AGRONEGÓCIO

Mar de soja invade ilhas de produção de alimentos no Mato Grosso

Grão avança sobre áreas de reserva legal e sobre assentamentos de reforma agrária

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Soja avança sobre produção de alimentos em assentamento de reforma agrária - Fellipe Abreu

Sinop e Sorriso (MT) - Quando chegamos ao Peca Salames, restaurante de beira de estrada, o Jornal Hoje exibe uma reportagem sobre a explosão do desmatamento no Mato Grosso. Parece até que a família Cadore já nos esperava, e selecionou um vídeo como pano de fundo para nossa visita. Mas, não: chegamos de surpresa, vindos do Assentamento 12 de Outubro, no município de Cláudia, onde vimos alguns lotes tomados pela soja. E o Jornal Hoje é só uma estranha coincidência, um pequeno capricho do destino.

Também como capricho do destino, o irmão “famoso”, Peca, está tirando uma soneca depois do almoço, e então é Jacir Cadore, menos acostumado a entrevistas, quem nos recebe para uma breve conversa, que acontece próximo a mesas onde caminhoneiros fazem refeições. Paranaense que migrou para o Mato Grosso na década de 1990, desde 2019 Jacir tem um lote de terra no 12 de Outubro.

– Quantos hectares tem o sítio? 

– 12 hectares e meio. Com a reserva dá 36 hectares, se não me falha a memória.  

O 12 de Outubro foi oficialmente criado pelo Incra em 2009. Como estamos na Amazônia, os assentados devem preservar 80% da área. Em acordo com o órgão federal, na época de titulação ficou definido que a reserva seria coletiva, e não individual. 

– E há quanto tempo vocês plantam soja? 

– A soja, aqui faz cinco anos. 

Mas Jacir não planta apenas em seu lote. Hoje,  ele produz em “quatro ou cinco” sítios arrendados de outros assentados, o que já havíamos notado quando visitamos o assentamento. Ele afirma que ainda arrenda uma outra área, maior, fora do assentamento, totalizando 700 hectares de soja e milho. “Só que aqui, para o muito pequeno, não vale a pena plantar soja. Não compensa. Por isso que eu tenho mais área lá, porque o maquinário que eu tenho, ele precisa de mais terra.”

Restaurante Peca Salames fica na beira da BR 163 e próximo ao Assentamento 12 de Outubro. Foto: Fellipe Abreu.

 

Soja no lugar de comida

Algumas semanas antes de viajar às capitais da soja, havíamos mapeado assentamentos e áreas de agricultura familiar. Imaginávamos encontrá-los ilhados em meio ao mar do agronegócio. Mas, não: o agronegócio já está dentro dos poucos espaços de produção de alimentos que abastecem Sinop, Sorriso e Claudia, no chamado Nortão de Mato Grosso. 

“A ideia era maravilhosa: eu morar lá ao lado do meu irmão”, lembra Calixto Crispim dos Reis. Ele está na cozinha de casa quando chegamos, numa tarde quente de novembro. Os pés de manga estão carregados, e ele mostra, orgulhoso, a horta agroecológica repleta de diversidade. Temos salada, hortaliças e frutas. As raízes mandioca, batata. Abóbora, quiabo, jiló. Temos graviola, laranja e acerola. E agora, por exemplo, tem muita manga boa pra caramba”, conta o assentado.

Do alto do morro, Calixto aponta para a parte baixa do assentamento, onde começaram seus problemas. “Vivi um bom tempo ao lado de uma lavoura de soja e não conseguia produzir orgânico. Eu mudei pra cá há seis meses.”

É então que a fala mansa e a boca de sorriso farto ficam tomadas pela tristeza. Toda vez que comenta sobre o veneno, ele olha pra baixo, aperta uma mão contra a outra, dá um suspiro. “Veneno, veneno, meu Jesus. Teve um dia que eu cheguei e a Alessandra estava lá no pátio,  chorando. E o cara passando veneno. Que vontade de não ficar me segurando ali. Meu deus”, recorda. 

É quando Alessandra Siqueira da Costa, a companheira de Calixto, aparece na cozinha. “Eu sentia muita dor de cabeça. A vez que a gente teve a nenenzinha, morava lá embaixo, e aí a gente chegou do hospital. No primeiro dia, praticamente, a gente está lá com ela recém-nascida e o vizinho passando veneno. A gente colocou as crianças no carro e tirou daqui, porque era muito perto da casa. E aí aquela dor de cabeça, uns três dias durava, e não adiantava tomar remédio.”

