A crise econômica e política na Venezuela, agravada pelo bloqueio econômico imposto pelos EUA, fez com que o país latino-americano se tornasse não apenas a nação com uma das maiores inflações do mundo e enfrentasse uma recessão que durou oito anos, mas também que se convertesse em um dos destinos mais isolados do planeta.
Desde 2014, quando a crise econômica começou a dar seus primeiros sinais e Washington iniciou sua campanha de sanções, dezenas de companhias aéreas internacionais deixaram de voar para o país, alegando motivos financeiros e regulatórios. A ameaça constante do bloqueio estadunidense, que poderia recair sobre quem fizesse negócios com a Venezuela, e a campanha internacional para desestabilizar o governo do presidente Nicolás Maduro também influenciaram na fuga de algumas empresas aéreas.
No entanto, após a melhora de diversos indicadores econômicos desde o final de 2021, como o fim da hiperinflação e da recessão, companhias de distintos países iniciaram negociações com autoridades venezuelanas para retomar suas atividades no país.
Nos primeiros meses deste ano, ao menos 10 empresas internacionais já entraram em contato com o Instituto Nacional de Aeronáutica Civil da Venezuela (INAC) para tratar de possíveis retornos de operações regulares. Air France, Iberia, Gol, Aerolíneas Argentinas e até a colombiana Avianca devem empreender esforços para voltar a operar em território venezuelano.
Para o advogado venezuelano Rodolfo Ruiz, especialista em direito aeronáutico, o interesse de companhias em voltar a voar à Venezuela é muito positivo e está diretamente ligado com o processo de recuperação econômica e a possibilidade de flexibilização do bloqueio imposto pelos EUA, momento classificado por ele como um “renascimento” do país.
"Estamos vivendo uma espécie de renascimento em todos os setores econômicos e há também na aviação uma espécie de despertar. Como parte da indústria aeronáutica do meu país no ramo legal, posso dizer com muita responsabilidade que é um bom momento para começar a olhar para a Venezuela", avalia Ruiz em entrevista ao Brasil de Fato.
A portuguesa TAP Air Portugal foi a primeira que voltou a voar à Venezuela após dois anos de suspensão. No dia 21 de abril, um voo de Lisboa aterrissou no Aeroporto Internacional de Maiquetía, em Caracas, trazendo mais de 200 passageiros. As atividades da companhia haviam sido suspensas em 2020 após o cidadão venezuelano Juan José Márquez, tio do ex-deputado e autoproclamado presidente Juan Guaidó, ter pousado no aeroporto de Caracas portando “substâncias de natureza explosiva” quando retornava ao país em um voo da TAP.
Por parte do Brasil, a companhia Gol, que operou na Venezuela até 2016 com voos diretos a Caracas, já demonstrou interesse em negociar com autoridades venezuelanas a retomada de suas atividades. No dia 3 de maio, representantes da empresa brasileira e do INAC se reuniram para "desenvolver planos estratégicos para levar a relação aerocomercial com a companhia a um final feliz", indicou o órgão.
A colombiana Avianca, por sua vez, já chegou a apresentar uma solicitação à Aeronáutica Civil da Colômbia para retomar a rota Bogotá-Caracas, com uma frequência de sete voos por semana. Um retorno das atividades da companhia no país, interrompidas pela empresa em 2017, restauraria uma das rotas mais procuradas da região pela proximidade entre os dois países. Além disso, o restabelecimento de voos da Avianca poderia simbolizar o primeiro passo de uma reaproximação entre Venezuela e Colômbia, que seguem com relações diplomáticas rompidas desde 2019 após o governo de Iván Duque reconhecer Guaidó como "presidente interino".
Para Ruiz, uma possível vitória do candidato Gustavo Petro nas próximas eleições colombianas pode ser mais um elemento que acelere a retomada dos voos entre ambos os países, já que a possibilidade de restabelecimento das relações seria mais concreta em um possível governo do progressista.
"A Colômbia, por exemplo, que é um destino com muita demanda e muito importante para a Venezuela, continua fechada. Neste domingo acontecem as eleições na Colômbia e eu penso que, dependendo dos resultados, é provável que essa abertura ou retomada de operações entre ambos os países se acelere ou se atrase, vamos descobrir isso no domingo", afirma.
