“Louco é o sistema”. “Por um SUS antimanicomial”. “Contra o fascismo, em defesa do cuidado em liberdade e dos direitos humanos”. “(Ainda) por uma sociedade sem manicômios”. Esses são eixos de alguns dos atos que estão sendo organizados, Brasil afora, nesta quarta, 18 de maio, dia nacional da luta antimanicomial.
Eles dão o tom do momento reativo vivido pelo movimento, nascido na década de 1970 no Brasil, em defesa dos direitos das pessoas com sofrimento mental e visando o cuidado em liberdade.
Desde que foi aprovada em 2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica estruturou a política de saúde mental no Brasil com base no fechamento de leitos em hospitais psiquiátricos (também chamados de hospícios ou manicômios) e no desenvolvimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que oferece cuidados interdisciplinares, em liberdade e próximo da residência de quem recebe esses cuidados.
Reforma em risco
Mas desde 2011 e mais intensamente a partir de 2016, no entanto, a reforma psiquiátrica vem sofrendo uma série de ataques. Para a psiquiatra e psicóloga Miriam Abou-yd, integrante do Fórum Mineiro de Saúde Mental, da Frente Mineira Drogas e Direitos Humanos e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), se vive em 2022 “o momento mais difícil do SUS, da reforma psiquiátrica e da luta por uma sociedade sem manicômios”.
“Os Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) não recebem nenhum aumento de recursos financeiros desde 2011. E desde 2017 está em vigor uma portaria do Ministério da Saúde que, entre outros enormes retrocessos, interrompe o fechamento de hospitais psiquiátricos e lhes garante aumento financeiro”, explica Abou-yd.
Em sua visão, uma das formas mais consistentes com que o governo federal tem atacado a perspectiva antimanicomial é por meio da sua política de guerra às drogas.
“Houve um incremento nas contratações das Comunidades Terapêuticas e um aumento astronômico de investimentos nessas instituições, contra as quais há incontáveis denúncias de graves violações de direitos humanos”, destaca Miriam Abou-yd.
O que são Comunidades Terapêuticas?
Existentes no Brasil desde a década de 1960, as Comunidades Terapêuticas (CTs) são instituições privadas que oferecem internações para pessoas que fazem uso problemático de drogas. Em sua maioria, tem ligação com igrejas católicas ou evangélicas, se localizam em espaços afastados da cidade e pregam a abstinência.
A quantidade de entidades que se autodenominam Comunidades Terapêuticas não para de aumentar, em paralelo ao crescimento numérico, político e econômico das igrejas evangélicas no Brasil. Segundo a última pesquisa de abrangência nacional feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2017 havia cerca de duas mil CTs no país.
Uma série de pesquisas e inspeções trouxeram à tona denúncias de violações de direitos humanos praticadas em Comunidades Terapêuticas. Uma delas foi realizada em 2018 pelo Ministério Público Federal, o Conselho Federal de Psicologia e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
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Em todas as 28 unidades inspecionadas em 11 estados brasileiros, foram identificadas violações. Entre elas, a obrigatoriedade de execução de tarefas repetitivas, laborterapia, supressão de alimentação, privação de sono, alta medicalização, uso irregular de amarras, além de violência física. Em 16 delas foram constatadas práticas de castigo e punição aos internos.
“Comunidades terapêuticas são os atuais manicômios”
Entre 1990 e 2007, o escritor, editor e ativista Roque Júnior passou 387 dias internado em hospitais psiquiátricos, “sem contar uns dois anos do período pós internação. Aquele período que tem uma adaptação de medicamentos, de retorno à sociedade”, relata.
Atualmente usuário dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial, Júnior se cuida em liberdade e se tornou um ativista da luta antimanicomial. Autor de 65 livros publicados, ele faz parte do Fórum Gaúcho de Saúde Mental e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila).
“Comunidades terapêuticas são os atuais manicômios”, explica ele. “As pessoas ficam ali por seis meses, um ano, depois ficam um período na sociedade e retornam para essas CTs, muitas das quais impõem um trabalho praticamente escravo, para multiplicar seus prédios e ampliar as internações”, diz.
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Diretor-executivo da Desinstitute (ONG que atua pela garantia de direitos humanos e pelo cuidado em liberdade no campo da saúde mental, no Brasil e na América Latina), o psicólogo e psicanalista Lúcio Costa argumenta que “o cenário de desmonte da política de saúde mental comunitária se conecta com o avanço da guerra às drogas, porque, dentro desse projeto de sociedade, os sujeitos considerados não desejáveis precisam ser aprisionados, seja na esfera penal, seja na esfera cível”.
“Em nome do cuidado e da saúde pública, muitos direitos foram violados no Brasil ao longo da história”, sintetiza Costa.
Financiamento público de CTs
O investimento de verba do Sistema Único de Saúde (SUS) em Comunidades Terapêuticas começou em 2011, sob o governo de Dilma Rousseff (PT). Sem função bem definida, elas foram incluídas como parte da Rede de Atenção Psicossocial por meio da portaria 3.088 do Ministério da Saúde.
O financiamento público a essas entidades se tornou mais robusto em 2017, com Michel Temer (MDB) na presidência, recebendo valores ainda maiores depois que Jair Bolsonaro (PL) assumiu, em 2018.
Segundo estudo feito pela ONG Conectas Direitos Humanos e o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), entre 2017 e 2020 o investimento federal em Comunidades Terapêuticas chegou a R$ 560 milhões.
O auge foi durante os dois últimos anos pesquisados, 2019 e 2020, com cerca de R$ 105 milhões de recursos públicos direcionados a essas entidades privadas a cada ano.
“A tendência mais provável é que o investimento continue crescendo, especialmente por parte do governo federal, que faz do repasse às CTs o eixo principal de sua política de cuidado a quem faz uso problemático de drogas”, aponta o relatório.
Além disso, em 2021 foi aprovada a Lei Complementar 187. A partir daí, essas entidades passaram a ter o direito a imunidade tributária.
De acordo com a Conectas e o Cebrap, “não há clareza sobre o tipo de serviço contratado, sobre a composição de seu custo, dos seus insumos, dos produtos esperados e, principalmente, de seu impacto e de sua efetividade”. Ainda a respeito da eficácia dos tratamentos oferecidos pelas CTs, o relatório discorre que “as evidências são escassas e, enquanto política pública, inexistentes”.
A aposta no tratamento em liberdade
Usuário do sistema de saúde mental, Mário Moro é um dos entrevistados de um documento que será lançado em breve pelo Desinstitute, sob o nome Da saída do manicômio à vida na cidade: estratégias de gestão e de cuidado.
“Querem lucrar em cima da loucura e da abstinência dos usuários, porque imagine só o quanto não proporciona de lucro para essas instituições religiosas, que estão hoje gerenciando as Comunidades Terapêuticas?”, questiona Moro.
Apesar do momento difícil, Miriam Abou-yd ressalta que “a luta antimanicomial brasileira tem lastro, história, raiz, portanto, mesmo com enorme dificuldade, temos conseguido manter uma resistência ancorada nos serviços substitutivos que construímos e na força, também fragilizada mas viva, dos movimentos sociais e de seus parceiros da sociedade em geral”.
“E quem nos garante esta força”, complementa, “são as usuários e usuários da saúde mental que confiam em nós, que militam conosco, e que nunca nos deixarão esquecer da aposta vitoriosa do tratamento em liberdade”.
Edição: Rodrigo Durão Coelho