Nos últimos anos, o Brasil viu a compra de armas de fogo aumentar consideravelmente e essa dinâmica vem alimentando a criminalidade. "É uma política irresponsável", na avaliação de Natalia Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz.
Um levantamento feito no Espírito Santo, por exemplo, revela que pelo menos 30% dos armamentos usados em crimes e apreendidos entre 2018 e 2019 têm registro no Sistema Nacional de Armas da Polícia Federal (SINARM).
Os dados, divulgados pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Espírito Santo em parceria com o Instituto Sou da Paz, não chegam a surpreender. Estudos realizados entre 2013 e 2018 apontam que em estados como Goiás e São Paulo o índice de armas registradas e que acabam em uso para crimes é de 40%.
"Existe um senso comum no Brasil de que as armas são todas raspadas, têm numeração suprimida, é impossível rastrear e não há o que fazer", afirma Pollachi. Os dados, porém, não confirmam essa percepção.
"Entre as armas de fogo apreendidas, cerca de 50% delas têm a numeração de série preservada. Essa informação é importante, porque nos indica que sim, há bastante informação para que a gente faça um rastreamento das origens", ressalta.
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A avaliação realizada no Espírito Santo mostrou ainda que, em um quarto dos casos, os donos legais das armas moram no próprio estado e mais da metade deles adquiriram as armas sob a justificativa de defesa pessoal.
De acordo números levantados pelo Instituto Sou da Paz, o registro de armas no Brasil quase triplicou entre 2019 e 2021. Foram mais de 150 mil novos armamentos autorizados por ano. O número representa aumento de mais de 220% em relação ao triênio anterior
Somente entre janeiro e novembro do ano passado, houve quase 190 mil registros, maior montante dos últimos 13 anos. Uma parte significativa dos equipamentos é adquirida sob a justificativa de aumentar a segurança pessoal.
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Leia os principais pontos da entrevista abaixo ou ouça na íntegra no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.
O desvio das armas legais
"Esse estudo feito em parceria com a Secretaria de Segurança do Espírito Santo foi muito importante. Ele atualiza algumas análises que o Instituto Sou da Paz já fez em anos anteriores em outros estados e mostra para nós que existe uma realidade que se mantém presente no Brasil. Entre as armas de fogo apreendidas, cerca de 50% delas têm a numeração de série preservada, que é aquele número único que permite rastrear a origem dessa arma de fogo.
Essa é uma informação importante porque temos um senso comum no Brasil de que as armas são todas raspadas, têm numeração suprimida, é impossível rastrear e não há o que fazer. Essa informação nos indica que sim, há bastante informação para que a gente faça um rastreamento e uma investigação da sua origem.
A segunda questão é que, das armas rastreadas, em 30% encontramos um proprietário legal anterior à apreensão. Importante dizer que na verdade encontramos pelo menos 30%. Porque hoje, no Brasil, os registros de armas de fogo são separados em dois bancos de dados completamente apartados. Um banco de dados da Polícia Federal, que tem as armas de pessoas que têm registro para defesa pessoal e de instituições públicas civis, e temos outro banco de dados, que pertence ao exércitos, onde estão cadastradas as armas de militares e as armas dos chamados CACs, caçadores, atiradores e colecionadores.
Nessa pesquisa da secretaria, eles só conseguiram acessar o banco da Polícia Federal. Não conseguimos consultar as armas de CACs e sabemos que essa é a categoria que mais cresceu nos últimos anos, porque foi a categoria mais beneficiada pelas flexibilizações das regras de acesso a arma de fogo. Então, dizemos que encontramos pelo menos 30%. Acreditamos que se tivéssemos conseguido consultar esse outro banco, esse número seria ainda maior.
Isso também nos indica que essa conexão entre o mercado legal e o mercado ilegal de armas é muito mais fluida do que a maioria das pessoas pensa. Quando olhamos mesmo o perfil de armas de fogo apreendidas no Brasil, no geral, 70% são de fabricação nacional. São dinâmicas domésticas e nacionais. No Espírito Santo identificamos que, das armas com registro encontrado, 40% tinham registro no próprio Espírito Santo.
Não são dinâmicas muito complexas. Muitas vezes temos aquele imaginário de que a arma vem de fronteiras, com esquemas super elaborados. Claro que isso existe, é um problema sério que precisa ser cuidado, mas há dinâmicas locais que é possível combater com uso de inteligência e articulação das polícias.
Nessa amostra específica nós não olhamos as dinâmicas de desvio. Mas fizemos outra análise com a Secretaria de Segurança do Espírito Santo, olhando para todos os boletins de ocorrência de armas registradas como furtadas e roubadas durante 30 meses. Achamos mais de 500 armas com esse tipo de registro. No estado de São Paulo, fizemos uma pesquisa olhando para um período mais extenso e identificamos que, todos os dias, em média nove armas de fogo são registradas como furtadas ou roubadas. Existe um grande fluxo de armas que são compradas legalmente."
O mito da proteção pessoal
"Muitas vezes a pessoa está até bem intencionada, com medo de uma situação, querendo se proteger ou proteger a família. Mas o que sempre destacamos de forma mais geral sobre essa política atual de incentivo às armas de fogo é que as pessoas acham que vão conseguir reagir a um crime. Mas a chance de algo dar errado é muito maior do que a chance de essa pessoa específica ser vítima de um crime, estar com uma arma a mão e reagir de uma forma que não agrave a situação.