Foi quando Calixto começou a sentir algo estranho. Não era dor de cabeça. “Imagina o inferno. No meu caso, era o ódio. Dá um nervosismo absurdo de acontecer. Vai ver seu pasto, por exemplo, com 20 ou 30 metros de pastagem morta.” 

Calixto e Alessandra foram expulsos do lote onde moraram. Foram expulsos pelos agrotóxicos.

Durante os meses seguintes, em várias ocasiões falamos com ele, à distância, e ficou claro como o veneno é um assunto quase proibido, porque sempre evoca a pior fase de sua vida. “Hoje em dia eu tomo remédio. Vivo tomando antidepressivos. Para ajudar a curar um pouco o estresse que dá.” 

Calixto Crispim dos Reis mostra sua horta agroecológica, onde produz diversas hortaliças, frutas. Foto: Fellipe Abreu.

 

Grilagem e desmatamento

Como problema pouco é bobagem, desde a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, o assentamento vem sendo tomado por grileiros. Em uma das frentes de expansão do desmatamento, flagramos um loteamento com chácaras de lazer. Os assentados já não têm a quem recorrer, porque Incra e Ibama deixaram de ajudá-los. Após a denúncia do Joio, o  Incra respondeu que não tem recursos para fiscalizar a grilagem – a sede do órgão está a 170 quilômetros de distância. 

Olhando os dados da plataforma MapBiomas, vemos que depois da criação do assentamento a área cultivada com soja chegou a ficar praticamente zerada nessa área. Mas, em 2020, já eram 60 hectares, o que corresponde à descrição dos assentados e ao que vimos na nossa visita, de que a família Cadore está usando cinco lotes para a produção de grãos. 

“E essa professora, ela está passando por isso”, diz Calixto. “Entre ela e eu tinha cinco sítios. Ele (os Cadore) comprou meu sítio e arrendou mais dois, então, já está a dois de chegar no sítio da professora.” 

Na Escola Estadual Florestan Fernandes, dentro do assentamento, conhecemos Cleonice Rocha de Paula, a professora que “está passando por isso”. Quando as aulas terminam, vamos até a casa dela. “As hortaliças, hoje a gente tá com couve, berinjela, tomate, quiabo, cheiro verde, almeirão. Várias plantas. Aí a parte de frutífera tá hoje com graviola, maracujá, goiaba, banana, cupuaçu, mamão, castanheira e baru”, ela conta, enquanto tentamos dar conta de enxergar tanta coisa em meio à penumbra da chegada da noite. 

Ao lado dela, um vizinho usa a área para pecuária. Por incrível que pareça, a pastagem deixa saudade quando a soja chega. “A soja afeta a gente em várias questões. Uma é a questão do veneno. Hoje, por exemplo, o rapaz passou veneno às dez horas da manhã, que já é horário de sol e vento”, conta. 

“A gente tá num Projeto de Desenvolvimento Sustentável. Não é aceitável. A nossa produção visa a produção familiar. A gente se vê ameaçado. Ou a gente se adequa a plantar cercado pelo veneno, ou é expulso do sítio, igual alguns companheiros já foram. Então, assim, é uma situação bem complicada.”

Cleonice Rocha de Paula e sua produção agroecológica no 12 de Outubro. Foto: Fellipe Abreu.

 

Deserto verde e veneno

O 12 de Outubro é uma amostra nada grátis do que está acontecendo por todo o Brasil. Onde um ano atrás havia o antigo sítio de Alessandra e Calixto, hoje é soja. Onde havia alimentos nascendo, crianças correndo, uma família vivendo, hoje há deserto verde. 

Daqui a um ano ou dois, o mesmo pode ter ocorrido a Cleonice. Se hoje ela e a família já sofrem com o despejo de agrotóxicos a alguns metros de distância, tudo pode piorar: em todos os lados, a pecuária vem sendo substituída pela soja – inclusive, nas projeções do Ministério da Agricultura para a década. Se o vizinho arrendar o sítio para a família Cadore, Cleonice e a família podem ser obrigados a tomar o mesmo rumo de Calixto. 

