusão dos planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da TI Uneiuxi", lamenta a liderança.
O PGTA é um instrumento da Politica Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) e serve para colocar em prática o planejamento do uso do solo discutido previamente por toda a comunidade, com diretrizes culturais, ambientais e econômicas.
"Esse é o momento da nossa retomada, mas a gente sabe que não é só demarcar. A gente precisa também que a PNGATI seja efetivada como política pública", defende a liderança do Rio Negro.
"A gente precisa não só de um plano de governo, mas de um programa de Estado que possa abranger saúde, educação, cultura, monitoramento e fiscalização das terras indígenas, incluindo as comunidades afetadas em todos os processos a partir dos protocolos de consulta aos povos e comunidades", projeto Marivelton.
Edição: Thalita Pires