O presidente Vladimir Putin aprovou na semana passada o que chama de uma nova doutrina de política humanitária da Rússia no exterior, que é baseada na concepção e na defesa de um "mundo russo". O documento de 31 páginas afirma que a Rússia deve "defender, preservar e promover as tradições e ideais do mundo russo". A doutrina foi lançada em meio a um dos momentos mais críticos do conflito ucraniano para Moscou, com a retomada de territórios na região de Kharkov por parte de Kiev, após a anunciada contra-ofensiva da Ucrânia no campo de batalha.
O documento aprovado por Vladimir Putin prevê que a “política humanitária no exterior é parte integrante da política externa” e visa “fortalecer o papel da língua russa no mundo moderno”.
“A Federação Russa oferece apoio a seus compatriotas que vivem no exterior no cumprimento de seus direitos, para garantir a proteção de seus interesses e a preservação de sua identidade cultural russa”, diz o documento.
A narrativa da defesa do que Moscou classifica como “mundo russo” não é nova. Esta concepção tem origem na dissolução da União Soviética e a consequente diáspora de russos nas repúblicas vizinhas fora do território da Federação Russa, o que se convencionou chamar de espaço pós-soviético.
A ideia, no entanto, foi usada de forma mais efetiva para justificar a guerra com a Geórgia em 2008, quando a Rússia alegou defender a população russa nas repúblicas separatistas da Abkházia e Ossétia do Sul, e na anexação da Crimeia em 2014, quando Moscou acusou Kiev de perseguir e reprimir o idioma russo na península.
O contexto da atual crise entre a Rússia e a Ucrânia não é diferente. Vale notar que em todos os casos citados a “ameaça ao mundo russo”, de acordo com o Kremlin, acontece por interferência externa, mais precisamente dos EUA e dos seus aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), sobre o Leste Europeu com o intuito de desestabilizar a Rússia.
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Para o cientista político Vladimir Jarhall, a particularidade da doutrina de política externa russa neste momento é que a “Rússia declara que não está de acordo com a existência de um mundo unipolar, porque este mundo unipolar é, via de regra, um mundo formado pelas regras da hegemonia dos EUA”. Ao Brasil de Fato, o analista afirmou que “a Rússia busca por relações de paridade, ou uma parceria em condições de igualdade”, destacando que os parceiros ocidentais vêm enxergando a Rússia como "subordinada".
Nesse contexto, a busca da Otan em atrair a Ucrânia para o seu bloco atingiria parte do que Moscou considera como “mundo russo”, o que representaria para a Rússia uma ameaça concreta à sua segurança. Desta forma, como aponta Jarhall, especialista em assuntos políticos da Crimeia e das relações russo-ucranianas, a nova doutrina da política externa russa pressupõe um “rompimento da parceria com o Ocidente”. “Desta forma, a Rússia começa a se orientar para a América Latina, África e para o Oriente”, acrescenta.
A estratégia de defender e promover a cultura russa no exterior foi apresentada na doutrina como um mecanismo de “soft power”, como aponta ao Brasil de Fato o analista político e ex-presidente do Conselho de Ministros de Lugansk, Marat Bashirov. Ou seja, a promoção de um mundo russo no exterior se dá a partir de organizações civis e da disseminação cultural, abrangendo populações russófilas no mundo.
Segundo ele, tal lógica nada tem a ver com o andamento da operação militar russa na Ucrânia, cujos objetivos são exclusivamente "não permissão da presença da Otan perto das fronteiras da Rússia e a liquidação do regime fascista que hoje lidera a Ucrânia" .
No entanto, como as prerrogativas da doutrina da política externa russa naturalmente envolvem aspectos políticos, a concepção de defesa do mundo russo também é encarada como uma justificativa para realizar a intervenção militar em territórios ucranianos.
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A formulação da doutrina russa sobre territórios fora da Federação Russa surge no contexto em que a Ucrânia anuncia uma contra-ofensiva em territórios que a Rússia havia assumido controle com a guerra. E, consequentemente, essa nova fase do conflito na Ucrânia cria um entusiasmo entre as potências ocidentais.
De acordo com o cientista político Vladimir Jarhall, a contra-ofensiva é bem-sucedida no plano local, conseguindo a tomada de controle de territórios e deslocando as forças militares russas. No entanto, ele argumenta que, territorialmente, não se pode dizer que houve alguma mudança significativa no plano militar.
“Ou seja, nenhuma das partes perdeu o controle da situação na direção de suas forças armadas. o que, como resultado, poderia levar a uma derrota tática. Sem uma lupa, sem uma lente de aumento, praticamente não é possível ver no mapa alterações em curso”, observa.
Enquanto não fica clara a dimensão real da capacidade ucraniana de afastar as tropas russas da região de Donbass, na última quinta-feira (15), o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky anunciou novos avanços das tropas ucranianas na região de Kharkov, declarando a retomada do controle sobre 400 assentamentos. No dia seguinte, os EUA, anunciaram um novo pacote de ajuda militar à Ucrânia no valor de US$ 600 milhões (R$ 3,154 bilhões).
A diplomacia russa reagiu. A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, afirmou que se os EUA decidirem fornecer mísseis de longo alcance a Kiev, eles cruzarão uma “linha vermelha” e se tornarão uma parte direta do conflito, ao que a Rússia terá direito de responder adequadamente.
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Ao mesmo tempo, o porta-voz do Ministério da Defesa russo, Igor Konashenkov, declarou que as forças aeroespaciais russas, as forças de foguetes e de artilharia estão realizando ataques massivos contra unidades das forças armadas ucranianas em todas as direções operacionais.
Para o cientista político Vladimir Jarhall, apoio do Ocidente à Ucrânia pode levar a desdobramentos perigosos, pois “ninguém mais esconde que os países do Ocidente são um provedor para as ações militares da Ucrânia”.
“Hoje já se fala que os objetivos (do Ocidente) vão além do âmbito do próprio conflito e de defesa de territórios, mas a discussão já trata de certos desafios globais. Com isso, a situação torna-se mais perigosa porque representa uma permanente afirmação de confrontação de consequências imprevisíveis”, completa o analista.
Edição: Arturo Hartmann