Segundo a Associação Nacional de Linhas Aéreas da Venezuela (ALAV), apenas cinco companhias internacionais operam atualmente no Aeroporto de Caracas. A Cubana de Aviación, a panamenha Copa Airlines, a turca Turkish Airlines e as espanholas Air Europa e Plus Ultra são as que permanecem voando à Venezuela e possuem atividades regulares no país ao lado de oito empresas nacionais e a companhia estatal Conviasa.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o presidente da ALAV, Humberto Figuera, afirma que esse interesse de companhias aéreas internacionais em retomar suas atividades no país já estava previsto para ocorrer há três anos, mas foi adiado pela pandemia da covid-19, que afetou o setor de aviação no mundo todo. Figuera ainda lembra que, com exceção da Colômbia e dos EUA, nenhum outro país no mundo possui impedimentos legais ou diplomáticos para restabelecer rotas à Venezuela.
“Após a pandemia, a Venezuela foi abrindo pouco a pouco seu espaço aéreo para determinados países. Hoje em dia, os únicos países nos quais as companhias aéreas locais ou as venezuelanas não podem operar são Colômbia, as Antilhas Holandesas e os Estados Unidos. Não operar na Colômbia segue sendo também uma decisão da Venezuela, mas nos Estados Unidos não é uma decisão que cabe a nós porque foram eles que fecharam o espaço aéreo para nossas companhias”, afirma.
Voos diretos para os EUA dependem do fim das sanções
Entre todas as possíveis rotas a serem retomadas, a que suscita maior expectativa é o retorno dos voos diretos entre Venezuela e EUA. A rota Caracas-Miami foi interrompida completamente em 2019 por meio de um decreto do Departamento de Transportes dos EUA que proibiu "todas as companhias aéreas estadunidenses ou estrangeiras a fornecer transporte aéreo para ou de aeroportos venezuelanos".
Foi também em 2019 que a American Airlines se tornou a última companhia aérea norte-americana a deixar a Venezuela, depois das empresas Delta e United, que haviam saído dois anos antes. Uma possível retomada dessas rotas, portanto, dependerá não só do interesse das companhias, mas também da suspensão de sanções por parte do governo dos EUA.
“Ocorreram negociações entre os governos da Venezuela e dos Estados Unidos sobre uma possível flexibilização das sanções petroleiras. Caso saia ‘fumaça branca’ dessas negociações e se alcancem acordos, uma das primeiras medidas seria o restabelecimento dos voos entre ambos os países, é um elemento fundamental. Se empresas norte-americanas começarem a explorar petróleo na Venezuela, obviamente elas precisarão de transporte e seus executivos vão querer contar com companhias aéreas americanas”, afirma Ruiz.
O otimismo do especialista se deve muito aos sinais dados pelo governo do presidente Joe Biden sobre o bloqueio contra a Venezuela. Apesar de manter o país latino-americano sob as principais sanções econômicas impostas pelo seu antecessor, Donald Trump, e seguir fortalecendo a narrativa da "presidência interina" de Guaidó, o governo do democrata já indicou que pretende rever algumas medidas coercitivas.
No início de maio, o governo da Venezuela confirmou que os EUA suspenderam algumas sanções para permitir que petroleiras norte-americanas, especialmente a Chevron, pudessem negociar o retorno de suas atividades em território venezuelano. O fato fez com que representantes do governo e da oposição voltassem a se reunir para discutir a retomada do diálogo político no México, que foi suspenso em 2021, onde o fim do bloqueio era uma das principais pautas defendidas pelos representantes chavistas.
A retomada dos diálogos já havia sido antecipada pelo presidente Nicolás Maduro em março, após receber a visita de uma delegação estadunidense enviada por Biden a Caracas para negociar possíveis acordos energéticos e a suspensão de sanções neste setor, motivada pelos efeitos da guerra na Ucrânia. A visita de representantes da Casa Branca a Caracas foi o primeiro encontro divulgado entre autoridades de ambos os países desde o rompimento de relações em 2019.
Para Ruiz, a aproximação entre Venezuela e EUA “contribuiu, sem nenhuma dúvida, para que as empresas e investidores que saíram do país considerem voltar ao mercado venezuelano”, já que nos últimos anos, mesmo não sendo afetadas diretamente pelas sanções, muitas companhias deixaram de fazer negócios na Venezuela pelo receio de sofrerem consequências do bloqueio imposto por Washington.