– Pode plantar soja dentro de assentamento da reforma agrária? – perguntamos para Jacir Cadore. 

– Oxe. Claro que pode. Qualquer cultura. 

Por ser um Projeto de Desenvolvimento Sustentável, o 12 de Outubro deve promover “atividades ambientalmente diferenciadas e dirigidas para populações tradicionais”.

Questionamos o Incra, para saber se a soja pode, de alguma maneira, ser plantada em assentamentos desse tipo. “Não existe proibição para o plantio de soja no assentamento. O INCRA não possui a atribuição legal de definir a atividade agropecuária que será exercida em Projeto de Reforma Agrária. Porém, por tratar-se de projeto ambientalmente diferenciado, os beneficiários devem observar a legislação ambiental vigente, em especial quanto à manutenção e à preservação das áreas de reserva legal e de preservação permanente”, informou o instituto, por meio de nota.

Também perguntamos se existe autorização para o uso de agrotóxicos dentro do assentamento. Por meio de sua assessoria o Incra disse: “Não é competência legal do INCRA autorizar utilização de defensivos agrícolas. As obrigações dos beneficiários de PDS estão contidas no Contrato de Direito Real de Uso (CDRU) e, em caso de descumprimento das cláusulas ali constantes, o Incra poderá rescindi-lo, sendo garantido ao ocupante do lote o direito ao contraditório e à ampla defesa. Os procedimentos para verificação das condições de permanência e de regularização de beneficiário no Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) constam na Instrução Normativa n° 99, de 30 de dezembro de 2019 (https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-99-de-30-de-dezembro-de-2019-236098411).”

– Como você pega financiamento?, perguntamos a Jacir

– Pra pequeno é difícil porque é pouco dinheiro, né? Para começar, o banco quer uma terra em garantia. O CDRU não serve nem pra dar garantia – queixa-se. 

CDRU é a Concessão de Direito Real de Uso, um título que comprova que um assentado tem direito à terra, mas não à propriedade, que segue sendo da União. 

– Eu até que consigo porque tenho um amigo meu aqui no armazém que me banca, que financia pra mim e tal. O insumo eu compro dele, a maioria, porque é conhecido. 

Para os padrões da soja em Mato Grosso, Cadore é, de fato, um pequeno. Ele conta que cada hectare, num ano de ótima colheita, dá um lucro de dez sacas de soja, ou seja, R$ 1.500. Se os 700 hectares produzirem bem, ele e o irmão ficam com mais de R$ 1 milhão. Sem contar a safra do milho, que vem logo depois. 

Em 2016, Jacir Cadore foi homenageado na Assembleia Legislativa do Mato Grosso pelo então deputado estadual Coronel Taborelli, quando recebeu o título de cidadão mato-grossense “pelos relevantes serviços prestados à sociedade do Estado de Mato Grosso”. Em 2017, Taborelli foi condenado por fazer detenção de adolescentes de forma truculenta enquanto era policial.

Chuva, ovos e verduras

Cai uma chuva forte na noite de sexta-feira. Estamos na casa de Ana Maria dos Reis, a Teca, e de seu companheiro, Marciano Silva, no assentamento 12 de Outubro. Os dois conversam conosco enquanto organizam o que irão levar na manhã seguinte para a feira agroecológica do Cantasol, que acontece todos os sábados em Sinop. Os dois são militantes do MST e participaram da ocupação do hoje assentamento de Cláudia. 

A produção dos assentados é feita e organizada pela Cooperativa de Produtores Agropecuários da Região Norte do Estado de Mato Grosso (Coopervia), localizada no 12 de Outubro, da qual Teca é presidenta. E a produção de alimentos agroecológicos dos assentados é vendida tanto na feira semanal da vizinha Sinop como por meio de vendas online e cestas de alimentos orgânicos. 

Teca quebra os ovos e os mistura à farinha para fazer um bolo que será vendido na manhã seguinte. Aos 44 anos, ela tem uma história de luta junto ao MST, organizando ocupações de terra no Mato Grosso. “O que a gente quer é priorizar a alimentação para a subsistência local”, explica. “A maior parte da produção que é consumido na nossa região acaba vindo de fora, vem de outros estados e chega aqui com uma qualidade muito ruim. E chega também muito cara, inviabilizando que as pessoas que estão na periferia possam consumir produtos que servem para a nutrição humana”, explica.

