Mais três pessoas no Brasil podem cultivar maconha para produzir seu próprio remédio sem o risco de serem presas. Nesta terça-feira (14), a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu a elas um salvo-conduto, ao concluir de forma unânime que a produção artesanal do óleo à base da planta não representa uma lesão à saúde pública – aliás, pelo contrário.
Enquanto não se altera o modelo proibicionista no Brasil, amparado na Lei de Drogas (11.343/2006), cresce o número de pessoas que buscam a via judicial para evitar serem reprimidas pelo uso do que lhes serve de remédio.
No país, atualmente, aproximadamente 400 decisões na Justiça respaldam que pessoas ou associações plantem maconha para fins terapêuticos. Outras cerca de 200 ações obrigam o Estado a custear a compra de medicamentos à base de cannabis. O levantamento, que só não é mais preciso por muitos processos correrem em segredo de Justiça, é da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas.
A decisão do STJ
Os casos apreciados nesta terça (14) e relatados pelos ministros Rogerio Schietti Cruz e Sebastião Reis Júnior, dizem respeito a três pessoas que já tinham autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para usar canabidiol (CBD, um princípio ativo da maconha). Mas a única opção legal para eles, até então, era comprar a substância importada. O preço médio do produto vendido pela indústria farmacêutica e vindo do exterior varia entre R$ 300 e R$ 3.000.
“Hoje ainda temos uma negativa do Estado brasileiro, quer pela Anvisa, quer pelo Ministério da Saúde, em regulamentar essa questão”, afirmou Schietti durante a sessão. “E assim milhares de famílias brasileiras ficam à mercê da omissão, inércia e desprezo estatal”, criticou. Para o magistrado, o discurso contrário ao cultivo é “moralista” e muitas vezes baseado em “dogmas”, “estigmas” e “falsas verdades”.
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Gabriella Arima, diretora da Rede Reforma e uma das profissionais que advogou em nome de dois dos três pacientes, explica que a novidade da decisão está no reconhecimento do STJ de que o habeas corpus – “ação que tem o objetivo de proteger a liberdade dos cidadãos” – serve para esse tema.
“Uma das maiores instâncias de Justiça do país reconheceu que pessoas são presas por cultivarem e usarem maconha para fins medicinais”, avalia Arima. “Isso é um fato. Não à toa o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo e a maior parte das pessoas responde por tráfico de drogas”, complementa.
Além disso, em situação pouco comum, neste caso tanto o Ministério Público Federal quanto a Defensoria Pública manifestaram a mesma opinião, favorável ao salvo-conduto.
A decisão não significa que a partir de agora todos os casos similares serão julgados da mesma forma. Mas abre um precedente, podendo orientar a interpretação de outros magistrados.
Duas das pessoas beneficiadas pelo julgamento do STJ usam cannabis sativa para tratar de ansiedade, insônia e outras enfermidades, e outra para amenizar sequelas do tratamento de câncer.
Ampla produção científica evidencia que a maconha pode ser benéfica para o tratamento de epilepsia, autismo, glaucoma, doença de Alzheimer, Mal de Parkinson, fibromialgia, ansiedade, esclerose múltipla, transtorno de estresse pós-traumático, distúrbios de sono, efeitos da quimioterapia, entre outros.
Quem pode usar maconha de forma legal no Brasil?
A venda e o uso recreativo ou religioso da planta são considerados crimes no país. Mas os que aderem à maconha para fins terapêuticos encontram algumas brechas, mesmo sob o paradigma repressivo em vigor.
Em 2015, a Anvisa aprovou pela primeira vez um medicamento à base de cannabis para o tratamento de epilepsia em crianças. De 2019 para cá, outros 18 produtos já foram aprovados pelo órgão, em uma categoria que permite a importação dos fármacos.
O alto preço e a burocracia fazem com que, na prática, remédios à base de maconha no Brasil já estejam legalizados – para quem tem dinheiro.
Entre 2020 e 2021, os pedidos para importação desses produtos cresceram 110%, passando de 19.150 para 40.191 solicitações de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Canabinóides (BRCANN).
Basicamente existem três vias para, no Brasil, usar maconha para fins terapêuticos de forma legal. A primeira é, com prescrição médica e autorização da Anvisa, pagar caro pelo produto farmacêutico.
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A segunda é a judicialização. Caso funcione, esse caminho pode viabilizar o custeio público do remédio ou a possibilidade de cultivar a planta sem ser preso (por meio do habeas corpus ou da autorização judicial, que acontece na esfera cível).
Por último, é possível fazer parte de uma associação de cultivo. Lenta e pontualmente algumas dessas cooperativas têm conseguido, também pela via judicial, funcionar de forma legalizada.
Atualmente, são quatro as que estão nessa condição: a Associação Brasileira Cannabis Esperança (Abrace) na Paraíba; a Associação de Apoio à Pesquisa e à Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) no Rio de Janeiro; a Cultive (Associação de Cannabis e Saúde) e a Flor da Vida, ambas em São Paulo.
A luta pelo fim da guerra às drogas
O julgamento do STJ acontece três dias depois de a Marcha da Maconha, sob o mote “Primavera antifascista – guerra é genocida, legalização é vida”, levar uma multidão às ruas de São Paulo pelo fim da guerra às drogas. De acordo com os organizadores, 100 mil pessoas compareceram à manifestação.
Em 2022, pela primeira vez desde o início da pandemia de covid-19, as Marchas da Maconha – atos de desobediência civil em massa pela legalização – voltaram a acontecer em dezenas de cidades pelo país.
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“É chegado o momento de questionar nossos preconceitos, tabus, e fazer esse debate de uma forma madura, científica, sem moralismos”, opina a diretora da Rede Reforma.
“Senão vamos continuar vivendo essa dicotomia: enquanto poucos têm acesso a um tratamento, muitos ficam negligenciados”, avalia Arima, ao completar: “E milhares de outros seguem sendo internados involuntariamente, encarcerados e mortos pela guerra às drogas nas quebradas pelo Brasil”.
Edição: Glauco Faria