O massacre de Eldorado dos Carajás é um marco na história do país e reverbera há 26 anos no cotidiano de quem luta pelo direito à terra.
O luto pelas 21 pessoas assassinadas reforça a convicção de que a reforma agrária popular não só é algo possível, como indispensável para garantir um futuro digno às populações do campo e da cidade.
Com a esperança no horizonte, Kelli Mafort, da coordenação nacional do MST, falou das repercussões do massacre ao Brasil de Fato, na entrevista disponível na íntegra a seguir. Ela relembrou a reação de artistas e intelectuais e a resposta política que o governo de Fernando Henrique Cardoso foi forçado a oferecer.
Assista a entrevista com a dirigente do MST:
"Infelizmente a reforma agrária do tipo clássica, essa que é feita em outros países como parte do desenvolvimento capitalista, nós nunca conhecemos aqui no Brasil. Tudo que a gente conquistou em termos de reforma agrária foi com muita luta. 90% dos assentamentos existentes são resultados de ocupação de terra", avalia.
Mesmo expostos à violência estatal que protege o agronegócio, os sem terra nunca recuaram. Pelo contrário, evoluíram no sentido de introduzir a agroecologia como pilar fundamental da reforma agrária, bandeira histórica do MST. Para isso, como lembrou Mafort, é preciso que o povo tenha terra para plantar.
“Nós entendemos que a agroecologia depende de uma base territorial. É preciso preservar os territórios camponeses, indígenas, quilombolas e de toda a agricultura camponesa. Mas, além disso, é preciso conquistar mais territórios”, considerou a dirigente.
Para Mafort, a necessidade de expandir a produção agrária popular, sem agrotóxicos e sem exploração humana, ficou comprovada durante a pandemia no Brasil. O agronegócio, que produz commodities e não alimentos, lucrou como nunca, às custas de uma população que não tinha dinheiro para comer.
“O agronegócio controla um alimento que ele não produz e, se valendo da desvalorização cambial, prefere colocar esse alimento para fora do país, receber em dólar, e deixar no país uma situação de inflação dos alimentos completamente absurda. Especular com a comida é especular com a vida das pessoas”, diz Mafort.
Brasil de Fato: Em termos de luta popular no campo, quais foram os desdobramentos do massacre?
Kelli Mafort: Esse massacre causou muita repercussão em nível nacional mas também internacional. Foram muitos protestos em todo o país. E no ano seguinte nós realizamos a Marcha Nacional pela Reforma Agrária, Emprego e Justiça, que saiu de três pontos do Brasil e caminhou por dois meses até Brasília. Essas três colunas da marcha chegaram à capital no dia 17 de abril, exatamente um ano após o massacre dos Carajás.
Também foi bastante importante que, junto com essa marcha, nós tivemos uma grande ação política e cultural por parte de Chico Buarque, com o CD Terra. José Saramago, também, que fez o prefácio do livro Terra, um livro fotográfico de Sebastião Salgado que retrata as imagens terríveis do massacre. Então, essa ação cultural e a exposição das fotos foram simultaneamente lançadas em mais de 15 países do mundo e percorreram praticamente todas as universidades públicas brasileiras fazendo a divulgação do tema da reforma agrária.
Na época, o governo Fernando Henrique Cardoso foi obrigado a criar o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que já foi acabado no golpe [contra a ex-presidenta Dilma Rousseff]. Fernando Henrique Cardoso se viu obrigado a dar algum tipo de resposta porque foi evidente que não estava sendo realizado nenhum tipo de reforma agrária no país. Pelo contrário, estavam se abrindo caminho para massacres.
Qual a importância da reforma agrária para o Brasil e o mundo?
A reforma agrária é um pilar fundamental para a democratização do acesso à terra, mas também para que, de fato, a gente tenha um projeto de país e uma sociedade que atenda à maior parte do seu povo. Infelizmente a reforma agrária do tipo clássica, essa que é feita em outros países como parte do desenvolvimento capitalista, nós nunca conhecemos aqui no Brasil. Tudo que a gente conquistou em termos de reforma agrária foi com muita luta. 90% dos assentamentos existentes são resultado de ocupação de terra.
