Uma semana turbulenta em termos políticos e econômicos para a Argentina. Por um lado, a dificuldade de restabelecer a economia e enfrentar a alta da pobreza. Por outro, a busca pelo cumprimento do programa de pagamentos da dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI), cujos termos se chocam com a soberania e a recuperação do país.
Nesse contexto, na segunda-feira (22), o salário mínimo da Argentina foi atualizado em relação à inflação. O Conselho do Salário Mínimo, Vital e Móvel da Argentina reuniu-se por cerca de sete horas na segunda-feira (22) para definir o novo piso salarial do país. Foi o segundo acordo tripartite do ano, conformado pelos setores empresariais, sindicais e governo.
A atualização salarial foi convocada pelo Executivo para rediscutir o ajuste de 45% já aplicado, mas diante da perda do valor do salário real em um contexto de inflação acumulada apenas neste ano em 46,2%, e com previsão de chegar até 90,2%, segundo cálculo do Banco Central.
O último reajuste do salário mínimo aconteceu em março, e foi parcelado até agosto, para o valor de 47.850 pesos argentinos (R$ 1.780).
Assim como nas atualizações anteriores, esta será gradual e aplicada em parcelas nos próximos três meses. Com o ajuste, o salário mínimo argentino será de AR$ 51.200 (R$ 1.903) em setembro; AR$ 54.550 (R$ 2.028) em outubro; e AR$ 57.900 (R$ 2.153) em novembro.
Os representantes sindicais não saíram satisfeitos da reunião. Buscavam um salário mínimo equivalente à cesta básica familiar, atualmente em 111.298 pesos (R$ 4.138). Por definição, a cesta básica alimentar determina o limite da linha da pobreza em relação ao acesso a nutrientes necessários para um adulto no intervalo de um mês; já a cesta básica total considera também os bens e serviços, com exceção do aluguel residencial.
O salário mínimo na Argentina serve de referência para cerca de 300 mil trabalhadores no país em condição de informalidade ou em atividades por fora de um acordo coletivo de trabalho.
O valor também é uma importante referência para auxílios sociais. É o caso do programa Potenciar Trabajo, que paga 50% do salário mínimo a trabalhadores da economia popular (tarefas de cuidado, reciclagem, manufaturas etc.), ou do programa Acompañar, que atende vítimas de violência de gênero com 100% do valor do salário mínimo no país.
No entanto, diante da resistência do setor empresarial, não houve consenso para que o reajuste fosse maior e conseguisse cobrir a inflação e o valor da cesta básica familiar.
"Os empregadores insistiram em uma correção de 59,9% interanual, muito distante da projeção de inflação que temos para este ano", pontua Daniel Jorajuria, da Central Autônoma de Trabalhadores da Argentina (CTAA), uma das organizações sindicais integrantes do Conselho do Salário Mínimo. "Pedimos 95% interanual, de fevereiro deste ano a março do ano que vem, mas, claro, as câmaras empresariais não aceitaram de forma alguma."
Desta forma, o governo apresentou a proposta final: 21% de correção de setembro a novembro e uma nova revisão do valor em três meses.
Assim, uma nova reunião do Conselho já está prevista para novembro. A antecipação revela a baixa perspectiva de melhora da crise inflacionária, aponta Esteban Marcioni, integrante da organização Frente Popular Darío Santillán.
"Incorporaram uma revisão para novembro, mas é um sinal de que vai haver mais inflação, um aprofundamento do desastre econômico que estamos vendo e mais impacto nas nossas vidas", pontua Marcioni, cuja organização fez parte das marchas contra a inflação nos últimos meses e dos protestos em forma de cortejo fúnebre para velar simbolicamente o salário mínimo, na capital federal.
"Quando falamos sobre inflação, estamos falando da maioria dos trabalhadores. Por isso, defendemos que deve ser um debate integral", afirma. "O que ganhamos esta semana [com o ajuste do salário mínimo] acaba sendo perdido em pouco tempo, e isso não tem nenhum sentido. Queremos estabelecer uma recuperação salarial, mas também um controle dos especuladores financeiros e as empresas geradoras de preços neste país, que têm o triplo da taxa de lucros na Argentina em relação aos seus países de origem", diz, mencionando o caso do supermercado Carrefour.
Com sede na França, a cadeia multinacional de supermercados aplicou, nesta semana, uma política similar à argentina Preços Cuidados, que consiste em congelar os preços de produtos de consumo básico por um determinado período de tempo. Na França, a cadeia anunciou que congelará cerca de 100 produtos até o dia 30 de novembro. A França registrou um aumento de 6,8% de inflação em julho.
