Composição

Como seria o STF se Bolsonaro ampliasse o número de ministros para ter maioria na Corte?

Polêmica ganhou os holofotes porque, segundo especialistas, faria país caminhar para uma autocracia; entenda

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Fachada da sede do STF, na Praça dos Três Poderes, em Brasília - Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Motivo da mais nova polêmica que circunda o projeto político de Jair Bolsonaro (PL) desde os últimos dias, a possibilidade de aumento do número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) por parte do chefe do Executivo segue suscitando críticas, desconfianças e conjecturas no atual contexto nacional. Mas e como seria se, de fato, o atual presidente da República se reelegesse e conseguisse emplacar uma mudança dessa natureza?  

O Brasil de Fato procurou ouvir especialistas para projetar cenários possíveis diante desse tipo de intervenção. A jurista Soraia Mendes, pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), alerta que a medida teria potencial para trazer à tona uma série de retrocessos.

“É um vespeiro, porque eles poderiam aprovar qualquer coisa que você puder imaginar. Se um presidente obtém uma maioria no STF, ele tem aquilo que chamamos de ‘controle de constitucionalidade’. Ele poderia, inclusive, rever uma série de direitos já conquistados pelos grupos sociais mais vulneráveis”, alerta a jurista.  

Soraia destaca questões relativas a garantias já reconhecidas pela Corte naquilo que se refere a segmentos como indígenas, quilombolas, população LGBTQIA+ e mulheres, por exemplo. “No caso das mulheres, ainda estamos esperando grandes decisões, mas já há alguns avanços”, diz, ao citar julgamentos como o que proibiu, em março de 2021, a utilização da tese de legítima defesa da honra em crimes de feminicídio.

Na época, uma decisão unânime do plenário da Corte fixou o entendimento de que esse tipo de tese ajuda a alimentar a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres. “Essas pautas que mexem com questões de costumes servem pra criar uma névoa, então, em um cenário em que se tenha uma composição nova do STF conforme Bolsonaro queira, nada impede que um avanço como esse possa ser considerado ilegítimo”, exemplifica. 


Violência de gênero ganha expressão máxima com casos de assassinato, que são pauta constante do movimento feminista em manifestações de rua e fora delas / Mídia Ninja 

Os especialistas apontam em uníssono o entendimento de que, caso avance nesse sentido, o Brasil tende a caminhar para uma autocracia, forma de governo em que o poder se resume e se concentra praticamente na figura de um único líder.  

“Do ponto de vista legal, constitucional, algo que viesse nesse sentido seria uma ruptura do Estado democrático de direito. Dificilmente nós poderíamos falar de uma democracia se víssemos isso acontecer”, afirma o pesquisador Pablo Holmes, professor Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB).  

Constitucionalidade

A medida é interpretada por parte dos juristas como algo inviável porque, na visão deles, contrariaria uma cláusula pétrea da Constituição Federal. É o que defende Soraia Mendes, por exemplo.

“Aquilo que a gente chama de ‘cláusula pétrea’, que os constituintes de 1988 marcaram não só por estar no artigo 5º da Constituição – e no artigo 7º também, mas principalmente no 5º –, mas todos aqueles que são decorrentes desse catálogo, e aí está também a separação dos Três Poderes, não pode ser alterado pelo que se chama tecnicamente de ‘poder constituinte reformador’”, explica, ao mencionar o Congresso Nacional e os limites de suas atribuições e prerrogativas.


Palácio do Planalto, em Brasília, é sede do Poder Executivo nacional e endereço do gabinete do presidente da República / Agência Brasil

Assim, Soraia entende que uma alteração dessa natureza não poderia ser feita por meio de uma proposta de emenda constitucional (PEC) porque uma ingerência do tipo por parte do chefe do Executivo junto ao Judiciário representaria um choque com premissas fixadas na Carta Magna.

“Todas as vezes em que uma PEC é proposta, isso é feito com base numa legitimidade conferida a quem veio depois de 1988, mas para reformar, e nunca pra revolucionar, digamos assim. Ou seja, não é pra retirar aquilo que é a estrutura fundamental da Constituição. E a Constituição tem uma estrutura fundamental, [a lógica da] separação entre os Poderes, que determina que eles sejam harmônicos e independentes entre si.”  

Já o jurista Lenio Luiz Streck, professor de Direito Constitucional da Unisinos (RS) e da Universidade Estácio de Sá – Unesa (RJ), entende que o Congresso teria carta branca para promover essa mudança constitucional. “Não é proibido ao Legislativo aprovar aumento no número de componentes do STF. Ele é soberano para isso. Então, qual seria o problema? Isso pode desequilibrar a relação entre os Poderes. Aumentar bruscamente o numero de 11 para 15 pode causar uma hecatombe, pode colocar em risco a democracia”, pondera, ao citar os cálculos de Bolsonaro.

