Há fatos que são capazes de revelar um conjunto intrincado e complexo de relações, várias vezes maiores do que a si próprio. Implicam na revelação de condicionantes e variáveis que permaneciam nebulosas e indecifráveis até que um fato, tal qual a descoberta de um arquivo histórico, relaciona outros entre si e torna compreensível toda a dimensão envolvida.
Este foi o caso, por exemplo, do atentado do Rio Centro em 30 de abril de 1981. O revés do ato, cuja intenção era evitar o desmoronamento da ditadura militar, permitiu à sociedade brasileira tomar conhecimento da atuação de setores da repressão e suas intenções. A explosão revelou a intrincada luta política no interior da ditadura e, como explica João Roberto Martins Filho - no livro O Palácio e a Caserna: a dinâmica militar das crises políticas na ditadura (1964 – 1969) -, a forma como seus aparatos repressivos se movimentavam, a luta pelos rumos do regime e a dinâmica de rupturas que conformou a existência e o declínio do regime autoritário.
A emboscada que matou Marielle Franco e Anderson Gomes, em 14 de março de 2018, é outro desses fatos impactantes. Os assassinatos revelaram a intrincada relação das milícias e do crime organizado com a política, as polícias e a economia do dia a dia das comunidades de trabalhadores. A vereadora Marielle Franco foi condenada à morte pelo crime organizado exatamente porque utilizou as relações da política para por luzes sobre esse mundo e investir contra o crime organizado protegido pelo do Estado.
Os brutais assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira, neste junho de 2022, revelaram muito mais que a violência local em uma terra de leis privadas no interior da Amazônia brasileira. Bruno, acompanhado de Dom, investia contra uma rede de crimes e organizações criminosas que, ao arrepio da lei e da Constituição, exploram os recursos naturais da Amazônia, como o garimpo e a pesca ilegal.
Os assassinatos repercutiram na imprensa mundial e, com isto, esta pauta se impôs à mídia empresarial brasileira. Conforme repercutiam internacionalmente as denúncias das organizações indígenas, de direitos humanos e intelectuais em defesa dos povos originários e a política do governo Bolsonaro para a Amazônia foram sendo reveladas e expostas.
Bruno Pereira, um indigenista servidor de carreira da Funai, se afastou do órgão após ser demitido e, portanto, punido por combater o garimpo ilegal. Seu cargo, relacionado à defesa dos povos isolados, foi ocupado por um religioso interessado em “evangelizar” os indígenas e não os defender.
A claudicância da Funai, das forças policiais e das forças armadas em realizar as buscas pelos então desaparecidos, somada às declarações dúbias do presidente Jair Bolsonaro, se entrelaçaram com as denúncias das organizações indígenas sobre a presença nada discreta e industrial do crime organizado no interior da terra indígena.
Enganam-se os que acham que o Estado brasileiro é ausente da Amazônia. Ao contrário, o Estado brasileiro é presente e ativo. São bilhões de reais do orçamento público investidos em pessoal e equipamento militar e policial na região. O que ocorre é que o Estado está presente para proteger o crime organizado e o esbulho das riquezas amazônicas.
O intrincado mecanismo de relações entre agentes da exploração e os agentes do Estado foi exposto a partir da repercussão deste crime violento e brutal. Explicações frágeis, conclusões precipitadas, pressa em afastar as hipóteses de existência de mandantes poderosos, se somaram ao barulhento silêncio das forças armadas, estacionadas na região com meios modernos e suficientes para exercer seu papel de defesa da soberania e dos direitos fundamentais das populações amazônicas.
O cínico imobilismo do Estado para exercer a lei e combater o crime organizado contrasta com a conduta ativa do comando das forças armadas no questionamento às eleições presidenciais. Um desvio de função inaceitável para, ao menos, quem defende a Constituição Federal.
Assim como o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, por tortura sob custódia do Estado em 25 de outubro de 1975, repercutiu mundo afora e aprofundou o isolamento político da ditadura militar de 64, os assassinatos de Bruno e Dom expuseram a dimensão anticivilizatória e reacionária do governo Bolsonaro. E podem ter sido a pá de cal para suas possibilidades de continuidade.
*Sociólogo, Mestre e doutorando em Ciência Política. Diretor Executivo da Democracia e Direitos Fundamentais., Jorge Branco é colunista do Brasil de Fato RS
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
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Edição: Marcelo Ferreira