No 12 de Outubro, os assentados produzem temperos, frutas, hortaliças e raízes. A variedade é grande. Tem banana, abacaxi, acerola, limão, laranja, graviola, alface, rúcula, almeirão, repolho, beterraba, cenoura, rabanete, couve, quiabo, cheiro verde, coentro, abóbora, batata, inhame, mandioca, maxixe. Também fazem bolos, bolachas, doces e compotas para venda. 

Tudo pode piorar

A 130 quilômetros dali, Marcio Manoel da Silva abre a geladeira repleta de mandioca. É domingo e, no dia seguinte, ele e a companheira, Maria Boaventura de Sousa Silva, a Sula, entregarão 400 quilos para a alimentação escolar das crianças de Sorriso. 

Enquanto Sinop é a maior cidade da região, Sorriso se orgulha de ser a capital oficial do agronegócio. Uma espécie de fortaleza do discurso de supremacia dos migrantes sulistas e de defesa do bolsonarismo. 

Antes do almoço, Marcio nos leva para uma espécie de tour pelo Assentamento Jonas Pinheiro, criado em 1999. E é difícil escolher se nos apegamos aos bons ou aos maus momentos. 

Bem pertinho da casa dele, uma pequena fábrica transforma a mandioca em farinha, e dá renda digna a muitos assentados. Logo em frente, famílias expulsas pelo avanço da soja estão debaixo de lona, à espera de uma solução para o problema. É um acampamento dentro de um assentamento. Tentamos, sem sucesso, falar com os líderes do acampamento. Em outra área do Jonas Pinheiro, famílias assoladas pela fome ocuparam terras para tentar produzir comida. 

O carro circula veloz, durante hectares e mais hectares margeados pela soja – em 2020, segundo o MapBiomas, eram 1.600 hectares dentro do Jonas Pinheiro, um aumento de 600 hectares em apenas dois anos. 

Os dados também nos permitem entender ainda melhor por que soja e fome são, cada vez mais, parte de uma mesma equação. A área de lavouras temporárias encolheu exatamente 600 hectares nesse período: se antes a produção de alimentos era maioria no assentamento, agora são a soja e o boi que reinam. 

Fica evidente o papel que os assentamentos têm na produção de alimentos de uma região que, historicamente, nunca produziu. Em Cláudia, onde fica o 12 de Outubro, os hectares dedicados ao feijão chegaram a multiplicar por nove em apenas cinco anos, entre 2008 e 2013. A produção passou de 560 toneladas para 4.680, de acordo com dados da Pesquisa Produção Agrícola Municipal, do IBGE.

Mas também fica evidente que a produção de alimentos foi um soluço, um pequeno intervalo numa região dominada pelo cultivo voltado à exportação. De 2014 em diante, o feijão vai declinando. 

“Tem gente que planta soja, mas não sei nem como é que vende. Porque o assentamento está embargado”, indaga Marcio. A resposta, todos sabem: os que produzem soja no Jonas Pinheiro fazem como a família Cadore, usando outros registros de propriedade ou tomando dinheiro emprestado de grandes produtores. “Quando a gente quer fazer uma cultura legal, sem produto químico, a gente não consegue recurso.” 

Quando visitamos o assentamento, em novembro do ano passado, os agricultores estavam tristes, inseguros e irritados. Em junho de 2021, a Justiça Federal anulou o processo de desapropriação da área. Com isso, os sete mil hectares cultivados há mais de vinte anos poderiam retornar às mãos da família dona da antiga fazenda. A Justiça Federal entendeu que como o processo corre há mais de 20 anos e até então não havia um levantamento realizado pelo Incra em relação às medidas da terra, o adequado seria extinguir a ação.

Naquela semana, os assentados entraram em pânico durante uma reunião para discutir os rumos da regularização dos lotes do Jonas Pinheiro e que deveria acalmar os ânimos. “Será que nós ganhamos? Será que nós perdemos?”, discursou Fernanda Amorim, procuradora da Assembleia Legislativa de Mato Grosso. “Eu vou ser extremamente mulher, advogada, procuradora, filha de deus, e eu vou olhar no rosto de cada um que tá aqui na mesa. E vou entregar: hoje vocês estão despejados dessa área do PA Jonas Pinheiro. Despejados!” 

