Rússia e EUA

Tropas russas na Nicarágua: uma resposta às intervenções dos EUA?

A Nicarágua dá luz verde para a presença de tropas russas em seu território e decisão desagrada aos EUA

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |

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Tropas russas participam de exercícios militares no Quirguistão, em setembro de 2018. - Vyacheslav Oseledko / AFP

Após pedido feito pelo presidente Daniel Ortega, o parlamento da Nicarágua decidiu em 14 de junho renovar a autorização para que tropas da Rússia participem de exercícios militares conjuntos no país. O decreto também prevê a participação dos EUA, entre outros países, mas a medida desagradou a administração norte-americana.

O chefe da diplomacia dos EUA para a América Latina, Brian Nichols, afirmou na semana passada que convidar os russos para a Nicarágua era uma "provocação perigosa", mesmo para exercícios humanitários.

A medida também foi tomada depois que o presidente dos EUA, Joe Biden, se recusou a convidar Daniel Ortega para a Cúpula das Américas, realizada entre 6 e 10 de junho em  Los Angeles. Durante o evento, o secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken, questionou os motivos do líder nicaraguense dar acesso às tropas russas ao país. Na mesma semana, os EUA adotaram sanções contra Ortega.

O professor de Relações Internacionais da Universidade de São Petersburgo, Victor Jeifets, em entrevista ao Brasil de Fato, destacou que a autorização da Nicarágua diz respeito a uma permanência temporária de tropas estrangeiras e não a uma instalação de bases militares de outro país. Segundo ele, essa autorização já estava em vigor antes, mas "a questão é que as autoridades nicaraguenses escolheram um momento peculiar para afirmar a sua posição em relação à Rússia".

"Isso é mais uma espécie de motivo que ele (Ortega) tem para provocar os EUA, sobretudo no contexto da Cúpula das Américas, para a qual a Nicarágua não foi convidada, do que criar alguma base militar. Eu acho que Moscou, em primeiro lugar, não vai instalar nenhuma base militar na Nicarágua", opinou o pesquisador.  

Segundo o analista, uma real presença de uma base militar russa na América Central seria uma espécie "linha vermelha que Washington talvez não fosse suportar, e Moscou entende isso perfeitamente".

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Victor Jeifets lembra que as autoridades do Ministério da Defesa ou do Ministério das Relações Exteriores da Rússia assumem uma posição semelhante a que adotaram em janeiro deste ano, quando a diplomacia russa afirmou que Moscou poderia implantar infraestrutura militar em Cuba e na Venezuela, caso suas exigências frente à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) não fossem cumpridas: "eles não negam, nem confirmam".

Para o professor de Relações Internacionais, seria uma forma de Moscou mostrar que se os militares dos EUA "podem participar como voluntários em um conflito militar no território da Ucrânia, os militares russos também podem aparecer" nas proximidades dos EUA.

Se as autoridades de alto escalão do Kremlin não fizeram comentários elevando a tensão sobre uma possível escalada de presença militar na América Latina, a provocação foi captada pela mídia estatal do país que, em seus programas de opinião, apresenta diariamente a defesa das ações da Rússia na Ucrânia.

"Se os sistemas de mísseis americanos no território ucraniano estão a apenas uma pequena distância de atingir Moscou, então é hora de a Rússia implantar algo pesado mais perto da 'cidade americana na colina' (Washington)", disse a apresentadora do principal canal de TV estatal Rossiya 1, Olga Skabeeva.

A notícia também provocou uma reação negativa para a Costa Rica, vizinha ao sul da Nicarágua, que não tem suas próprias forças armadas desde 1948.

"É claro que a Costa Rica, como um país pacífico que tomou a decisão histórica de não ter um exército, fica preocupada quando um vizinho do outro lado da fronteira começa a reunir forças militares", disse o presidente costa-riquenho Rodrigo Chávez.

Na última terça-feira (21), o ministro das Relações Exteriores da Nicarágua, Denis Moncada, classificou como "elucubração infundada" a afirmação de que a autorização de rotina para a entrada de tropas russas em seu país visa a instalação de bases militares estrangeiras no contexto da guerra na Ucrânia.

"São elucubrações sem razão, sem fundamento, porque até nossa Constituição estabelece que bases militares estrangeiras não são permitidas na Nicarágua", declarou o chanceler em entrevista ao canal russo RT.

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Para Victor Jeifets, a Rússia não irá atrás da ideia de promover a instalação de bases militares na América Latina, pois parte do pressuposto de que "essa ideia não será muito bem recebida em muitos dos países da América Latina".

"Muitos governos latino-americanos, inclusive governos de esquerda que se relacionavam e se relacionam mais favoravelmente com a Rússia, adotaram e adotam uma grande dose de ceticismo em relação às ações da Rússia, em particular com as questões ligadas ao cumprimento do direito internacional e do não uso da força", afirmou.

Guerra na Ucrânia mudou estratégia de Rússia para América Latina?

O presidente russo, Vladimir Putin, participou nesta quarta-feira (22) do Business Fórum do Brics, evento preparatório para a cúpula dos países emergentes, que acontece na quinta-feira (23).

Em seu pronunciamento, Putin declarou que, no contexto das sanções econômicas aplicadas pelo Ocidente, a Rússia está ativamente engajada na "reorientação dos fluxos econômicos para parceiros confiáveis, em primeiro lugar, os Brics".

O professor de Relações Internacionais da Universidade de São Petersburgo destacou que após passar por um período de relevância reduzida, o grupo Brics ganha mais importância agora, considerando a plataforma russa de defender uma maior multipolaridade no mundo.

Ele destaca, no entanto, que, no contexto da guerra na Ucrânia, a Rússia não contará com nenhum grande alinhamento político nos Brics ou na América Latina, mas o que importa mais para Moscou nesse momento é o estreitamento de laços econômicos.  

"Para a Rússia não é o apoio político que é mais importante, mas que os países não se juntem às sanções", completou.

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Para o pesquisador, Moscou buscou promover na América Latina os esforços conjuntos pela construção de um mundo multipolar, policêntrico, baseado no princípios do direito internacional, respeito aos institutos das Nações Unidas e outras organizações internacionais. Mas com o início da guerra, esta retórica teria ficado mais frágil. 

"Depois de 24 de fevereiro de 2022, ficou significativamente mais difícil usar esse conjunto de teses. A Rússia pode falar sobre o direito internacional e um mundo multipolar, mas nem todos os países latino-americanos que defendem um mundo multipolar estão dispostos a acreditar nestas teses propostas pela Federação Russa hoje", acrescenta. 

Em contrapartida, o especialista nas relações entre a América Latina e Moscou destaca que a estratégia russa lida com isso de maneira "muito tranquila", considerando que nenhum país latino-americano entrou na lista de países hostis à Rússia, nem mesmo os países que não apoiaram a Rússia no início do conflito na Ucrânia.

De acordo com Jeifets, "Moscou parte do princípio de que na América Latina, em geral, o nível de entendimento das ações da Rússia é mais alto e o nível de reações negativas às ações da Rússia é mais baixo". A partir disso, a política para a região seria "entender que existem diferentes pontos de vista e eles são respeitados", completa. 

Edição: Arturo Hartmann