Incomoda-me ouvir recriminações ao Exército por sua “inoperância” no caso dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips no Vale do Javari. Isso é assunto de polícia, não de militares. Há mil motivos para repudiar o Exército, não esse.
Custear o Exército para que atue na segurança pública é jogar dinheiro fora e expor a cidadania à truculência.
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Exércitos devem servir para dissuadir ou abater agressores estrangeiros; preparar-se para lidar com inimigos, não para disciplinar cidadãos e perseguir criminosos. Excepcionalmente acodem a sociedade em calamidades extremas.
O Constituinte vergou quando admitiu que as Forças Armadas atuassem para garantir a Lei e a Ordem. Lula errou ao sancionar, em 2004, a Lei Complementar que garantiu poder de polícia às Forças Armadas na faixa de fronteira. Agravou o distúrbio de personalidade das fileiras e deixou de fazer o necessário para preparar a segurança pública nas áreas remotas.
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Nas diretrizes da frente partidária que o apoia, lançadas esta semana, não vi nada a esse respeito.
Até quando o Exército será confundido com polícia de fronteira? Persistindo tal confusão, os problemas serão agravados.
O envolvimento de militares em assuntos de segurança pública resulta em desastre, notadamente tratando-se de casos que envolvam os povos originários. Oficiais aprendem desde a juventude que índio é estorvo e que seus protetores e ambientalistas são inimigos da pátria a soldo do interesse estrangeiro. Repetem essa ladainha de formas variadas. Uma delas afirma que há muita terra para pouco índio.
Também fico intrigado com as reclamações diante do fato de o ocupante da cadeira presidencial não manifestar solidariedade com os familiares de Bruno e Dom. O homem já provou não se comover com a dor alheia e mostrou incapacidade de se comportar como chefe de Estado. Seus eleitores sabiam disso. Não esqueço de como silenciou na morte de Nelson Freire enquanto o presidente francês mandava condolências ao povo brasileiro pela perda de seu gênio.
Na tragédia de Bruno e Dom, se este indivíduo expressasse sentimento, seria de alegria: dois inimigos abatidos! O sujeito se formou em escolas militares, cabe lembrar.
Para os democratas, está difícil cair a ficha sobre a função que cabe aos braços armados do Estado. Ao reclamar o envolvimento do Exército em atividades policiais, os brasileiros reconhecem inadvertidamente legitimidade no desvio da missão militar. De quebra, agradam os comandantes, oferecendo-lhes pretexto adicional para pedir ampliação de orçamento.
Passa da hora de compreender que a sociedade mantém corporações militares para dissuadir estrangeiro hostil, não para atuar como polícia.
Alguns imaginam que a dissuasão possa ocorrer com a presença na fronteira. Ledo engano. Vigiar fronteira em tempo de paz é tarefa para polícia especializada. O mesmo quanto à defesa de reservas florestais.
Quem vigia fronteira, coibi desmatamento, persegue bandidos e garante a lei e ordem não pode se preparar para guerrear. As tarefas são incompatíveis. Quando os militares as assumem sofregamente, prejudicam a construção da segurança pública de que precisamos e fracassam como força dissuasiva.
Precisamos de Exército que detenha armas próprias, capazes de sustentar uma política externa altiva e ativa, como disse Celso Amorim. Exército equipado por fábricas estrangeiras não presta para defender o Brasil.
Pagamos caro para não termos defesa militar e vivermos sobressaltados com ameaças à democracia.
*Manuel Domingos Neto é doutor em História pela Universidade de Paris, é ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e foi vice-presidente do CNPq.
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo