A cena chocante de Genivaldo Santos sendo torturado e morto por dois policiais rodoviários federais de Sergipe, dentro de uma câmara de gás improvisada dentro da viatura, tomou as redes sociais antes que o Brasil pudesse recuperar o fôlego diante da chacina cometida pela polícia no Rio de Janeiro, que matou ao menos 25 pessoas na Vila Cruzeiro na última terça-feira (24).
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Enquanto isso, em São Paulo, o território conhecido como Cracolândia, no bairro da Luz, tem ganhado grande visibilidade – de novo perto de período eleitoral - com sistemáticas operações das polícias Militar (PM), Civil e da Guarda Civil Metropolitana (GCM).
Agentes de segurança dando tiros contra uma multidão desarmada. Pessoas em situação de rua enroladas em cobertores (sob uma onda de frio polar) tendo de fugir da repressão policial por cima de telhados de casas. Um ato sob o mote “Vidas na Craco Importam” levantando um banner estampando o rosto de Raimundo Fonseca Júnior, um homem de 32 anos morto pela PM. Essas são algumas das cenas recentes que tiveram a região da chamada Cracolândia como palco.
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Em comum entre os eventos, não só o fato de todos terem em uma ponta agentes de segurança do Estado e, na outra, pessoas pobres e negras. Mas também por serem - sob uma variedade de alcunhas, como “abordagem de um suspeito” ou “operação contra traficantes” - expressões práticas da chamada guerra às drogas.
Abordando o que está acontecendo na Cracolândia em São Paulo, quais interesses o discurso da guerra às drogas busca mascarar nesse caso e sua relação com a política proibicionista de drogas, o Brasil de Fato conversou com Daniel Mello, integrante do coletivo A Craco Resiste, que atua na região desde 2012 contra a violência do Estado.
Brasil de Fato: O que exatamente está acontecendo na Cracolândia?
Daniel Mello: A continuidade de um processo que começou no início da pandemia. Já se vivia um desmonte dos serviços, mas duas semanas depois que a pandemia é decretada, o primeiro ato da Prefeitura de São Paulo é o fechamento do Atende. Esse era o último serviço existente dentro do fluxo [como é chamada a aglomeração de pessoas na Cracolândia] que oferecia pernoite, banheiro, torneira e alimentação.
Em seguida vem uma política agressiva de operações policiais diárias, principalmente com a GCM. A própria Craco Resiste faz uma denúncia muito consistente dessa violência. Nesse momento a gente grava o fluxo durante três meses com uma câmera de segurança.
As ações da GCM com bomba de gás e bala de borracha não eram uma reação a pessoas tacando pedra por exemplo, uma grande justificativa usada por eles. A gente mostra que às vezes a pessoa estava sentada no chão e o guarda vinha e tacava spray de pimenta, jogava bomba de surpresa.
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A partir daí o Ministério Público se movimenta com uma Ação Civil Pública, com o apoio da Defensoria Pública, para tentar parar essa violência que não tem nenhuma razão além da própria agressão.
Aí a Prefeitura e o governo do Estado mudam a estratégia. Começam a Operação Caronte com a Polícia Civil, que diz que está fazendo investigação e prendendo "os traficantes".
Fazem essas supostas ações de inteligência contra pessoas que atuam ali no fluxo, que é um pessoal que é o baixo do baixo do comércio de drogas. Não afeta nenhuma estrutura, não são pessoas que estão ficando ricas com drogas, não é nada disso.
Então se revestem desse discurso: "Agora não é mais truculência, é inteligência". Mas na verdade foi registrado, a Defensoria já denunciou, também são ações muito truculentas. Botam as pessoas às vezes oito horas sentadas no meio da praça sem poder sair para ir no banheiro, sem poder comer.
A guerra às drogas é usada historicamente para legitimar ações do Estado, que tem interesses que muitas vezes não têm nem a ver com as drogas em si. Especulação imobiliária, ocupação territorial, controle dos segmentos pobres e negros da população, etc. No caso da Cracolândia, quais os principais interesses por trás dessas ações, que o discurso da guerra às drogas busca mascarar?
Já se assumiu a violência como única política adotada na região. Vemos algo muito parecido com a chamada “Operação dor e sofrimento” aplicada ali em 2012 sob a gestão municipal do [Gilberto] Kassab.