Esteban Marcioni também alerta para as medidas do próprio governo argentino que afetam os salários. Na terça-feira (23), o novo ministro da Economia, Sergio Massa, anunciou cortes no gasto público, o que afetou auxílios sociais importantes. O anúncio busca atender às políticas do FMI e, para cumprir com os pagamentos da dívida bilionária (US$44,5 bi), recorrerá novamente à instituição financeira: Massa solicitará US$ 1,3 bilhão ao FMI para incrementar as reservas em dólares do Banco Central.
Se aprovado, o recurso virá de um Fundo de Resiliência e Sustentabilidade, criado pelo FMI em abril especificamente para países de renda média em situação de crise, como a Argentina.
"Em um contexto em que o Banco Central ficou quase sem reservas, o governo tem buscado reforçá-las negociando com os setores do poder: os grandes exportadores, o setor da mineração, cerealíferos – que retêm as exportações para especular com o dólar e tiram recursos do país", pontua Héctor Amichetti, da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), também integrante do Conselho do Salário Mínimo.
"Como trabalhadores, não deixamos de reconhecer a necessidade de acomodar questões macroeconômicas, mas deve-se atender às urgências da população", conclui.
A inflação como mecanismo
A variação mensal da inflação de julho foi de 7,4%, a mais alta dos últimos 20 anos. A cifra é superada historicamente apenas pela inflação de abril de 2002, quando o país registrou 10,4% de aumento de preços.
A crise na Argentina ainda tem mais um elemento: a investida do judiciário contra a vice-presidenta Cristina Kirchner. Diego Luciani, promotor do Ministério Público Fiscal, solicitou 12 anos de prisão à Cristina. O processo é denunciado no país como parte do projeto de lawfare.
A forte crise econômica também é vista como parte do mesmo esquema: críticos afirmam que o país foi condicionado ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e, consequentemente aos Estados Unidos, durante o governo de Mauricio Macri (2016-2019). A Argentina enfrenta, portanto, uma batalha constante com o setor econômico e agroexportador e suas especulações financeiras em prol do lucro em moeda estrangeira, pressionando os preços internos e o custo de vida da população.
Em um vídeo transmitido de seu gabinete sob o título "Direito à defesa" (após ter seu pedido de defesa negado pelos juízes), Cristina respondeu à promotoria: "Pedem 12 anos pelos 12 melhores anos que os argentinos tiveram em décadas", disse, referindo-se aos anos de governo de seu falecido marido, Néstor Kirchner, e aos próprios. Enumerou, entre outros aspectos que caracterizaram seu governo, a saída do país do FMI.
E, agora que o governo busca um novo empréstimo com a instituição, e mesmo que em uma escala muito menor, isso pode ser justamente mais uma marcada distância entre a corrente kirchnerista e a albertista no atual governo. A coalizão peronista que governa a Argentina, (Frente de Todos), vive um desentendimento permanente entre suas diferentes correntes políticas, e essa situação tem sido explorada pela direita, especialmente no Brasil. A narrativa que predomina é a do fantasma do comunismo.
"Os formadores de preços e os grupos concentrados da economia impulsionam cada vez mais o aumento dos preços, especulando com os valores do dólar", afirma Daniel Jorajuria. "Por outro lado, vemos um forte avanço da justiça com o lawfare. Vimos o mesmo no Brasil, no Equador, no Paraguai, e sabemos o que significa a reforma trabalhista e o congelamento da administração pública e dos salários", afirma. "Eles não miram a Cristina, miram a nós."
Segundo Héctor Amichetti, quem melhor explicitou este cenário foi o próprio embaixador dos Estados Unidos na Argentina, Marc Stanley. Durante encontro com empresários na 19ª reunião do Conselho das Américas, em Buenos Aires, no último dia 19, Stanley convocou a direita a formar uma coalizão "para salvar o país". "Não esperem as eleições de 2023", disse Stanley, na ocasião.
"Ele propôs uma coalizão entre setores que estariam dispostos a receber 'uma mão' dos EUA com infraestrutura para explorar enormes recursos, como lítio, petróleo, gás e alimentos", afirma. "É evidente que, ao propor esta coalizão, excluí representações populares, como Cristina Kirchner. E, para isso, utiliza o mecanismo do lawfare para tirá-la do cenário político com um processo que é, na verdade, um show midiático sustentado pela mídia corporativa."
Edição: Thales Schmidt