O pedido do iFood ao juiz foi feito em sigilo. A maior empresa de delivery do país não queria que ninguém soubesse de seu requerimento para tirar um vídeo do ar. O juiz do trabalho Eduardo Vianna Xavier, no entanto, negou ambas as solicitações: o vídeo segue disponível e o requerimento para retirada se tornou público.
Publicado em março no canal do youtuber Ralf MT, o vídeo que incomodou a gigante das entregas mostra trechos da audiência de uma ação trabalhista impetrada por um entregador contra o app e a empresa terceirizada que mediava esse vínculo.
Nele, o entregador de São Leopoldo (RS) detalha como, com um contrato intermediado pela Operadora Logística (OL) do iFood, a E.D Goulart, trabalhava com carga horária, subordinação a um chefe e sujeito a penalidades caso não aceitasse corridas.
A respeito da tentativa do iFood para que fosse intimado a retirar o conteúdo da internet, Ralf afirma que o objetivo da empresa foi de impor censura. “Quer me calar, quer tirar minha voz. Como adora fazer com todo mundo que tenta de alguma forma questionar o iFood. Isso só prova que eu estou no caminho certo”, ressalta.
Como funciona esse sistema de operadoras logísticas nas dinâmicas dos centros urbanos, em um contexto em que, para o economista Marcio Pochmann, se vive uma "guerra civil pelo emprego", cada vez mais "coordenada pelo que denominamos sistema jagunço no Brasil"?
A despeito da frequência de decisões judiciais que reconhecem o vínculo empregatício no regime de trabalho de entregadores, a reportagem apurou ao menos três aspectos que podem fazer a existência das empresas intermediárias úteis para o iFood diante da ebulição de mobilizações de trabalhadores de apps.
O que são as empresas OLs do iFood
No iFood, existem dois modelos de cadastro de entregadores. Um é daqueles que se vinculam diretamente à plataforma: são chamados de Nuvem e definem (a princípio) o próprio horário de trabalho. De acordo com o app, eles representam 80% dos trabalhadores ativos.
Outro é o Operador Logístico (OL). Estes têm jornada fixa agendada previamente, e sua relação com o iFood é intermediada por uma empresa. Os entregadores respondem hierarquicamente a um supervisor, chamado de "líder de praça" ou "operador logístico" também.
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Se, por um lado, o entregador cumpre escalas pré-determinadas ao estilo de um trabalhador formal, por outro, ele não tem férias, folga remunerada e salário fixo. A remuneração se dá de acordo com as corridas que faz.
De forma confusa, são chamadas de OL as empresas terceirizadas contratadas pelo iFood; os líderes dessas empresas (que controlam e coordenam a frota de entregadores); e também os próprios entregadores que trabalham nesse modelo.
As empresas operadoras logísticas controlam os cadastros e as senhas da sua frota na plataforma, tendo o poder, inclusive, de desativar suas contas.
Vínculo trabalhista
Leandro*, autor da ação judicial já citada, trabalhou para a OL E.D. Goulart entre maio de 2019 e junho de 2020 e, depois de um intervalo, entre março e maio de 2021.
Usando sua moto, ele fazia as entregas uniformizado com as roupas e a bag do iFood, plataforma para a qual trabalhou exclusivamente e por meio da qual recebia os pedidos.
Começava seu dia de trabalho na sede fixa da OL e não tinha a opção de rejeitar corridas ou de trabalhar em outros horários. Caso descumprisse as regras, o supervisor aplicava o “gancho” como penalidade, que é deixar de fora da próxima escala. Por parte do iFood, segundo Leandro, a consequência era um bloqueio temporário do app, de 30 minutos a três horas.
Com uma jornada fixa de trabalho de 10 horas diárias de terça a domingo, sem direito a folgar em feriados, a remuneração de Leandro era de cerca de R$2.500 por mês. Alegando desconhecer o motivo, foi desligado da plataforma por seu superior, o líder OL.
Com base na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), o juiz da 1ª Vara do Trabalho de São Leopoldo deu, em primeira instância, ganho de causa a Leandro, reconhecendo seu vínculo empregatício com a empresa OL e com o iFood.
De acordo com a CLT, “toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante salário” é empregada. Segundo determina a mesma lei, é empregadora “a empresa, individual ou coletiva” que “admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços”.
O caso de Leandro está longe de ser o único. O advogado Celso Pinto, que o defende no caso, se especializou desde 2019 em processos trabalhistas contra o iFood. Atualmente tem 150 ações em andamento.
“Dos meus processos, em todos em que já houve decisão, seja pendente de recurso ou definitiva, todos deram ganho de causa para o motoboy, reconhecendo vínculo”, conta.
As regras do jogo
“Foodtech líder da América Latina”. Assim o iFood define a si mesmo, ao apresentar o negócio, em seu site, como o de “conectar o mundo da alimentação a milhões de consumidores, apoiando a digitalização da sociedade”.
No artigo Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas, Ludmila Abílio, Henrique Amorim e Rafael Grohmann afirmam que, hoje, empresas de aplicativo “batalham para serem reconhecidas como mediadoras”, como neutras promotoras de um “encontro mais eficiente entre oferta e procura”.
De acordo com os autores, o discurso das plataformas não se sustenta na realidade, já que elas têm “o poder de definir as regras do jogo sem fixá-las: determinam como opera a distribuição do trabalho, sua precificação, quem será incorporado e, também, quem é desligado ou bloqueado nas plataformas”.