Que você espalha as pessoas pela região em grupos, uma estratégia de tortura coletiva. As pessoas não podem ficar no mesmo lugar durante muito tempo. Não podem sentar, não conseguem receber alimentação de doação.
Tem uma intenção política do governador que, sem expressividade, tenta essa jogada desesperada para agradar certo público, porque encontra algum respaldo. Mas estão ostensivamente repetindo um fracasso.
Ao se manifestar na Ação Civil Pública, a Prefeitura indicou o perímetro da Cracolândia como tudo o que está entre a estação da República e da Luz. Ou seja, Santa Ifigênia, parte da República onde está a rua Guaianases e até a região da favela do Moinho. Então para eles, tudo isso é Cracolândia.
Isso quer dizer que toda essa região é alvo do que eles chamam de processo de "revitalização". Que é basicamente expulsar as pessoas que estão lá, derrubar tudo e entregar para grandes empresários do ramo imobiliário ganharem muito dinheiro.
Tem um terceiro elemento que é a GCM. Ela está sendo treinada de forma militar na Cracolândia. Criaram a Inspetoria de Operações Especiais (IOPE), que é uma tropa de choque da Guarda Metropolitana, que não deveria ter esse papel: ela não é polícia, deveria ser uma guarda mais patrimonial, cuidar do prédio da prefeitura, dos parques, das praças.
Esses guardas estão sendo treinados nessas táticas que chamam de dispersão, que é a agressão de multidão. E depois essa força vai ser expandida para outras partes da cidade. Um dos grandes alvos, por exemplo, são os bailes funk. Existe um conjunto de interesses aí que não têm nada a ver com o combate do crime.
Que paralelo é possível fazer entre o que vem acontecendo na Cracolândia em São Paulo e ações policiais como a que matou 25 pessoas na Vila Cruzeiro?
A primeira relação é legitimar coisas que seriam injustificáveis. Em que lugar do mundo a força do Estado mata 25 cidadãos e isso está tranquilo? Não escuto notícias dessas a menos que seja em lugares onde tem guerra civil.
Então é isso, agredir as pessoas no centro da cidade, implementar que as pessoas tenham que ser revistadas para passarem de um lado para o outro da rua duas vezes por dia: isso é tudo inaceitável e acontece na Cracolândia.
No Rio eu não estou tão próximo como em São Paulo, mas há interesses políticos político-eleitorais, de expandir espaço de atuação das milícias, ligadas à estrutura do Estado.
Além de ambas expressarem extermínios e agressões sistemáticas que tentam destruir as condições de vida da população negra no Brasil.
E sobre alternativas à via repressiva: como vocês acham interessante lidar com o uso abusivo de drogas? Ou, pensando na Cracolândia especificamente, que caminhos vocês acham interessantes para cuidar dessas pessoas e lidar com uma série de questões que atravessam a vida delas e que muitas vezes nem tem o crack como o principal problema, né?
É importante a gente entender a Cracolândia não necessariamente como um local de uso abusivo de drogas.
No Rio de Janeiro estão sendo mortos jovens de 15 a 25 anos. Esse jovem, por exemplo, que toma tiro da polícia, muitas vezes não tem acesso à educação, à saúde, à moradia.
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Então esse rapaz vai preso, por exemplo, passa anos na cadeia. Ele sai, muitas vezes a família esqueceu dele, não tem inserção no mercado de trabalho porque já está marcado como ex-presidiário, saúde está debilitada porque ficou anos numa masmorra. Qual lugar vai acolher ele? Ainda que ele não use crack? Lugares como a Cracolândia.
As pessoas que estão na Cracolândia sofreram múltiplas violações ao longo das suas vidas. Políticas para a Cracolândia? Moradia primeiro. Uso abusivo? Redução de danos. Legalização, testagem de substâncias, atendimento.
Aqui, como a gente está nesse deslocamento da política sob um governo de extrema direita, a gente vê como políticas de esquerda. Mas não são políticas de esquerda: são políticas pragmáticas. Não resolvem os problemas antecedentes. Não resolvem os problemas estruturais do capitalismo.
Então é isso, você coloca as pessoas numa situação mais confortável, vão ter a moradia delas, acesso à renda, à alimentação. É uma política pragmática. E nem isso a gente está conseguindo.
Edição: Rebeca Cavalcante