A ocupação é uma forma legítima que o Movimento Sem Terra e vários outros movimentos praticam, para que as terras que deveriam ser destinadas para reforma agrária se convertam em assentamentos. E o MST, a partir do seu sexto congresso, em 2014, elaborou a tese da Reforma Agrária Popular. Porque, para nós, a reforma agrária não é uma tarefa em atraso, que ficou para trás. E cabe aos trabalhadores e trabalhadoras do campo, mas também urbanos, decidir o que a gente quer para o campo.
E é por isso que a gente tem como pilar fundamental a Reforma Agrária Popular e as práticas agroecológicas. Porque nós entendemos que a agroecologia depende de uma base territorial. É preciso preservar os territórios camponeses, indígenas, quilombolas e de toda a agricultura camponesa. Mas além disso é preciso conquistar mais territórios. Porque esses territórios, além de serem produtores de alimentos, também têm um modo de vida, um modo do bem viver, que é justamente fundamental para podermos fazer frente ao colapso climático.
Como as classes populares podem fazer frente ao poder do agronegócio?
A solidariedade é a forma que os povos têm desenvolvido para se manter vivos ao longo da história. Na nossa trajetória brasileira isso tem a ver com a resistência indígena, negra e popular. E, mais recentemente, o Movimento Sem Terra percebeu, no início da pandemia, que além do vírus nós enfrentaríamos a pandemia da fome, como agora a gente vê em números estarrecedores, ou mesmo pessoas correndo atrás do caminhão de lixo para garantir a sua sobrevivência.
Então, para nós, a questão da solidariedade é um princípio fundamental, uma cooperação necessária para que a gente possa enfrentar essa necessidade tão urgente que é a do direito à alimentação. Além disso, também denunciamos o quanto a indústria dos alimentos operou de uma maneira nefasta na pandemia. Nós tivemos um agronegócio que se gabou de lucros exorbitantes, um agronegócio que não produz comida, produz commodities.
Quem produz comida, segundo o censo agropecuário de 2017, é a agricultura familiar, 70% [dos alimentos]. O agronegócio controla a indústria de alimentos. Através da indústria, controla um alimento que ele não produz e, se valendo da desvalorização cambial, prefere colocar esse alimento para fora do país, receber em dólar, e deixar no país uma situação de inflação dos alimentos completamente absurda. Especular com a comida é especular com a vida das pessoas. Então, nós não podemos admitir isso.
Com a aposta na agroecologia popular, qual mensagem o MST quer passar para a sociedade?
O Movimento Sem Terra traz uma mensagem de esperança à sociedade. É verdade que a gente enfrenta situações muito dramáticas, no entanto, lidamos com esperanças, porque nós sabemos que a terra conquistada e repartida produz frutos maravilhosos para quem está nela. Para nós, sem terra, mas também para toda a sociedade.
E talvez uma das formas mais esperançosas que a gente lida é com a fertilidade do solo. A [pesquisadora da agroecologia e da agricultura orgânica] Ana Primavesi já nos ensinou que, para gente ter um alimento sadio, a gente precisa de um solo sadio. Então não é o fertilizante químico que vai trazer essa fertilidade do solo, porque ele não se preocupa com a fertilidade da planta. É muito importante que a gente faça o manejo agroecológico, o manejo agroflorestal para alimentar o solo e, ao mesmo tempo, nos alimentar.
E isso também tem uma função extremamente importante para reduzir e reter as emissões de dióxido de carbono, que é algo necessário frente a essa situação colocada e todos os problemas de mudanças climáticas. É muito importante decidirmos qual tipo de comida queremos e fazer com que a maioria dos brasileiros tenha a condição de ter um alimento saudável, que isso não seja exclusividade só de alguns segmentos e que a gente não tenha essa comida capitalista que acaba nos matando de muitas formas, os ultraprocessados, transgênicos e agrotóxicos. Que a gente tenha essa alimentação saudável democratizada para todos e para todas.
Edição: José Eduardo Bernardes