Contexto

O presidente falou sobre o assunto durante um almoço com jornalistas na semana passada, ocasião em que disse ter recebido essa sugestão. "Não posso passar [sozinho] para mais cinco [magistrados]. Se quiser passar, tem que conversar com o Parlamento. Isso se discute depois das eleições. Essa proposta não é de hoje, há muito tempo outros presidentes pensaram em fazer isso daí”, afirmou, acendendo um alarme que ganhou os holofotes do mundo político.

A polêmica foi crescendo ao longo dos últimos dias. No domingo (9), por exemplo, o ex-capitão disse a um canal no Youtube que, se for reeleito “e o Supremo baixar um pouco a temperatura, talvez descarte essa sugestão. Se não for possível descartar, você vê como é que fica”. A chantagem institucional movimentou a crise que vem sendo sistematicamente alimentada por Bolsonaro para tentar minar a credibilidade e a força política do Poder Judiciário.


Bolsonaro vive crise institucional com Poder Judiciário desde início do mandato, em 2019 / Antonio Cruz/Agência Brasil

Incomodado com decisões tomadas pelo STF nos últimos anos que impuseram derrotas ao Executivo em uma série de ações judiciais – especialmente as relacionadas à condução da pandemia –, o presidente mira agora um avanço no sentido de buscar uma maioria de apoiadores dentro do Supremo.

Matemática

A Corte conta com 11 ministros, com dois deles tendo sido indicados por Bolsonaro no atual mandato, André Mendonça e Nunes Marques. No próximo ano, caso consiga se reeleger, o ex-capitão terá o direito de indicar mais dois nomes, desta vez os substitutos de Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, que se aposentam em 2023.

Ocorre que, na matemática do Planalto, a ideia seria o presidente ter uma maioria absoluta de ministros com os quais tivesse alguma relação de confiança e, consequentemente, que pudessem lhe garantir uma blindagem judicial diante das variadas ações que o colocam na berlinda. Assim, a ideia seria ampliar a composição do plenário da Corte de 11 para, por exemplo, 15 membros, o que daria a Bolsonaro a possibilidade de indicar seis novos nomes em um eventual próximo mandato.   

“Em tese, não é ruim pensar em uma Corte estendida. A Alemanha possui 16. Porém, a questão é: qual o momento em que essas coisas podem ser feitas? A resposta única é: nunca de uma vez, porque seria uma espécie de golpe”, observa Streck.    


Jurista Lenio Luiz Streck se destaca especialmente por trabalhos voltados à filosofia do direito e à hermenêutica jurídica / Vinícius Schmidt /OAB

“Nas democracias, a palavra final sobre se uma lei vale ou não vale é do Tribunal Constitucional. Quem ‘controla’ o Supremo controlará a Constituição porque o STF é o guardião da Constituição. Assim, se o STF vier a ser dominado pelo Poder Executivo, então, quem será o guardião da Constituição? O próprio presidente da República”, analisa o professor, que aponta para o risco de o STF passar a ser “instrumento de poder, e não um elemento controlador dos abusos do poder”.

“Ativismo judicial”

A última vez em que o número de ministros do Supremo foi modificado no país foi durante a ditadura civil-militar (1964-1985), por meio do Ato Institucional nº 2 (AI-2). Na época, a alteração se deu para que a Corte passasse a ter 16 ministros. Mais tarde, em 1969, a medida foi revista e o plenário voltou a contar com apenas 11 membros.

O AI-2 foi instituído no governo Castelo Branco e sob um discurso oficial de que a mudança seria para dar conta da crescente demanda de processos que batiam à porta do STF. Já na atualidade, na gestão Bolsonaro, o ex-capitão não tem feito questão de esconder o interesse por trás da proposta: a ideia seria barrar o que chama frequentemente de “ativismo judicial”. A acusação nasce basicamente do descontentamento do chefe do Executivo com as medidas da Corte que o desfavoreceram ao longo dos últimos anos.  

Apesar de o país viver atualmente sob uma democracia do ponto de vista formal, Pablo Holmes diz ver um paralelo entre o que se deu no regime dos fardados e o que se desenrola hoje sob a gestão Bolsonaro, apontada como um governo de comportamento autoritário. O ex-capitão tem, inclusive, como um de seus principais traços comportamentais a exaltação permanente ao governo ditatorial e suas práticas, como é o caso da tortura.  

“Ditaduras, governos autoritários não convivem com um Judiciário independente, por uma razão muito simples: se o Judiciário for independente, os ditadores e seus apoiadores podem responder por crimes. E qual é a forma pela qual uma ditadura exerce o poder? É ameaçando, esculachando, cometendo violência e, portanto, pode responder por crimes. A verdade é que o primeiro passo numa ditadura geralmente é controlar o Judiciário.”  

Edição: Monyse Ravena