A suspensão das remoções forçadas no Brasil - que estava em vigor por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) por conta da pandemia de covid-19 - não vale mais. Na última segunda-feira (31), o ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADPF 828, que trata do tema, não atendeu o pedido de movimentos populares para esticar o prazo por mais seis meses. Em vez disso, determinou que se instaure no país um "regime de transição" para os despejos.
A decisão, respaldada pela maioria da Corte na última quarta-feira (2), estabelece que os tribunais de justiça nos estados criem Comissões de Conflitos Fundiários. O documento propõe que elas façam visitas técnicas no território e audiências de mediação antes de uma reintegração de posse acontecer. A atribuição principal das comissões será "propor a estratégia de retomada" das remoções "de maneira gradual e escalonada".
O que está em jogo é o destino de 898.916 pessoas no Brasil que, segundo levantamento da Campanha Despejo Zero, correm o risco de perder o teto. Entre elas, 154 mil são crianças e 151 mil idosas.
O STF determinou, ainda, que o Poder Público passa a ser obrigado a ouvir representantes das comunidades afetadas; avisá-las com antecedência da situação; dar um "prazo razoável" para a desocupação e encaminhar quem precise para "abrigos" ou adotar "outra medida eficaz para resguardar o direito à moradia".
Essas condicionantes do regime de transição valem apenas para ocupações coletivas. Despejos de quem vive em casas residenciais por um aluguel de até R$600 já podem acontecer.
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Expectativa e preocupação
Débora Nunes, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), considera que foram importantes as três vezes em que o STF prorrogou a suspensão dos despejos, mas sabia que os adiamentos não seriam eternos. "Até porque nós também não queremos passar a vida toda num acampamento. Queremos uma solução definitiva", diz. Nesse sentido, avalia ser importante a decisão de Barroso.
"Nos despejos sempre se resolve a questão de um lado. Quem reivindica a propriedade é quem consegue resolver sua situação e o Estado também, porque teoricamente está cumprindo uma ordem judicial. No entanto, o outro lado, dos trabalhadores sem-terra e sem teto, não é observado", diz Nunes, para quem o regime de transição sinaliza para uma mudança neste aspecto.
Benedito Barbosa, da União de Movimentos de Moradia (UMM) e da Campanha Despejo Zero, tem um sentimento ambíguo. "Foi positiva a decisão, no sentido em que estabelece um disciplinamento no cumprimento de ordem de reintegração de posse no Brasil e tratamento de conflitos fundiários. Por outro lado, a gente não sabe como isso vai ser tratado pelos tribunais", aponta, preocupado.
Avaliação similar é feita pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). "Quando criamos a bandeira da Campanha Despejo Zero, nosso objetivo não era apenas impedir remoções, mas sim defender uma política de tratamento humanizado dos conflitos pela terra no Brasil", explica Rud Rafael, da coordenação nacional do MTST e também da Campanha. A expectativa é que isso se cumpra.
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"Despejo não se humaniza", complementa Débora. "Penso que as condicionantes do regime de transição são uma forma de buscarmos as condições para resolver, de forma estrutural e definitiva, a situação das famílias", defende.
Lacunas
Há, ainda, perguntas sem resposta. Se o Tribunal de Justiça, amparado pela Comissão de Conflito Fundiário, perguntar se a prefeitura vai garantir uma solução habitacional e a resposta for negativa, o que acontece? "O juiz vai se conformar com um não da prefeitura? Ou vai obrigar um atendimento habitacional? Essas coisas não estão claras na decisão", critica Benedito.
"As mediações vão de fato mediar ou vão só dar um prazo para as pessoas saírem? Vão verificar se aquela terra cumpria antes uma função social?", questiona, citando também que o STF não estabelece qualquer normativa sobre a atuação das polícias nos cumprimentos de ordens de reintegração de posse.
"Tem muitas omissões na decisão do ministro Barroso, na minha opinião. Agora vamos ter de discutir junto aos tribunais estaduais. Que são, em sua maioria, ultraconservadores. Como vão tratar disso, a gente não sabe", destaca Barbosa.
De fato, o documento do STF deixa a critério de cada Tribunal de Justiça (TJ) e Tribunal Regional Federal (TRF) como será sua Comissão. "Tudo é no plano do 'poderá' e não do 'deverá', o que pode gerar Comissões muito distintas em cada tribunal, a depender das decisões internas", explica Bianca Tavolari, professora de Direito do Insper e pesquisadora do Cebrap.
Quando vão começar os despejos?
As remoções forçadas de ocupações coletivas que surgiram antes da pandemia de covid-19, de acordo com o STF, só poderão acontecer depois de os TJs e TRFs constituírem suas Comissões e que elas trabalhem. Se por um lado isso, somado ao recesso judiciário de fim de ano, pode significar um respiro de tempo para famílias vivendo sob despejo iminente, agora o prazo para que as remoções aconteçam é nebuloso.
"Não temos dúvida que há uma pressão grande pelos autores dos pedidos de reintegração de posse para que sejam cumpridos", salienta Débora Nunes. "Nosso próximo passo é a vigilância permanente e a luta para que essas condicionantes definidas pelo ministro Barroso sejam garantidas. E se o Estado quiser, ele consegue fazer. Sem sombra de dúvidas", afirma.
"A ADPF 828 precisa deixar de legado a compreensão que despejo não é questão de polícia, é responsabilidade do Estado brasileiro em promover dignidade para quem sofre sem ter um teto adequado e seguro", defende Rud Rafael, do MTST. Resta ver se deixará.
Edição: Thalita Pires