Tiros no meio da noite acordam mulheres, crianças e toda uma comunidade atordoada que se refugia na mata. Tiros a esmo que, no último dia 04 de setembro, vitimaram Gustavo da Silva Conceição, jovem indígena Pataxó de apenas 14 anos, na Terra Indígena (TI) Comexatibá. E voltaram a ser ouvidos na madrugada do dia 12 na TI Barra Velha, também território Pataxó no sul da Bahia. Os tiros partiram de armas de grosso calibre que, em tese, só poderiam ser utilizadas pelo exército e pela polícia militar. Até o momento, nenhum suspeito foi preso ou mesmo indiciado.
“Nós estamos vivendo sob ataques. E não é de agora. Desde 2013, quando a aldeia Kaí fez uma retomada às margens da BR 001 que corta de Cumuruxatiba a Corumbau que nós começamos a sofrer ataques, referente a pistolagem. A gente vem sofrendo com essa situação, às vezes os ataques de uma forma mais branda, mas às vezes de uma forma muito mais violenta. E hoje nós lutamos tanto judicialmente, quanto com forças físicas pra gente se manter dentro do nosso território”, nos conta Ricardo Pataxó, uma das lideranças do território.
Ricardo explicou também que o processo de demarcação da terra indígena Comexatibá, onde Gustavo foi assassinado, está parado desde 2015. Mesma situação da TI Barra Velha, que aguarda apenas uma assinatura para que o território seja legalmente reconhecido como terra indígena. A assessoria jurídica da Regional Leste do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) explica que, desde o início do governo do presidente Jair Bolsonaro, todos os processos de demarcação de terra estão parados na Fundação Nacional do Índio (Funai). Essas retomadas de terra seriam a forma encontrada pelos povos indígenas para pressionar a Funai para que dê andamento aos processos, bem como para garantir território necessário à sua sobrevivência.
Relatório CIMI
De acordo com o CIMI, o povo Pataxó está entre os mais agredidos pelo avanço criminoso de invasores sobre suas terras. A afirmação consta no relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil — Dados de 2021, lançado em agosto. Segundo o relatório, a violência resultou em 14 assassinatos em 2021 na Bahia, número menor apenas do que o do estado do Mato Grosso do Sul.
O coordenador geral do Movimento Unido dos Povos Organizados Indígenas da Bahia (Mupoiba), o cacique Agnaldo Pataxó Hãhãhãe, explica que os conflitos na região sul do estado se dão muito pela pressão do avanço do agronegócio e das milícias armadas. “Uma violência muito grande, porque naquela região do extremo sul tem as grandes empresas de eucalipto, além de grandes monoculturas de café e outras. E isso tem avançado sobre as terras indígenas”, explica o coordenador do Mupoiba
Cacique Agnaldo lembra ainda que a violência contra os povos indígenas não é uma novidade no estado. “Na região do extremo sul, tem uma tradição de pistolagem, de perseguição a lideranças, como em Belmonte, à cacica Kátia. E aos Pataxós, que ao longo do tempo vêm sofrendo essa perseguição. Em 1951 teve um fogo que tentou acabar com a aldeia Barra Velha, quase dizimou o povo. E de lá pra cá, não foi diferente, muitas lideranças presas, muito envolvimento de milícias, de fazendeiros, de pistoleiros. Então, o avanço sobre as terras dos parentes naquela região sul é muito grande”, conta.
Ele explica que, no estado da Bahia, há 30 povos indígenas, que agregam cerca de 60 mil pessoas. E que o avanço do agronegócio sobre as terras indígenas não acontece apenas na região sul do estado. “A realidade nossa na Bahia é cruel. Há uma articulação geral de perseguição às lideranças, não demarcação de terras indígenas e incentivo do atual presidente para invadir todas as terras indígenas. No oeste da Bahia, por exemplo, temos uma realidade muito complexa, porque lá nós temos o agronegócio implantado, destruindo toda a mata nativa e todos os rios”, conta Agnaldo Pataxó Hãhãhãe.
Região Oeste da Bahia
Marta Mamédio, do CIMI Regional Leste, explica que a maior parte desses povos chegaram à região oeste da Bahia justamente por causa de outros conflitos em seus locais de origem, e ali, atualmente, vêm sofrendo pressão do agronegócio. “Os povos indígenas hoje no oeste da Bahia são os Xacriabá, os Pankarus, os Kapinauá, os Fulniô, os Tapuia, os Potiguara, os Atikun, os Kiriri, os Pataxó Hãhãhãe e os Tuxá, são dez povos indígenas, que estão distribuídos em 14 comunidades. Interessante que é uma das regiões da Bahia onde mais se tem uma diversidade em povos indígenas, e, ao mesmo tempo, uma região em que é extremamente invisibilizada a existência de povos indígenas. E essa invisibilidade se dá de uma forma extremamente estratégica para essa região: o oeste da Bahia é uma região onde é muito forte o agronegócio e o hidronegócio”, explica.
Para essas atividades, a presença dos povos indígenas na região significa uma barreira ao avanço sobre os territórios de mata nativa e sobre os rios, como explicam o CIMI e o Mupoiba. Um conflito instalado nessa região, que também se acirrou em julho, é contra o povo Potiguara. Assim como outros povos, eles também aguardam a demarcação de suas terras, no entanto, em uma situação mais precária, vivendo em um distrito urbanizado com não-indígenas.
Em junho, eles ocuparam uma área reivindicada para demarcação e que estava sem uso há mais de 40 anos. A comunidade limpou a área e iniciou o plantio. De acordo com o CIMI regional Leste, foi só então que apareceram algumas pessoas afirmando serem proprietários do terreno. A comunidade passou a receber ameaças de morte e, no dia 11 de julho, atearam fogo na vegetação e nas barracas montadas pelo povo Potiguara.
Em nota, o CIMI e o Mupoiba informaram já terem solicitado a proteção do povo aos órgãos federais — Ministério Público Federal e Funai — e órgãos estaduais — Secretaria de Segurança Pública da Bahia e Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania. Na mesma nota, o CIMI defende que a luta do povo Potiguara deve ser uma luta de todos. “O latifúndio animado e incentivado pela impunidade e pelos discursos de ódio e ataques aos direitos indígenas promovido pelo mandatário maior deste país, continua avançando perigosamente contra o direito dos povos indígenas e dos empobrecidos”, diz a nota.
O cacique Agnaldo Pataxó Hãhãhãe lembra também que os povos seguem resistindo a esse quadro de violações em todo o estado, se articulando junto a outros movimentos e buscando apoio da sociedade. “Os parentes vêm fazendo a resistência dentro das comunidades, e nós vimos buscando alianças com outros movimentos, como os movimentos indigenistas, o Ministério Público Federal e a sociedade em geral. Nós estamos denunciando na ONU, no MPF, no Conselho Nacional de Justiça e em todas as instâncias de garantia de direitos humanos. Enquanto a parentada que vive nas aldeias faz a resistência para garantia do território e vem sofrendo perdas, a gente que é do movimento sai para articular as organizações para pressionar o governo federal a demarcar as terras indígenas e dá segurança ao povo”, finaliza cacique Agnaldo.
Fonte: BdF Bahia
Edição: Lorena Carneiro