Depois dessa reunião, “teve gente que foi parar no hospital”, conta Sula. 

Dias depois, os assentados do Jonas Pinheiro tiveram uma reunião com o secretário de Assuntos Fundiários da Presidência, Nabhan Garcia, para discutir a regularização do assentamento. “Onde há regularização fundiária há segurança jurídica e onde há segurança jurídica há segurança econômica e social”, pontuou o secretário. No entanto, até agora, o impasse em relação à desapropriação da área segue. “Só vamos ter certeza quando estivermos com o documento na mão”, diz Sula.


Insegurança no prato dos outros

Na boca de dez em cada dez empresários do Brasil, a “insegurança jurídica” é sempre usada como razão para derrubar políticas públicas. É possível revogar as leis trabalhistas, o direito à aposentadoria, o teto de gastos públicos. Desde que seja para aumentar os lucros de quem já lucra muito. 

Os assentados do Jonas Pinheiro convivem há vinte anos com a incerteza de quem não sabe se no mês seguinte irá receber o título definitivo da terra ou morar debaixo da ponte. “Uns falam que nós estamos despejados”, continua Marcio. “Outros falam que nós ainda temos recurso. Outros falam que não vai ser despejado. A gente fica meio atordoado, meio sem saber o rumo que pega, entendeu?”

Em fevereiro deste ano, após uma comitiva do Mato Grosso ir a Brasília, a Superintendência Regional do Incra emitiu uma portaria designando um grupo de trabalho para realização de estudo de área e delimitação de perímetro dos assentamentos.

Procuramos o Incra que por meio de sua assessoria disse: “a ação de desapropriação da área foi extinta pelo juiz da causa e o Incra recorreu da decisão. Para solucionar as pendências relacionadas à materialização e localização do imóvel, foi formado um Grupo de Trabalho, conforme publicação abaixo: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-292-de-21-de-fevereiro-de-2022-381989380 
As atividades do GT ainda estão dentro do prazo de 60 dias, que provavelmente será prorrogado, conforme a necessidade.”

Sob o calor forte do meio-dia, enquanto tomamos uma cerveja, os olhos de Márcio marejam. “A gente fica até com depressão. A gente não tem os esclarecimentos para falar, mas a gente vê o que que está acontecendo. A desigualdade. E isso é muito ruim para um país como o nosso. Isso não é justo. Os nossos filhos, que nasceram tudo aqui, estão indo embora, voltando para a cidade. Em vez de trazer os que estavam na cidade para dar emprego, não, são os nossos que vão tomar o emprego dos outros na cidade.”

Depois do almoço, Marcio e Sula nos levam para comer laranja direto do pé, e mostram as outras partes da propriedade. Ele se empolga ao falar sobre as abelhas. E vai até o forno abandonado de onde, no começo, ao chegar nas terras, o casal tirou o sustento da família produzindo carvão. 

Não é difícil entender que esses tempos passaram: a vida pode não ser segura, mas não falta nada. E há algum conforto. “As pessoas estão passando fome. Eu mesmo podia produzir pra doar, entendeu?”, continua Marcio. A insegurança jurídica dos agricultores não aparece nos cálculos do PIB. Nem na inflação de alimentos. Mas tem um papel em ambos. “O grande só produz duas coisas. O boi e a soja. E as outras coisas? imagina você chegar no mercado e só ter a carne e o soja para comer.”  

Com a área congelada e a incerteza, os agricultores deixaram de plantar, algo que escutamos em outras cidades do Mato Grosso. Terras que poderiam estar produzindo, justamente no momento em que o país, assolado pela fome, mais precisa.

“Eu acho o seguinte: com toda essa maracutaia que está acontecendo, o pobre e o trabalhador têm que virar bandido. O que vai fazer da vida?”, pergunta Marcio. “A gente sofreu a vida toda. Quando chegou aqui, não tinha nada. Agora, é um assentamento muito rico. E aí a gente é obrigado a sair sem direito a nada? O que você vai pensar? Um cara como eu, com 50 anos, eu tenho diabetes, sou analfabeto, o que eu vou fazer numa cidade? Eu tenho vergonha de pedir. Nunca pedi para ninguém. Tô sempre trabalhando.”

*colaborou Guilherme Zocchio