O algoritmo, que gerencia as plataformas por mecanismos que são automatizados, mas humanamente programados, realiza “ranqueamentos, oferta de bonificações, punições – elementos que materializam os meios de controle do trabalho”, elencam.
Se a descrição se aplica a todas as empresas de app, elas ficam ainda mais evidentes quando se trata da modalidade OL do iFood.
Por que, então, diante da incoerência com o discurso publicitário de autonomia e flexibilidade, o iFood mantém o sistema OL? O Brasil de Fato fez a pergunta para a própria empresa, mas não recebeu resposta até o fechamento da matéria. É possível, no entanto, aventar explicações.
A tripla função de empresas Operadoras Logísticas
Em primeiro lugar, um sistema em que entregadores têm jornadas fixas e sofrem punições caso neguem os pedidos garante ao iFood o atendimento da demanda por delivery mesmo em dias de chuva, feriados e em regiões menos escolhidas. O app assegura entregadores disponíveis permanentemente.
Em segundo lugar, o sistema OL permite um regime de trabalho que conjuga, por um lado, a automatização mediada por telas e robôs (o que o ex-entregador e sociólogo britânico Callum Cant descreve como “patrões sem rosto”). E, por outro, implementa uma supervisão de carne e osso. Os líderes OLs cumprem, assim, a função disciplinadora da chefia.
Em terceiro lugar, inseridos em dinâmicas cotidianas dos entregadores – das ruas aos grupos de whatsapp e telegram – os líderes operadores logísticos conseguem, em muitos casos, mapear pessoas e mobilizações da categoria. Podem também constrangê-las.
A greve de entregadores em Jundiaí (SP) já durava dias, durante a onda de breques em outubro de 2021. A expectativa dos organizadores era que o iFood entrasse em contato para dialogar a respeito das demandas, que incluíam melhores taxas e o fim dos bloqueios sem justificativa.
O Brasil de Fato fazia a cobertura do breque quando um líder OL informou aos grevistas que um representante do iFood havia solicitado o nome e o telefone das pessoas que estavam encabeçando a mobilização. As informações foram passadas. O contato nunca aconteceu.
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“Campo aberto para um sistema jagunço”
Os donos e supervisores das empresas OLs são, ao mesmo tempo, gerentes terceirizados do iFood e pequenos patrões de uma frota de entregadores. Seus ganhos são oriundos do repasse dado pelo iFood, proporcional ao trabalho feito pelos entregadores. Não são raras as vezes, portanto, em que os breques são mal recebidos por operadores logísticos.
Durante uma paralisação que durou oito dias em Atibaia (SP), também em outubro, o Brasil de Fato acompanhou três grevistas que tiveram suas contas suspensas temporariamente pelo supervisor OL, como represália por participar da mobilização.
“O iFood não cria, mas se utiliza de uma situação de subemprego em massa, em que as pessoas estão se submetendo a trabalhos extremamente precários e à margem da legislação”, caracteriza Leo Vinicius Liberato, doutor em Sociologia Política e pesquisador em segurança e saúde no trabalho. “E o que está à margem é um campo aberto para ser controlado por um sistema de jagunço para aferir a força de trabalho”, complementa.
Entre figurinhas de whatsapp que circulam em grupos de entregadores, uma delas satiriza um dono de OL com uma imagem do personagem miliciano Major Rocha, interpretado por Sandro Rocha, no filme Tropa de Elite 2, como se estivesse intimidando um breque da categoria:
Às vésperas da organização de uma greve marcada para 18 de julho de 2021 no Rio de Janeiro, circularam áudios vazados. Em um deles, uma pessoa dá orientações a prováveis donos de OLs para impedir a adesão ao breque.
“Já vai avisando para a frota que o fato deles alegarem que não vão rodar para não ter problema, isso aí é uma manifestação camuflada e a gente não pode concordar com isso”, vocaliza. “Eu estou ouvindo rumores que os [entregadores] OLs estão aderindo a esse movimento. Isso é muito complicado. Então, já vamos organizando para a gente minimizar isso, tá ok?”, afirma.
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Em outro, de acordo com o Passapalavra, a fala é de um líder OL da empresa Carioca Delivery para a sua frota de entregadores, que trabalha na Barra da Tijuca.
“Pegou pedido? Vai entregar. Entregador que for pegar pedido e se sentir acuado, ameaçado por esses supostos grevistas, pode me acionar. Não desloca corrida, não desliga aplicativo e me informem tudo. Para evitar bloqueios, como vocês sabem”, diz ele.
A maior empresa operadora logística do iFood, a Sis Moto, é justamente do Rio de Janeiro - cidade onde as milícias controlam 57,7% do território.
A Sis Moto tem filiais em 24 estados do país e opera com cinco mil entregadores. Foi numa ação trabalhista contra ela em Belém (PA) que Celso Pinto começou a se especializar no ramo.
“Ao combinar a capacidade de processamento de dados e a vigilância impessoal da inteligência artificial com a coerção direta e pessoal do bom e velho capataz, devidamente terceirizado”, narra o artigo Masterclass de fim do mundo, “essa forma da uberização pode representar uma tendência para a gestão do trabalho, muito mais eficiente do que os robôs deixados à própria sorte”.
*Nome foi alterado para preservar a fonte.
Edição: Felipe Mendes