“Há um supercumprimento das sanções que prejudicou muito a aviação, pois existem coisas que não estão proibidas, que não estão restringidas pelas sanções, mas que, no entanto, se restringem pelo simples fato de as empresas não se exporem eventualmente a uma sanção”, explica o advogado.
Além das sanções que proíbem voos diretos entre EUA e Venezuela, o Departamento de Transportes estadunidense mantém o país na classificação nível 4, considerado de “alto risco” para viagens por motivos de “crime, agitação civil, estrutura sanitária precária, sequestro e prisão de cidadãos dos EUA sem o devido processo ou garantias de julgamento justo”.
Para o presidente da Associação Nacional de Linhas Aéreas da Venezuela, as conversas entre Caracas e Washington são positivas para normalizar as relações aéreas entre os países, embora falte "vontade política” por parte do governo norte-americano para retirar as sanções e restabelecer a categoria nível 1 de viagens para o país latino-americano.
Giro econômico do governo atrai companhias aéreas?
Além do processo de recuperação econômica e de distensão política na campanha internacional contra o governo Maduro, com a perspectiva de alívio das sanções, um outro elemento que pode explicar o interesse de companhias aéreas em retomar suas operações na Venezuela é a flexibilização do controle cambiário no país.
O mecanismo, imposto pelo ex-presidente Hugo Chávez em 2003, deixava sob controle do Estado todas as operações cambiais, inclusive a repatriação de divisas por parte das companhias aéreas. A legislação obrigava todas as empresas que realizavam voos regulares a repassar as quantias arrecadadas com vendas de passagens aéreas em bolívares, a moeda nacional da Venezuela, às autoridades para que pudessem repatriar os valores em dólares para seus países de origem. Entretanto, após 2014, quando o país entrou em recessão e teve seus ingressos em divisas duramente afetados pela queda do preço internacional do petróleo, o Estado começou a adquirir uma dívida bilionária com as companhias.
Segundo dados da Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA, na sigla em inglês), o governo venezuelano devia, em 2014, US$ 3,7 bilhões de dólares para cerca de 20 companhias aéreas. “Os fundos são oriundos de vendas de passagens aéreas na Venezuela e estão sendo retidos em contravenção aos tratados internacionais”, aponta a organização em nota.
Entre os anos de 2018 e 2019, a Venezuela retirou diversos impedimentos sobre o câmbio no país, decisão que fez parte de um conjunto de medidas levadas a cabo pelo governo bolivariano para combater a crise e que economistas classificam como um processo de maior liberalização da economia.
Para Ruiz, a flexibilização do controle cambial representa um estímulo ao retorno das companhias aéreas, já que as empresas não precisarão mais remeter suas receitas ao Banco Central para receber em dólares.
“Agora, a venda de passagens aéreas em moedas estrangeiras está permitida, de maneira que as companhias aéreas recebem os pagamentos em dólares de uma vez só através de suas páginas na internet em suas contas no exterior. Obviamente, isso descarta qualquer risco de não poder repatriar essa arrecadação em algum momento”, afirma.
As mudanças na estratégia econômica do governo Maduro, que já envolveram facilidades para importações, venda de ações de empresas públicas na bolsa e reconhecer o processo de dolarização forçada da economia, integram um processo que economistas estão classificando como uma maior liberalização da economia, vista com entusiasmo por alguns setores e com preocupação por outros.
Para Figuera, o setor da aviação pode se beneficiar em um futuro próximo dessas medidas econômicas, principalmente se o governo e as companhias aéreas chegarem a novos acordos comerciais e negociem uma forma de solucionar a dívida que foi adquirida pelo Estado durante o período que vigorou o controle cambiário.
“Devem ser feitos gestos para buscar saídas, para facilitar que as companhias aéreas possam ter algum benefício desse dinheiro que está retido na Venezuela. Esse benefício pode ser em desconto nos combustíveis, em desconto de taxas. De alguma maneira, devem ser feitos gestos que digam às companhias aéreas que estamos seguindo um bom caminho e que vale a pena operar aqui no país”, diz.
Edição: Thales Schmidt