Sob a acusação de "perturbação do sossego", 21 pessoas foram detidas pela Polícia Civil na tarde desta quinta-feira (1) na região conhecida como Cracolândia, no centro de São Paulo. Foram levados ao 77° DP usuários de drogas, pessoas em situação de rua e trabalhadores da saúde e da cultura que atuam com redução de danos na região.
Entre eles, estavam Flávio Falcone, palhaço e psiquiatra vinculado ao Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Unifesp, e o fotógrafo João Leoci, impedido de fazer o registro. "Me identifiquei como jornalista, mas tive uma espingarda calibre 12 apontada para o meu rosto com a ordem que eu parasse de fotografar", relata.
Enquanto isso acontecia, a Polícia Civil e a Guarda Civil Metropolitana (GCM) faziam mais uma ação da Operação Caronte, jogando bombas, atirando com balas de borracha e causando correria.
:: Chacinas, cracolândias e câmara de gás: por que a guerra às drogas precisa acabar no Brasil ::
Depois de quatro horas e de um advogado ser privado de entrar na Delegacia, os 21 detidos foram liberados. Não sem antes, segundo Falcone, o delegado titular, Severino Vasconcelos, lhe dar um aviso. "Que a partir daquele dia, toda vez que eu fizesse ação [de redução de danos], ele ia fazer operação e me prender", conta o psiquiatra e palhaço. Uma bicicleta com autofalante, equipamento de trabalho das ações culturais feitas na região, ficou apreendida.
"Esse é mais um episódio da perseguição contra as pessoas que lutam pelos direitos humanos no centro de São Paulo. Um completo abuso, que se soma às ameaças, inquéritos sem pé-nem-cabeça e prisões arbitrárias", denuncia nota do coletivo A Craco Resiste, que atua na região desde 2012 contra a violência do Estado.
Nariz quebrado, ameaça e retaliação
O episódio acontece exatamente uma semana depois de momentos de tensão entre ativistas e Guardas Civis Metropolitanos (GCMs). Fontes ouvidas pela reportagem avaliam que a ação desta quinta-feira (1) pode ter sido uma retaliação.
No último dia 25 de agosto pela manhã, um trabalhador do Teatro de Contêiner Mungunzá, localizado na região da Cracolândia, teria presenciado um GCM quebrando o nariz de um homem em situação de rua. Em seguida, por ter testemunhado a agressão, teria sido ameaçado de morte pelo Guarda.
Foi nesse clima que, durante a tarde desse mesmo dia, o psiquiatra Flávio Falcone e o músico MC Nego Bala fizeram a já costumeira "Rádio Kawex", atividade semanal em que, com a bicicleta com caixa de som, percorrem as ruas do bairro tocando música e fazendo apresentações.
Durante a atividade, ao se deparar com ao menos dois enquadros feitos por GCMs em homens negros na Cracolândia, a bike (que dias depois seria retida pela polícia) vocalizou a insistência de Nego Bala para que as pessoas fossem liberadas. "Está batendo no cara por quê? Libera, o cara não tem nada." A esquina se juntou com curiosos com o celular em punho.
No microfone, o músico reiterou a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no último dia 22, que determina que guardas municipais não têm poder de polícia e não podem fazer abordagens. "A gente já estava percebendo que depois dessa decisão a GCM estava muito mais violenta", avalia Falcone.
"Há um embate", avalia o fotojornalista João Leoci. Em sua visão, "há uma parcela da sociedade civil que se posiciona politicamente, enquanto movimento social" contra a violência estatal praticada na Cracolândia e em defesa dos direitos das pessoas que fazem uso de drogas. E que, por isso, atrapalham projetos governamentais que atuam na perspectiva da repressão e da internação compulsória.
"Atrapalha, mas de fato o Estado está fazendo o que quer né?", reflete, depois de comentar sobre o cerceamento da liberdade de imprensa que vivencia sistematicamente na região.
Na próxima segunda-feira (5), Falcone vai formalizar o relato do ocorrido na Defensoria Pública para que a Corregedoria da Polícia seja acionada e para pedir um habeas corpus que garanta a possibilidade de seguir seu trabalho de acolhimento e redução de danos.
:: Financiamento público às Comunidades Terapêuticas cresce e põe em risco a reforma psiquiátrica ::
Respostas institucionais
O Brasil de Fato ligou seis vezes para a 77° DP para pedir um posicionamento do delegado Vasconcelos sobre a ameaça que ele teria feito de prender novamente o trabalhador da saúde, bem como peguntar sobre o motivo da apreensão da bicicleta. Mas de ramal em ramal, ninguém atendeu.
A Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo – sob gestão do governador Rodrigo Garcia (PSDB) – informou que foi instaurado um "inquérito policial para apurar todas as circunstâncias", que moradores da região denunciaram transtorno causado pelo equipamento de som e que as pessoas detidas teriam se recusado "a informar os dados pessoais".
A Secretaria Municipal de Segurança Urbana, da prefeitura comandada por Ricardo Nunes (MDB), foi questionada sobre as denúncias de violência e ameaça praticada pela GCM no centro paulistano, mas não respondeu até o fechamento da matéria. Posicionamento também foi requisitado à Secretaria Municipal de Projetos Estratégicos que, dirigida pelo secretário Alexis Vargas, coordena as ações da prefeitura na Cracolândia. Até o momento, não houve resposta.
Edição: Nicolau Soares