É muito mais provável que essa pessoa, ao tentar reagir, agrave um crime. O que era para ser um roubo de celular, acaba se tornando um latrocínio, essa pessoa acaba morrendo ou ela acaba atingindo terceiros.
Essa arma pode acabar sendo utilizada em uma briga de vizinhos, em um feminicídio, em um suicídio. A chance de algo dar errado é muito maior que a chance de essa arma ser utilizada com a intenção, digamos, de boa fé de quem comprou. A gente percebe as dinâmicas tanto de roubo e furto como da própria pessoa que comprou a arma acabar utilizando em um momento de descontrole."
Os risco das políticas de liberação
"Nós vemos esse tipo de política com muita preocupação. Esse incentivo à arma de fogo é uma falsa promessa. As pessoas muitas vezes estão com medo e nós validamos esse sentimento. Nós sabemos que a segurança pública não está bem no país. Entendemos que as pessoas querem uma solução e estão angustiadas. Mas, de fato, a arma de fogo é uma falsa promessa. É uma promessa muito fácil de a pessoa se sentir contemplada: 'você está inseguro? Toma aqui a sua arma de fogo e se vira com ela na rua'.
Nós sabemos que isso não é eficiente. Mesmo entre policiais, quando olhamos os casos de vitimização de policiais, no geral, eles morrem nas folgas muito mais do que em serviço. Quando na folga eles estão armados, são vítimas de algum crime, tentam reagir e não conseguem. As pessoas subestimam esses três segundos que a pessoa que está cometendo o crime tem de vantagem sobre você com esse elemento surpresa. Até você alcançar e entender o que está acontecendo, já foi, se a pessoa também estiver armada, ela já disparou.
É falsa promessa e uma promessa muito fácil, porque ela transfere a responsabilidade da polícia e do governo para o cidadão. O que acreditamos é que existem políticas de segurança pública que podem ser mais eficientes e muito mais seguras para o policial e para a população.
Isso é o que tentamos estimular nesse projeto no Espírito Santo, com essa metodologia de análise de dados e de busca ativa das armas que estão caindo no mercado ilegal. Essa metodologia gerou uma operação policial em fevereiro em que os policiais identificaram mais de 15 pessoas que estavam comprando armas legalmente e já não estavam em posse dessas armas. Todas tinham sumido ou sido furtadas. Agora haverá a investigação, mas há boas chances de que estavam comprando como laranjas para repassar para outras pessoas.
Esse tipo de operação é possível de ser feita. Tem um impacto muito grande em prevenir e combater a violência armada e são operações mais seguras."
O Brasil cada vez mais armado
"Quando olhamos para as armas nas mãos de particulares, que não são da polícia, das forças armadas ou de uma empresa, esse arsenal privado quase dobrou de tamanhos nos últimos três ou quatro anos.
É um aumento muito significativo e aqui tem dois elementos muito importantes. Um é que de fato há esse discurso. Nós vemos na boca de muitas figuras públicas e do próprio presidente da República esse incentivo para que as pessoas busquem isso como se fosse solução para a segurança pública. Isso tem um efeito muito importante entre as pessoas.
Ao mesmo tempo, temos visto pesquisas recorrentes que mostram que esse apoio à facilitação do porte de armas tem adesão de 30% da população. Ainda é uma minoria. É importante dizer isso, porque podemos ter a sensação de que é uma demanda do povo. Não é. É uma minoria, mas é uma minoria bastante organizada e barulhenta e que está tendo seus desejos atendidos.
Essa é a segunda questão, de fato tivemos uma facilitação normativa. Não tanto via legislação ainda, há vários projetos de lei tramitando nesse sentido, mas muitas facilitações via decreto. Hoje, no Brasil, um atirador desportivo consegue comprar 60 armas de fogo para uma única pessoa. É um número que consideramos completamente obsceno. Nem um atirador olímpico precisa de 60 armas.
Hoje, atiradores desportivos conseguem comprar até fuzis, o que antes não era permitido. Nós vemos isso com muita preocupação."
Os riscos do descontrole
"Já há descontrole vigente por meio de projetos e portarias. Há outros projetos de lei. Por exemplo, há um projeto tramitando na CCJ do Senado que visa facilitar ainda mais pela via legislativa, com mais força do que os decretos.
São projetos que, mesmo que sejam aprovados por curto período de tempo, têm um impacto muito grande ao longo do tempo. As armas compradas agora vão ficar funcionais no mercado por pelo menos 50 anos. Até hoje no Brasil nós apreendemos armas das décadas de 1950 e 1960.
É uma política irresponsável. Todos os estudos acadêmicos nos indicam isso. Na nossa realidade de Brasil, alta desigualdade econômica, crescentes tensões sociais e esse discurso cada vez mais associado a um discurso político.
A justificativa, muitas vezes, nem é mais segurança pública, mas exercer um direito político. Uma coisa muito nebulosa de querer colocar essa arma dentro da política. Vamos com muita preocupação porque os danos vão se estender por bastante tempo."
Edição: Felipe Mendes